Manaus, 20 de junho de 2025

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

Notícias da sexta-feira

Em um de seus célebres artigos, Carlos Heitor Cony comenta o papel que o Estado deve ter diante da sociedade. Diz o eminente jornalista, amigo de Thiago de Mello, que a partir do momento em que o Estado deixa de oferecer alguns serviços básicos como saúde, educação e segurança, perde a sua finalidade, não pode continuar mais administrando o destino das pessoas. Isso mesmo, administrando, porque é a única coisa que o Estado brasileiro sabe fazer: aumentar tributos, ameaçar as pessoas nas batidas de trânsito, cobrar Imposto de Renda de quem não tem renda e ainda espancar, com sua polícia opressora, professores que tentam dar exemplo de cidadania. Seguindo a linha de pensamento do mestre, o Estado brasileiro deixou de existir.

Naquela cidade, por sua vez, já não existia havia muito tempo, apesar da teimosia de algumas instituições, da determinação do promotor Francisco e do heroísmo do professor Ferreira, que, hoje, não sei por onde anda. Soube recentemente que o promotor Francisco foi afastado de suas funções. Isso me faz lembrar os professores das universidades brasileiras que, assim que concluem o doutorado, entram com o pedido de aposentadoria. E tudo para fugir da desvalorização salarial que atinge noventa e nove por cento dos cientistas deste País.

A três dias das eleições, o plantão de uma emissora de televisão local, em flagrante desrespeito à legislação, divulgava a última pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública, o popular Ibope, sempre acusado de parcialidade a favor do candidato do Sistema. E não estava sendo diferente.

No comitê central de campanha do jovem candidato, uma multidão, inusitadamente, apresentava-se para trabalhar, de forma voluntária, na fiscalização. Corria a notícia de um esquema de fraude a favor da candidatura do cacique político, que, no horário gratuito na televisão, continuava pregando aquele discurso de salvador da pátria, a solução para o péssimo sistema de transporte público, para a tábua de pirulito em que a cidade se havia transformado, para as unidades básicas de saúde entregues às moscas.

No dia anterior, os jornais noticiaram a paralisação dos professores, dos profissionais da saúde, das polícias civil e militar, enfim, o funcionalismo público tanto do estado quanto do município, pela primeira vez na história, davam-se as mãos numa greve geral que paralisou aquela cidade. As escolas particulares também fecharam as portas. O reitor da Universidade do Amazonas, em nota oficial, anunciou a paralisação, por tempo indeterminado, das atividades acadêmicas. O médico, com a fisionomia de Karl Marx e especialista em doenças tropicais, que chegou à reitoria com um discurso progressista, era filiado ao Partido dos Trabalhadores, o mesmo do Aluísio, professor do Curso de História. Até mesmo as poucas faculdades particulares, com alguns de seus cursos não autorizados pelo Ministério da Educação, resolveram dispensar os seus alunos. O Distrito Industrial, com sua política de baixos salários e de perseguições a líderes sindicais, zombando do dispositivo constitucional, entrou na onda. O comércio parou. Os camelôs anunciaram que trocariam os pontos de venda pelas seções eleitorais. O Judiciário usou do mesmo expediente que o reitor.

Naquela sexta-feira, saí de casa e fui dar um giro pela cidade. Depois de uma hora no ponto de ônibus, percebi que era a única pessoa que esperava o coletivo. Uma outra coisa, no entanto, chamou-me a atenção. O bairro estava deserto. Nem uma vivalma nas ruas. Uma forte chuva desabava sobre uma cidade sem esgoto, sem meio-fio, sem transporte coletivo, sem segurança, sem rede pública de ensino. Dejetos fecais escorriam a céu aberto, um cheiro de podre podia ser sentido a distância; na Igreja de São Sebastião, os sinos badalavam anunciando a missa das sete. A cúpula do Teatro Amazonas foi levantada pelo vento. O monumento de Abertura dos Portos teve suas naus inundadas pela forte chuva que derrubava arvores, telhados e causava o desmoronamento de casas das constantes invasões em que esta cidade se havia transformado. O telhado do Tribunal de Justiça foi jogado contra o Teatro Amazonas.

O igarapé do Mestre Chico transbordou, inundou Sete Setembro e as centenárias casas próximas ao Palácio Rio Negro. Uma prostituta da Praça Dom Pedro, aquela que fica em frente à prefeitura, teimava em resistir à força do tempo. Enrolada em um cobertor, fazia do conhecido coreto sua proteção. Tossia, tossia e tossia. O sangue que escorria de sua boca misturava-se às águas da chuva. Doente, expulsa da casa de swing, Paula passou a habitar a conhecida Praça da Prefeitura. A canseira ficava cada vez mais intensa. O esgotamento físico deixou-a com a fisionomia dos soropositivos em estado avançado. Na verdade, lutava aquela minha ex-aluna do segundo ano acadêmico contra várias doenças; a principal, todavia, era a discriminação de uma sociedade que joga os velhos no asilo e as crianças nos prédios em ruína chamados de estabelecimentos de ensino.

A esmo, passei em frente à Câmara Municipal. E mais dejetos fecais escorriam a céu aberto. No Vagalume, alguém, com a cabeça sobre os joelhos, segurava uma garrafa de cachaça. O terminal da Matriz era um grande deserto. Nenhuma vivalma. Uma cidade fantasma se revelava para mim. Nem sinal do período áureo da borracha. Nem sinal dos turcos e portugueses que enriqueceram nos seringais e no comércio. Todos se fechavam para aquele momento. Todos se recusavam a sair às ruas para ver os dejetos fecais escorrendo a céu aberto. Parecia que aquele cheiro de podre me perseguia. Os ratos que saíam do precário sistema de esgoto ocuparam o zoológico abandonado na grande área pertencente à igreja. As barracas dos vendedores ambulantes, todas cobertas por lona, formavam um grande cemitério de produtos importados jogados nas calçadas. Estranho foi passar pela rua lateral e não ver mais o mercado Adolfo Lisboa. A chamada Manaus Moderna era um outro cemitério de frutas e verduras arrastadas pela chuva que castigava a improvisada feira daquela imensa via pública nunca concluída. Não havia nenhum barco ancorado entre a área do mercado e o Igarapé de Educandos. A imagem que nunca me saiu da cabeça foi ver o telhado do Tribunal de Justiça contra as paredes do Teatro Amazonas.

Parecia o fim do mundo. Parecia um aviso dos céus. Parecia o tão anunciado apocalipse. Parecia o anúncio da era glacial. Parecia a destruição de tudo e a reconstrução de uma outra cidade, com outras pessoas, outra cultura, outra forma de ver o futuro, aplicar a Justiça, desenvolver o ensino e promover o bem-estar social. A noite veio. Repetiu-se a cena: nenhuma vivalma, nem carros, nem as prostitutas que faziam ponto à sombra do Teatro Amazonas, nem sinal de Paula no coreto da Praça da Prefeitura. Uma senhora saiu da ruela que dá ao Bairro do Céu e foi dar sopa para algumas crianças dormindo na calçada da igreja do Colégio Dom Bosco.

O percurso de volta foi pari passo. Não usei o mesmo caminho. Precisava tirar minhas conclusões. O que significava tudo aquilo? A população havia-se mudado? E o engarrafamento dos dias de chuva?

Na Praça da Saudade, o cenário era assustador. Os velhos brinquedos fora do lugar. A banca de revista jogada na esquina da Rua Ramos Ferreira com a Ferreira Pena. Do prédio entre a praça e o Atlético Rio Negro somente um monte de escombros. Um vira-lata arrastava um rato pela boca. Outros roedores acompanhavam os movimentos daquele cão que também habitava aquele cenário. Os versos de Castro Alves, dizendo que a praça é do povo, vieram à cabeça, numa tentativa de entender o deserto em que se havia transformado aquela cidade.

A estátua do fundador da Província do Amazonas ainda estava ali, firme, como que simbolizando o início de tudo e o heroísmo de pessoas que não tiveram seus exemplos seguidos pelas gerações futuras.

De volta ao quarto de madeira, Carol estendeu-me uma toalha. O resfriado mais parecia o início de uma pneumonia. Ela, como de costume, apenas me olhou. Eu tremia. Os dentes em movimentos frenéticos denunciavam que estava para ser vencido pela tentativa de encontrar respostas para perguntas que não tinham explicação. A impressão que tinha era de sermos os únicos sobreviventes daquele cataclismo. Carol estava bastante preocupada, reclamava de constantes enjoos. Várias vezes saiu da mesa, às pressas, e pôs-se a vomitar na pia improvisada daquele quartinho de madeira.

O sábado, véspera das eleições, chegou trazendo consigo o mesmo cenário do dia anterior. Ninguém nas ruas. O sistema de transporte parecia que nunca tinha existido. Os jornais, sem nenhuma explicação prévia, deixaram de circular. As emissoras de televisão fora do ar. O apagão da noite anterior estendeu-se por todo o dia. Parece que o mundo havia parado.

Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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