
*Francisco Calheiros
Continuação…
Aquele irmão
Soube da morte de Tomé por Carol. Só não consegui entender o motivo daquela barbaridade. Um homem tão bom, tão inofensivo. Fomos criados juntos, e era meu irmão de criação. Nossa velha mãe de tudo fez para nos dar o necessário. Nunca permitiu, por exemplo, que trabalhássemos nas olarias de Iranduba, que exploravam as pessoas.
Na volta do cemitério Parque da Saudade, veio-me à memória o passado. “Aquela moça não de me olhar. Será que é porque sou bonito?”, repetia com pinta de ator de cinema. Repetidas foram as nossas brincadeiras na praça central da cidade. Mamãe nunca soube da morte dele. Para ela, ele ainda mora em Santarém, onde trabalha numa empresa de assistência técnica. Uma vez brigamos por um papagaio de papel, lindo, meio conciliador, dividido com as cores do Vasco e do Flamengo. Clássica rivalidade. Fazia muito tempo. As festas juninas. Nosso primeiro dia de aula. A merenda escolar. Ficávamos na fila várias vezes somente para repetirmos a paçoca de carne. Tudo passou na minha memória muito cinematograficamente.
Agora, a realidade era diferente. Um crime. Nenhuma pista. Quem teria sido o autor daquela barbaridade? O calçadão do Olimpo, sempre sujo e repleto de vândalos, serviu-me de espaço e tempo. O banco de cimento em frente à quadra de vôlei foi minha companhia durante o resto da tarde. Um crime. Nenhuma pista. Nossas brincadeiras na praça central da cidade.
Na volta para casa, vi um cenário de guerra. O corpo de bombeiros ocupava a esquina entre a Rua da Fé e a dos Desvalidos. Um cogumelo saía de um ponto geográfico relativamente familiar. O susto não foi maior do que o desespero. A casa não mais existia. Era um amontoado de cinzas. Nada. Absolutamente nada havia sobrado. A primeira coisa que me veio à cabeça foi o meu acervo bibliográfico. Desde a quinta comprava livros. Meu sonho era transferir o acervo para minha cidade natal e montar uma biblioteca comunitária e permitir que as pessoas das proximidades tivessem acesso a leitura. Tinha livros raros como, por exemplo, um resumo da vida de Marx autografado por Luís Carlos Prestes, aquele que fez oposição a Getúlio.
Sempre disse que ninguém deve ferir o passado de um homem, não me refiro evidentemente à vida sentimental; falo das raízes, das realizações e de coisas que lhe são muito peculiares.
Os meus vizinhos me receberam como se o prejuízo tivesse sido deles. Dona Maria era a mais triste. Chorava como uma desesperada.
– O senhor não merecia isso! – disse-me a velha Teresinha. Seus cabelos compridos não negavam a sua preferência religiosa.
– O senhor pode ficar aqui em casa – foram as palavras do velho Miguel, um mecânico de fundo de quintal que sempre teve um caso com uma vendedora de frutas no mini shopping do bairro. A mulher desconfiava; não fazia, no entanto, cara feia porque ele, segundo ela mesma dizia, era um bom homem. Isso tudo era secundário ante a situação em que me encontrava. A casa que meu tio me deixou agora não mais existia. Ele suicidou-se na fila do banco. Já o meu passado, até então honrado, transformara-se num presente de desespero. Os envelopes. Meu irmão morto. A casa incendiada. Havia um elo que só fui descobrir depois que tudo se repetiu com a casa de minha mãe. As pessoas me contaram o drama pelo qual ela, minha pobre mãe, havia passado. Para a polícia foi um incidente. Para mim, um aviso.
No meio de toda aquela algaravia, era um homem sem palavras. Apenas com a roupa do corpo, dirigi-me à parada do Clube do Forró. A linha Laminados-Ceasa me deixaria nas proximidades da Raiz, onde poderia conseguir um agasalho na casa de Beatriz, minha amiga de longas datas. Mas, para a minha surpresa, o irmão mais novo de Carol para em frente às ruínas da velha casa, aproxima-se de mim e não precisou perguntar o que houve, pois os escombros eram maiores do que a turba que ali se amontoava.
Tom e Chico foram resgatados das cinzas. Talvez ainda funcionassem. Esse mundo é pequeno, e as notícias voam como condor. E novamente a turma do Bar da Francisca estava ali, na minha frente, triste mas prestando a devida solidariedade. “Canalhas – repetia Fernando – Isso é desleal”. O meu amigo falava de lealdade. Eis o x da questão. Não tinha sido leal. E deslealdade se paga com deslealdade. Eles, os autores daquela barbaridade, estavam certos.
Por uma semana fui inquilino de Carol na área do bodozal. A casinha era apertada; parecia, no entanto, coração de mãe, uma vez que nos acomodou a todos nós e ainda houve espaços para o filho mais velho que chegou de Manacapuru com a mulher e dois herdeiros das dívidas. Fui bem tratado. Pena que não podíamos chegar às últimas consequências já que o risco seria muito grande.
No momento em que imito Graciliano Ramos, chega-me uma boa notícia. O juiz que analisa meu processo dará o veredicto final. Serei ouvido na primeira semana de janeiro. Uma data muito estranha uma vez que nesse período o Judiciário está em recesso. Para quem estava esperando uma sentença há tanto tempo, já era uma boa notícia. O guarda de plantão não me trata com a mesma simpatia que o morto pela rebelião. É estranho. Não aceita aproximação com detentos. Trata-os com desdém e nenhuma cortesia. Disse certa vez que não poderia ser amável com criminosos. Em um dos meus monólogos chamei-o-de de cretino. Não me considerava um criminoso. Meu primeiro contado com Manaus foi exatamente nessas circunstâncias. Parecia um bobo quando, pela primeira vez, atravessei a balsa do São Raimundo para me refugiar em uma cidade alheia a minha causa. Posso afirmar, entretanto, que foi amor à primeira vista. Fernando, de colega de trabalho, passou a ser meu protetor. E, sempre posando de Ari Toledo, levou-me para a sua casa no Bairro de Santo Antônio, nas proximidades da ponte de acesso ao Bairro de Aparecida. Era uma vila, que mais lembrava o cortiço cabeça-de-gato de Aluísio Azevedo. Havia uma certa rivalidade com alguns moradores da cidade alta, mais precisamente daqueles que vivem na biqueira do Colégio Marquês de Santa Cruz. O autor de Os Bucheiros com quem mantinha correspondência, ainda chegou a me, visitar antes do seu autoexílio na Fundação Doutor Tomas. Mas naquele domingo chuvoso, uma bomba caseira foi jogada na entrada da vila, causando um tumulto generalizado. A polícia considerou aquilo uma brincadeira de mau gosto dos vândalos da cidade alta. Para mim foi um atentado direcionado. Achei apenas que foi um ato muito ingênuo para quem teve a casa incendiada e vinha sendo perseguido em todos os cantos da cidade. Minha mãe provou do mesmo remédio. As cinzas da nossa casa eram a prova de que nem mesmo as pessoas idosas estão livres de determinadas arbitrariedades. É-me mais difícil aceitar que nunca mais tive notícias dela.
Beatriz tornou-se a pessoa mais importante para mim depois que passei a ser alvo principal daquela organização.
Sentia-me novamente personagem de um filme norte-americano. Os meus amigos mais chegados simplesmente me abandonaram, exceção feita a Fernando e a Gonzales, que nunca me deram as costas.
Os demais foram absorvidos pelas necessidades e desistiram da luta. Hoje, pagando as dívidas pelo favorecimento imediato, vejo meu comportamento foi muito romântico, já que uma boa parte do que ganhei naquelas transações ilícitas foi gasta com o movimento sindical, com vale-transporte para professores que não tinham dinheiro sequer para uma refeição. O medo de perder o emprego, as ameaças veladas de muitos diretores de escolas; enfim, um conjunto de fatores que fez muitos profissionais da educação abandonarem as causas sindicais. O Governo do Estado, à época, tinha a resistência dos profissionais da educação e da saúde, inclusive com paralisações unificadas.
Em Manaus, as coisas caminhavam também para o mesmo colapso, mas o sindicalismo tinha uma organização empresarial. Os professores do município recebiam o maior salário do País, nunca precisaram fazer paralisações. A única vez em que ocuparam uma praça pública foi para festejar o aniversário do prefeito e do governador. A Crítica, que pouco chegava à Vila da Barra, já trazia algumas manchetes de insatisfação de vários setores do funcionalismo público.
Nesta cidade, o período sempre foi de declínio. As melhorias ainda são um projeto a longo prazo. Pelo contrário, as coisas se agravaram. Aliás, nem luta sindical existe mais. As reivindicações são apenas reminiscências. Os sindicatos aderiram ao Sistema e desenvolvem uma política que defende muito mais os interesses do Estado do que dos trabalhadores. É triste. Minha geração caracterizou-se por um grande fracasso.
Conheci Beatriz por acaso. Descia de um coletivo nas proximidades de um supermercado no Bairro da Raiz, quando vi uma jovem com dificuldades para trocar o pneu do carro. Depois daquela gentileza, tornamo-nos amigos e por muitos anos mantivemos um contato a distância. Foi engraçado sairmos do supermercado com aquelas sacolas como se fôssemos marido e mulher.
E foi assim que pôde ajudar-me naquele momento difícil da minha vida. Sua casa, no Bairro da Japiinlândia, ex-invasão que se transformou num local de classe média, tinha pouco mais de quarenta metros quadrados. Quem não gostou foi Carolina, que nunca aceitou minha aproximação com Beatriz. A essa altura do campeonato, preso, pobre, desempregado, não posso esconder determinadas coisas. Por isso, posso revelar o relacionamento amoroso com Beatriz. Não seria justo afirmar que tudo se tenha resumido a sexo, que por sinal era a sua sobremesa predileta. Nunca me saiu da cabeça o desejo de levar Carol e Beatriz para cama, as duas ali, deitadas, lindas, com a libido à flor da pele. Uma vez quase troco os nomes, o que seria uma gafe injustificável. Conquanto desleal fosse o meu comportamento, haja vista que as duas me eram fiéis, nunca me considerei um bígamo, aliás, esse conceito ainda hoje me parece errado, pois, para mim, bígamo não é propriamente o homem que tem duas mulheres. Para mim, bígamo é o homem que tem dois corações.
Por mais que um dia ainda venha a ser alguma coisa vida e ter uma estrutura financeira invejável, não conseguir pagar tudo que Beatriz fez por mim. Foi na verdade uma mãe. Além de me dar proteção, ainda coseu minhas calças e cuidou de minhas necessidades psicológicas. Fernando também sempre esteve presente, embora nunca me tenha visitado neste cárcere. Deixei a casa de Beatriz quando m esconderijo foi descoberto. Uma saraivada de tiros deixou a frente da casa toda destruída. Por pouco não fui atingido Bia, assim chamava Beatriz, chorou como uma condenada Ela não só me esmurrava, mas também buscava a min proteção.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
Views: 3