Manaus, 20 de setembro de 2024

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

O habitat

Desci do interbairro nas proximidades da feira. Já conhecia bem aquelas pessoas. Minha vizinha tinha uma banca de roupas logo à entrada da escadaria. Sempre sorrindo. Daquele pequeno capital fazia milagres. Sustentava as duas filhas do primeiro casamento, Márcio, o filho caçula, e mais um garotão, que a usava da mesma forma que João Romão fazia com a pobre Bertoleza no romance O cortiço. Matilde era uma guerreira e tinha a admiração de todas as pessoas daquela rua. Construiu sua casa, malfeita é verdade, mas construiu. E foi subindo a rua de acesso à casa de madeira, que a vi com a sua empresa sobre a cabeça.

Tínhamos alguma cousa em comum. Fazíamos par- te das estatísticas que ainda possibilitam que este País mantenha-se de pé. Não era mais inquilino há alguns anos. Daquele quarto de madeira passei a me esconder numa velha casa, também de madeira, que ficou sob a minha responsabilidade, quando o meu tio, recém-aposentado, suicidou-se na fila do banco. Na verdade, havia herdado aqueles seis metros quadrados construídos numa invasão só vista em época de eleições. Esse tem sido o comportamento dos políticos deste Estado: só procuram a pobreza quando precisam submeter-se ao sufrágio universal. Poderia não ser nenhum apartamento com suíte, dois quartos, sala, copa e cozinha, sem falar em playground, edificado num caixote de cimento armado na Avenida Médice, área nobre da capital da Zona do Comércio, supervalorizada pela especulação imobiliária. Mas para mim era o meu habitat, clássica palavra latina usada como oxítona por ignorantes metidos a intelectuais. No andar superior, a biblioteca: pequeno acervo de pouco mais de dois mil exemplares, onde guardava a assinatura de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, aquele da Intentona Comunista, quando de sua única visita a esta cidade na primeira eleição direta para presidente depois do regime militar. Regime militar com iniciais minúsculas, pois não vou dar destaque a um acontecimento que tanto casa, mas o acervo. Ali, cercado por manuais de literatura e nos envergonhou. E era minha única riqueza. Não a velha gramática, amei Carolina, ao som de Toquinho e Jobim, N que tenha sido meu primeiro orgasmo, mas uma transa por mim considerada clássica entre todas as aventuras que vive. Pela minha vida, já passaram mais de duzentas mulheres, entre casos, paqueras e encontros de três horas. Mas Carol, depois de tudo que passei e de reconsiderar uma série de coisas, foi única, não só por ser meu tipo de mulher, morena, mas também por apresentar qualidades distantes da maioria delas. Poucos conseguem livrar-se do Determinismo. Carol fala em cursar a Faculdade de Direito. Que Deus ilumine seus pensamentos, que tudo não passe de delírios de ume mulher que descobriu o sexo com um preso provisório e incapaz de contratar um advogado. Os defensores públicos apenas cumprem o preceito constitucional de ninguém ser condenado sem direito ao contraditório e ampla defesa. Marx disse ser o fator econômico o motor da História. Portanto, como contratar um advogado para acompanhar o meu caso?

-Não se preocupe – disse-me certa vez em uma de suas visitas a esta cela. Estarei todo dia na porta do juiz Vai dá tudo certo. Você sairá daqui e ainda vai reassumir sua cadeira no magistério. Por mim, você pode realizar tambémo seu projeto de cursar Direito. É só uma questão de iniciativa. Um homem tem o poder sobre suas decisões.

– Eu sei. Eu sei.

Seu sorriso era verdadeiro. Aqueles lábios, conhecia- -os muito bem. Fui o primeiro homem na vida daquela mulher. Aquele corpo, minhas mãos, a vergonha que ela teve quando tudo foi consumado. A partir daquele momento, creio eu, meus sentimentos distanciaram-se cada vez mais de Julia. Passei a querer aquela mulher, a vê-la como cumplice dos meus problemas, participante das minhas ideologias e inteiramente conectada aos meus anseios. A cama já não era a única coisa que nos prendia. Havia algo além da cama, além do egoísmo que marca a vida moderna e os valores humanos.

De necessidade e insegurança
faz-se o homem

– A Literatura brasileira, para a maioria dos historiadores, divide-se em duas eras. A primeira, chamada de Era Colonial, abrange os séculos XVI, XVII e XVIII. Esse período nada mais foi do que uma continuidade do pensamento cultural português, que nos impôs uma língua, uma religião e um conjunto de normas que nos impossibilitaram de agir ou de pensar em um processo de mudança. Somente a partir…

As pernas daquela aluna deixavam-me sem conteúdo. Era impossível não dar atenção ao que via na minha frente. Para tudo há um limite. Ainda não é tão cafona dizer que toda ação provoca uma reação. Minha cabeça, entretanto, refletia sobre outros problemas e outras atitudes. Logo eu, professor dedicado, conhecedor da matéria, exemplo para o corpo docente. Agora viciado pela ideia de obter fortuna, vantagens, mesmo sabendo que as consequências podem ser dramáticas. Sim, fortuna, porque fazer parte de uma organização criminosa só pode render altos dividendos. Era o que eu pensava. Todavia, minha cabeça era também um verdadeiro turbilhão de questionamentos. Criado pelo mundo, educado às porradas pela vida, longe da família, sem conselhos de mãe ou carta de recomendação, curso superior completo, professor não concursado da rede estadual de ensino, contratado no famigerado Regime Especial, guar- dando o jantar para o almoço do outro dia. O secretário de educação falava em concurso público. Havia mais garantia. Sem que as circunstâncias obrigassem-me a monologar sobre essa situação, lembrava-me de uma vinheta na televisão que dizia triste ser o país que não valoriza seus cientistas. Vejam bem: curso superior completo, cheio de projetos na cabeça, pronto para contribuir com as reais mudanças de que o Brasil tanto precisa.

Vivia um dilema maior que as dívidas e a necessidade de fazer alguma coisa em meu próprio benefício. Uma vez quase que dou um murro na imbecil de uma professora que dizia ser a educação um ato de amor. O marido daquela medíocre, isso mesmo, daquela medíocre, deveria ser um empresário bem-sucedido ou sonegador de impostos. Vi professor ter passamento em sala de aula vitimado pela fome. Eu, solteiro, sem ter um pinto ao qual dar água, vivia da forma em que vivia, imaginava um pai de família sem poder explicar ao seu filho a falta do pão de cada dia. Carlos, professor de Matemática, certa vez, numa rodada de amigos, há quatro meses sem receber seus vencimentos, comentou que estava, o que não era novidade, sem dinheiro, que na casa dele não havia mais leite. Um do grupo, de forma irônica e sem-vergonha, disse que ele, Carlos, não queria comida, queria era mamar.

Um homem pode ser feito de várias coisas. A necessidade e a insegurança, porém, sobressaem-se, quando se busca a formação de uma personalidade. No meu caso, era feito mais de necessidade do que propriamente de insegurança. Necessidade acima de tudo de comida. O magistério nem isso me possibilitava. Também de ajudar minha família no interior. Vítima do êxodo rural, nunca mais havia dado notícias à velha. Pobre mãe! Dera à luz um filho que não lhe dava nada. Nem sinal de vida.

– Professor! – disse-me Júlia, uma aluna do segundo ano desejada por todos os colegas de aula, inclusive professores. Uma espécie de top model de estatura baré -, não entendi a diferença entre o Realismo e o Naturalismo. O que e, por exemplo, um romance psicológico? E o romance pato- lógico? Posso dizer que todo romance realista é um romance

naturalista? Não seria o contrário?

Tempo encerrado.
Na próxima aula eu explico – falei.
– E o teste da segunda?
– Tens razão! Está marcado.

Ao cruzar o corredor:

Posso ir à sua casa? Isto é, se o senhor não se importar. São só algumas explicações e a correção de um exercício sobre conjugação verbal. Ainda não entendi o futuro do subjuntivo dos verbos ver e vir. Se concordar, posso ir ainda hoje. Professor, está tudo bem? Estou falando com o senhor!

– Ah, sim, desculpe-me, Júlia!

Parecia estar a cem quilômetros dali, pensando se realmente ingressava ou não na organização. Pouco me importava em dar extra explicações a quem quer que fosse. Não ganhava para aquilo. Mas raciocinei ser Júlia uma aluna especial e, não propriamente pela beleza ou excessivo interesse pela matéria, mas por algo que nem mesmo eu, acredite quem quiser, poderia explicar. Ficava bem a uma aluna alta hora da noite pegar explicações na casa de um professor? As más línguas que o digam. À época não havia muito essa história de pedofilia, assédio sexual, assédio moral e coisas do gênero. O fato social continua impondo ao Direito a necessidade de sanção aos indisciplinados.

Era a bagunça de sempre. O velho sofá de promoção atravessado na sala, o toca-discos movido a manivela, espécie de vitrola de antes da cibernética. Nada de três em um importado, com cd e vídeo. O mesmo fogão de duas bocas e um refrigerador comprado de segunda mão. Isso tudo não justificava. Os homens é que sempre tiveram fama de desorganizados. Atitudes das mais pífias são atribuídas a essa raça que vem perdendo espaço para o universo feminino, já inferior até em quantidade: adentrar em casa com lama no sapato, deixar cueca debaixo do chuveiro, tomar água na boca da garrafa e outras coisas desse jaez, que elas, as mulheres, quero dizer, as feministas, atribuem-nos. Este discurso soa meio machista. Meu finado tio talvez fosse uma exceção, todavia, o sobrinho não tinha as menores pretensões de sê-lo.

– Sente-se e desculpe-me pelo mau cheiro.
– Obrigada! – disse-me Júlia.
– Aceita um Nescau?
– Aceito.

Em dois minutos pus o Nescau na mesa com um pouco de torrada e dirigi-me à biblioteca para apanhar um livro de Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, onde quiçá pudesse encontrar a maldita diferença entre Realismo e Naturalismo. Pensava em ler excertos de Dom Casmurro e de O Cortiço para que ela melhor pudesse observar o discurso literário e, assim, as diferentes de estilo e de tema. Ela nem havia tocado na xícara com Nescau e somente duas semanas depois soube o porquê: estava sem açúcar. Naturalmente não

fizera aquilo de propósito. É que não havia.

– O Naturalismo e o Parnasianismo são manifestações do Realismo. O primeiro, em nível de prosa e, segundo, de poesia. Agora a diferença básica entre o Realismo e o Naturalismo é que…

Como se pode observar, meu caro leitor, esforçava- -me. Senti por debaixo da mesa as pernas de Júlia que me incomodavam de forma proposital. Pedi licença e fui ao banheiro, como ainda dizem as pessoas de avançada idade, verter água. Ao voltar à cozinha, Júlia não mais se encontrava. Na sala, nada; na porta de acesso, também. Pronto, falei, a mulher foi-se embora.

Já só de cueca, fui para o quarto. Parodiando Osório Duque Estrada, ela estava deitada eternamente em berço esplendido, com aquela nudez de mulher bonita e gostosa. Sim, gostosa, porque há mulheres que são belas, mas que não transmitem sensação ao homem.

– Obrigada pela explicação, professor! Mas o senhor sabe que uma mulher não é feita somente de estudo. Há o outro lado, o orgânico, a satisfação dos prazeres que só o

homem pode dar.

Que explicação! Que loucura! Aquilo tudo me era inusitado. O próprio vocabulário daquela jovem me era desconhecido: uma mulher não é feita somente de estudos, lado orgânico. Cada termo talvez nunca usado até mesmo por Sigmund Freud. Senti-me de certo modo não indefeso ou com medo, mas lembrando aquela peça de Nelson Rodriguez Toda nudez será castigada, não poderia ficar indiferente àquele corpo ali exposto, ali exposto, ali exposto. Que fazer? Expulsá-la da velha casa e processá-la por assédio sexual? Não o faria até porque uma mulher merece cuidado e devida atenção. E assim se fez.

Tive-a por toda a noite. Lavamo-nos de suor durante toda a madrugada. Fui aluno. Sim, aprendi cada forma de amar que precisei catalogá-las para não esquecer. Usei as mãos. Os pés também foram ferramentas de trabalho. Uma tal de tijolinho foi a de que mais gostei. Aqueles mamilos me fizeram lembra os seguintes versos de Manuel Bandeira: “Os teus seios miraculosos/, que amamentaram sem perder o precário frescor da pubescência! teus seios, que são como os seios intactos das virgens/, são dele quando ele bem quer”. Possuí-os com a amabilidade dos amantes e a sensibilidade dos sábios. Apesar disso, uma coisa me sucedia: como encarar Júlia na segunda, justamente no dia do teste? Não haveria problemas. Encarei-a de forma séria. Fiz de conta que nada tinha acontecido. O senhor pode repetir a regência do verbo custar? Por que mesmo que essa preposição é possível, se não existe sujeito preposicionado? Por que as pessoas falam tão errado? A preocupação deveria ser dela. Fiz a minha parte. Não houve teste. Não somente de necessidade e insegurança faz-se um homem.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani – Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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