Manaus, 20 de junho de 2025

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

O tempo 

A sopa preparada por Carolina deu-me uma sonolência. Não conseguia pegar na leitura e fui vencido pelo cansaço. O velho sofá, atravessado entre a sala e o que chamávamos de quarto, serviu-me de cama. A tremedeira ainda me provocava grandes consequências. Até hoje não consigo avaliar se aquilo foi um sonho. Os sintomas eram de delírio. Estava totalmente impregnado e dopado pela antropofagia oswaldiana. Carlos Drummond de Andrade escreveu que era preciso descobrir o Brasil, escondido atrás das florestas. “O Brasil está dormindo, coitado”, escreveu o poeta mineiro, que morreu nos braços da amante.

Não havia limites entre sonho, loucura, alucinação, delírio ou vírus antropófago. O lugar em que me encontrava era muito escuro, impossível de ver por alguma fresta as luzes do sol. Só sei que lia, lia, fazia anotações, fazia descobertas; era uma espécie de cientista das ciências humanas. Pelas minhas pesquisas, por exemplo, pertencia à nona geração dos descendentes de Francisco de Orellana, que, no posto de lugar-tenente, era um dos subordinados de Gonçalo Pizarro na conquista do País da Canela.

Autorizado por Pizarro, teu descendente, filha, trabalhou na construção de um bergantim. Era preciso dar continuidade ao projeto. Havia um país a ser conquistado. Os mantimentos começaram a rarear. Nada pior do que a fome. Muitos tombaram ali, como heróis e covardes. A procela mais parecia um dilúvio. Água e mata. Água e fome. Água e deserção. Recolhi as camisas velhas e imprestáveis que o lugar-tenente me solicitou. A estopa, para a calafetagem, foi insuficiente para o tamanho do empreendimento. Por isso, muitos tiveram de ser enterrados nus. E assim se fez. O berbantim e as quatro canoas desceram o rio. O frei Gaspar de Carvajal sempre em gestos de penitência. Francisco de Orellana seguia as ordens superiores. Já os cinquenta e quatro homens, dispostos a enfrentar o já destruído Império Romano, obedeciam às ordens do lugar-tenente. Num cenário de água e mata, mais de uma semana depois surgiu um povoado. Não era Noé e sua arca. Era o agravamento de uma incerteza que se abateu sobre a maioria dos poucos que ainda resistiam à fome, à selva, às enfermidades, enfim, à tentativa que se apresentava como infrutífera de encontrar um país construído por lenda. Voltar? Impossível. Francisco, no entanto, renunciou ao cargo, mas, contrariando a una unanimidade de Nelson Rodrigues, foi reconduzido ao posto. E foi assim que, pari passo, a esmo, chegaram à boca do rio Negro no dia 3 de junho de 1542. Os Franciscos são ousados. Que o diga o promotor que ousou enfrentar o braço da máfia italiana impregnado nesta cidade. Que o diga um advogado natural de Itacoatiara, que tentou ser prefeito daquele município para livrar aquelas pessoas do atraso político e do retrocesso democrático.

O rio Orellana deveu-se ao narcisismo do comandante. O rio das Amazonas, todos nós sabemos a origem do nome. Só não sabíamos que o descobridor passou alguns dias onde hoje fica esta cidade. Em uma ubá, chegou à Ilha de São Vicente, atravessou um igapó que chamamos de Eduardo Ribeiro e parou exatamente onde hoje está erguido o Teatro Amazonas, o grande símbolo do esplendor e da miséria do período áureo da borracha.

Acordei com Carolina passando a mão pelo meu pescoço como se estivesse medindo o grau de febre. “Toma um pouco”, chegou a dizer, estendendo-me um prato de sopa. Sentei-me no velho sofá que me havia servido de cama. Ela aproxima-se, passa a mão no meu joelho. Eu, de soslaio, abraço-a. Ela, também de esguelha, retribui o meu gesto. E me ponho a chorar. Seu ombro serviu-me de amparo.

À proporção que me abraça, com a mão direita enxuga as lágrimas. Usa da blusa. Pega de minhas mãos e passa pela sua barriga.

A luta foi em vão. No outro dia, o povo, ainda que à base de fraude, daria continuidade aos erros que a História tenta perpetuar como caminhos do desenvolvimento. Não sei se o anedótico Fernando e a turma do Bar da Francisca tinham o mesmo sentimento. Não sei se algum iconoclasta mandaria erguer um monumento com o nome de todos os professores que se opuseram à política de opressão de mandatários que sempre administraram em benefício próprio. Não sei se um dia os meus filhos se orgulharão de minhas ações. Talvez não. Errei. Preferi a vida de crime à carreira de professor. Mas agi por uma boa causa. Espero com isso que meus descendentes me perdoem, já que de alguma forma os envergonhei. O que ainda me mantém vivo neste cárcere é saber que a dinâmica dos acontecimentos faz as coisas mudarem de rumo. Como fede esta prisão! Por que Carol não mais aparece? Citando os versos de Castro Alves neste momento de reflexão e de fraqueza: “Deus! Deus! Onde estás que não respondes”?

Estes manuscritos parecem não terem destinatário. E o sábado seguiu sem nenhuma novidade. Aquele cenário lembrava o fim do mundo, se se pudermos ao menos imaginar a dimensão da tão badalada tragédia. Ninguém nas ruas. O sistema de transporte continua paralisado. O seu Arigó, com o tabuleiro de peixe, anunciava as novidades da Panair. Finalmente uma ambulância surge a distância. A luz vermelha com a buzina de carro de polícia não quebrou o silêncio sepulcral que perdurava desde o amanhecer. Apesar do sinal de vida, o cenário ainda era desolador.

O temporal que quase destrói uma cidade sem saneamento fez um grande bem para o visual urbano. Manaus, nesse período, além de ser uma cidade suja, era emporcalhada em todos os níveis. A frágil e medíocre legislação eleitoral não conseguia combater a quantidade de cartazes afixados em postes, muros, casas, repartições públicas. A Constantino Nery parecia um sanitário a céu aberto. A propaganda eleitoral estava por toda a parte, inclusive nos vidros traseiros dos transportes coletivos. Foi uma lavagem geral. Pela primeira vez, a cidade estaria limpa no dia das eleições. O forte temporal não serviu apenas para jogar o telhado do Tribunal de Justiça contra as paredes do Teatro Amazonas.

O grande dia.

O grande dia havia chegado. Grande pela sua simbologia. Pequeno pela manutenção do status quo que, pelo visto, iria proporcionar. Ainda assim, lá pelas nove horas da manhã, eram poucas as pessoas que se dirigiam às seções eleitorais. Restabelecido o sistema de energia elétrica, as emissoras de televisão e de rádio passam a dar as primeiras notícias sobre a grande festa da democracia. Bem-aventurado o povo que tem o poder de escolher seus representantes. Amaldiçoado o povo que precisa esperar quatro anos para nem sempre tirar do poder os vampiros dos cofres públicos.

Pobre Nação, que nunca deixou de ser Colônia, que sempre aceitou passivamente ser despido em um processo eleitoral fraudado com urnas fabricadas em gabinetes. E esta cidade herdou esses males. Por outro lado, precisamos continuar acreditando nas instituições e condenando as pessoas.

O jovem deputado aparece na televisão pedindo que as pessoas, de forma pacífica e ordeira, dirigiram-se aos locais de votação. Acompanhado do seu vice, o advogado com cara de rato, passa a percorrer vários locais de votação. Visivelmente cansado depois de uma maratona de caminhadas e comícios, chega ao Instituto de Educação do Amazonas, com sua escadaria pomposa, meio clássica e meio Baré, abraça algumas pessoas e ouve de uma senhora de mais de oitenta anos um discurso que lembrou o do velho do Restelo. Suas palavras pregavam a conscientização, ao mesmo tempo condenavam o Estado brasileiro por sempre ter sido governado por oligarquias. Aquela senhora não me era estranha. Soube depois que era uma professora aposentada da rede pública de ensino, líder sindical na década de cinquenta, marxista. Certa vez protestou contra as ameaças aos intelectuais que se reuniam sob o mulateiro da Praça Heliodoro Balbi, a popular Praça da Polícia. Jovem, viu Jorge Amado ser preso em Manaus, em 1937, como uma das vítimas do Estado Novo. A professora Ofélia levava todos ao êxtase nas aulas de Literatura. Declamava Navio Negreiro, aquele famoso poema de Castro Alves, como se estivesse em alto mar. “Tanta infâmia e covardia”, repetia exaustivamente andando entre as filas das carteiras escolares.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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