
*Francisco Calheiros
Continuação…
Fortuna adversa fuit
Para eles a sorte estava dando sinais de que passaria a ser adversa. E muito de inusitado estava acontecendo naquele dia de votação. Manaus, a História registra muito bem, virava um sanitário, com o lixo eleitoral prejudicando até a respiração das pessoas. Agora, no entanto, estava tendo uma eleição tranquila. Não havia, acredite quem quiser, os chamados bocas-de-urna, homens e mulheres contratados para pressionar as pessoas a votarem em determinados candidatos. Diz-se que eleição se ganha no dia, com esquema de compra de voto, condução gratuita, favorecimentos, ameaças, enfim, coisas típicas de países cuja democracia ainda não foi consolidada. A cidade estava dando demonstrações de amadurecimento, ou tudo não passava de alucinação de um homem que, por ter vivido aquele triste momento e, agora, prostrado no chão de um sistema carcerário, apresenta sintomas de loucura.
Nos locais de votação por onde passava, o jovem candidato já era saudado como o mais novo prefeito da cidade. Seu vice sorria e até já mostrava os dentes, encarava as pessoas e tentava ajeitar os poucos cabelos que ainda lhe restavam. O economista e candidato a vereador também os acompanhava. João, sempre sério, cumprimentava um a um dos presentes.
Na escola Percília do Nascimento Souza, no Bairro da Compensa, na verdade, um depósito transformado em estabelecimento de ensino, o candidato foi recebido com o Hino Nacional cantado por pessoas humildes, malvestidas, tristes, como quem depositava em um único homem todas as suas esperanças, todos os seus anseios e toda a sua revolta. Uma emissora de televisão local, sempre tendenciosa, noticiou o resultado de uma pesquisa de boca-de-urna, dando vitória ao cacique político, que dava sinais claros de preocupação.
Sério, com a barba por fazer, visivelmente abalado, ele aparecia em público cercado por seguranças. A mesma emissora de televisão também noticiou uma operação do Tribunal Regional Eleitoral com a Polícia Federal e a detenção de pessoas oferecendo dinheiro a eleitores no Colégio Euclides da Cunha. O mais grave de tudo foi a prisão do vice-candidato a prefeito na coligação do Sistema com uma mala cheia de dinheiro. O pátio da Polícia Federal ficou pequeno para a multidão que esteve no local, a maioria formada por curiosos, para ver de perto o que havia de fato acontecido. Um batalhão de advogados usava de todos os recursos de que dispunha. Era o desespero, ou era a repetição de velhas práticas e a tentativa de fraudar um processo eleitoral que tomava novos rumos? Um deputado estadual, com um charuto atravessado na boca, olhava as pessoas nas filas de votação com um certo desdém. O clima na comitiva era de apreensão. Parece que estavam com medo daquelas pessoas, que os olhavam com a maior indiferença, com o maior desprezo, como se estivessem com alma lavada. À saída da escola, o candidato foi atropelado por uma criança de aproximadamente cinco anos. A bandeirola com um a estilizado, que a dita criança levava nas mãos, parecia mais uma forma de provocação. Os dois se olham, apesar do tumulto que dominava o ambiente. O olhar dela era de vingança; o dele, de vergonha.
A mesma bandeirola com o a estilizado invadiu a cidade. Muitas esquinas mais pareciam um estádio em dia de decisão, tal era a quantidade de bandeirolas que as pessoas carregavam. Nas janelas das casas, o gesto se repetia. Nas paradas dos coletivos, erguiam o braço em demonstrações de apoio. Os versos “Governo que não respeita/aluno nem professor/pode ter tudo no mundo/mas não tem o nosso amor” foram repetidos numa grande passeata na Bola do São José, no mesmo local onde as pessoas incendiaram os ônibus em protesto contra o péssimo sistema de transporte coletivo. Mais de vinte mil pessoas participaram da manifestação. A bandeirola com o a estilizado deu um colorido à parte. Um panelaço fez parte do ritual. As pessoas gritavam que a partir de janeiro teriam água, escolas, feiras limpas. As ruas da cidade foram ocupadas pelas pessoas que gritavam, cantavam, sambavam, rezavam, riam, choravam. Como não poderia deixar de ser, o quartel general do candidato do Sistema aos poucos foi sendo abandonado. Nada de cabos eleitorais, bocas-de-urna. O famoso marqueteiro, que trouxe tudo pronto de São Paulo, entrou em um carro com vidro fumê e seguiu em direção ao aeroporto internacional. Fuga? Medo? Que sentimento dominava aquele homem? Os vencidos merecem o mesmo respeito. Ninguém poderia imaginar aquela cena. Érico Veríssimo, em um de seus romances, se não me falha a memória, em Incidente em Antares, escreveu: “O navio deve estar mesmo afundando, pois os ratos já começaram a abandoná-lo”.
A metáfora do escritor gaúcho era oportuna. O navio, nesse caso, era o poder ao qual se apegavam com unhas e dentes. Uma eventual derrota poria termo a uma complexa organização que precisava mais do que nunca da administração pública, das obras superfaturadas, enfim, de continuar com a sangria de uma sociedade doente, de continuar com a política de humilhação de professores submetidos a baixos salários e a péssimas condições de ensino. O navio já não tinha comandante. O navio estava afundando. O navio não tinha mais, surrealisticamente, um aeroporto onde pudesse aportar.
A diretora da Unidade Educacional, a loira com cara macaco, foi apontada pelo quartel general como uma das responsáveis pela baixa votação do candidato do Sistema entre os professores e os alunos. Uma injustiça. Estavam colhendo o que sempre plantaram. Estavam sendo punidos pelo mesmo povo que há décadas continuava sendo tratado num regime de escravidão. Entrou no velho chevette, cabisbaixa, com a clara intenção de não encarar as pessoas. “Com licença”, foram suas palavras ao porteiro da escola.
Às dezessete horas, encerrou-se a votação. Uma chuva fina caía sobre a cidade, que agora respirava um outro ar, um outro sentimento de perspectiva. No local da manifestação, a professora Ofélia resistia a ideia de voltar para casa. Pensou em ir ao Tribunal Regional Eleitoral para acompanhar o início da apuração. Os primeiros boletins só sairiam a partir das vinte e duas horas. Mesmo assim, as pessoas foram chegando. Homens, mulheres, idosos, crianças, todos aguardavam ali, ansiosos, as primeiras parciais. E foi assim que me pude aproximar daquela professora que tanto influenciou a sua geração e que continuava dando exemplos de cidadania.
Atravessei a pista principal.
Ela não demonstrava cansaço. Vaidosa, o batom resistia à fina chuva que caía naquele momento. Reconheceu-me à medida que me aproximava:
– O que você acha? – perguntou-me pragmaticamente. Eu fiquei, mediante a pergunta, sem saber se lhe dava boa tarde ou boa noite, haja vista que a olho nu não era possível precisar as horas. Mas a noite estava à porta. E a chuva insistia, como se quisesse lavar os restos de toda uma história.
-Venceremos? Insistiu.
-Talvez.
-E se for uma tragédia?
– Não quero nem pensar.
Uma viatura da polícia para a alguns metros de nós. O promotor Francisco desce primeiro e, acompanhado por dois investigadores, pede-me que os acompanhe. Ele, sempre sério, carregava debaixo do braço o catatal de papéis que lhe deixei no hospital. Não sei por que motivo não fui algemado, uma vez que nessas circunstâncias as coisas acontecem de forma bastante arbitrária. Nunca soube de caso parecido: um promotor acompanhar, pessoalmente, uma ação policial quando da detenção de uma pessoa. Isso é coisa de investigador, de delegado, enfim. Parece que o doutor Francisco estava ali muito mais para me dar proteção do que para me acusar de envolvimento com o narcotráfico.
-O senhor tem direito a um advogado – foram suas únicas palavras. A imagem do professor-policial, que transformou seu fusquinha em cocaína e ficou preso no Batalhão da Polícia Militar, no Bairro de Petrópolis, veio-me de forma repentina. Aliás, senti-me o próprio. Talvez a única diferença tenha sido não querer mostrar o rosto para esconder a vergonha.
A Delegacia de Entorpecentes não tinha muito movimento. O escrivão à porta de entrada. No corredor à esquerda, era possível ver em uma das celas alguns detentos praticamente nus. O percurso da Bola do São José até a delegacia foi-me uma eternidade.
Lembrei-me de quando cheguei a esta cidade. Minha velha mãe chorou no portão de casa. Tomé era ainda criança e estava sentado numa caixa de madeira. Minha chegada à universidade foi quase que ocasional. Fui aprovado no vestibular para o Curso de Letras sem saber que a referida graduação formava professores de Língua Portuguesa e Literatura. Queria ser engenheiro. Brincava na infância de construir edifícios nos fundos do quintal. A vida acadêmica. As passeatas. Lembrei-me nitidamente do trote de que fomos vítimas naquela sexta-feira à saída do campus. Um engraçadinho desce de um coletivo às pressas anunciando o bloqueio da entrada do campus pelas tropas do Exército. O presidente José Sarney havia sido deposto por um golpe militar. Era o mês de fevereiro de 1988. E o Brasil, três anos depois do início da chamada Nova República, estava sendo novamente vítima de um golpe de Estado. Felizmente tudo não passava de anormalidade de um jovem universitário envolvido com álcool e drogas. Foi nesse mesmo dia que conheci Ceide, a mulher que marcou definitivamente minha vida. Foi nesse dia que vi Thiago chegar ao campus. Passei a admirar o Aluísio a distância. Assisti a uma de suas aulas pela janela. Os verdadeiros encontros são ocasionais.
Sentado no banco traseiro da viatura, continuava minha volta ao passado, às reminiscências que de alguma forma me ensinaram alguma coisa. O Bar da Francisca, as conversas das sextas-feiras, as assembleias gerais para discutir uma nova política salarial, minha volta para casa pelo
Beco Natal, todos os acontecimentos que me conduziram a este lugar. Não sei se seria correto dizer que Carolina viu-me entrar na viatura. À medida que o carro afastava-se, ela olhava-me com as mãos erguidas, que depois foram levadas ao rosto. Nunca soube o teor da conversa que ela teve com a professora Ofélia. Vi, todavia, que as duas abraçaram-se como se se conhecessem havia anos. Pareciam mãe e filha.
Em menos de meia hora, a delegacia mais parecia o Bar da Francisca, uma vez que quase todos estavam ali. No velho Opala do professor Marcos, comprado com o dinheiro das fitas piratas vendidas por ele na feira do bairro, chegaram também Carlos, Gonzales e João Antônio. Fernando não estava entre eles. Senti-me feliz com aquela manifestação de apoio, conquanto soubesse que precisaria pagar os meus erros. Estavam ali por solidariedade. Sim, por solidariedade. Éramos amigos. O que ganhei com o narcotráfico usei em benefício da categoria a que pertencia. Paguei por meses e meses passagens de ônibus para a maioria daqueles professores. Também durante meses distribuí cestas básicas aos mais próximos. A própria velha Ermita, que Deus a tenha, recebeu minha ajuda. Enferma e sem poder comprar os medicamentos, esqueci as vezes em que ela foi indiferente às nossas causas. Mandei imprimir panfletos do sindicato convocando a categoria para reuniões e assembleias. Comprei uma máquina de xerox para a nossa escola. Sentia-me revoltado em ter de copiar um texto no quadro quando da realização de uma prova da minha disciplina. Quase tudo que ganhei foi gasto dessa forma. Nunca fiz investimentos. Hoje, por exemplo, se ainda sair daqui, não tenho para onde ir. Pensei até em construir uma sede para o sindicado, que ainda hoje vive em salas alugadas na área central da cidade.
O ritual não levou mais do que cinco minutos. Não usei o polegar direito. Não houve a sessão de fotos. O delegado, talvez inibido com a presença do promotor, manteve-se calmo. Notícias havia de que os recém-chegados eram primeiro levados para uma sala de tortura. Mas, justiça seja feita, isso não aconteceu comigo. Nunca tive cela especial. Se já não tenho aqui, imaginem em uma delegacia em ruínas. O promotor Francisco ainda me acompanhou até o corredor como quem quisesse dizer alguma coisa.
Fui jogado em uma cela em companhia de onze detentos. De forma abrupta, a grade fecha-se. Ouço ainda a voz de Carolina perguntando por mim. A resposta foi que detento nenhum poderia receber visitas.
-A senhora é advogada? – perguntou-lhe o guarda de plantão. A reação de Carolina deve ter sido de vergonha. Não, não era advogada. Mas um dia seria. Acabaria o supletivo e, com certeza, passaria no vestibular para a Faculdade de Direito. Saiu ela da delegacia com a cabeça baixa sem responder à pergunta que lhe havia sido feita. Confessou-me depois que foi chorar na parada de ônibus.
Era um vitorioso, apesar de tudo. Considerava-me um vitorioso, apesar de tudo. Minhas atenções estavam voltadas para os primeiros resultados da votação. Os primeiros boletins estavam previstos para as vinte e duas horas.
A fina chuva que caía na cidade era para aliviar a tensão dos presentes em frente ao Tribunal Regional Eleitoral. Aos poucos as famílias foram chegando. Muitos levaram os filhos. Um carro de som subiu a calçada. O som do carro, transmitido para o alto-falante, passou a dar os primeiros resultados. Com dez por cento dos votos apurados, a passos de tartaruga, a eleição estava equilibrada. A cada boletim os nervos iam à flor da pele. A cada parcial aumentavam os batimentos cardíacos. Os boletins da Zona Leste mudaram completamente a situação. O jovem candidato passa a ter uma ligeira vantagem. A diferença dilata à medida que outras parciais vão sendo divulgadas. Uma emissora de rádio anuncia a vitória do jovem deputado, uma vez que a diferença aumentava cada vez mais, e a votação do candidato do Sistema não dava sinais de reação.
As pessoas foram ao delírio. Gritos. Vivas. Choros. Um foguetório domina o céu da cidade. Foram mais de quinze minutos de fogos de artifícios que lembravam a chegada do Ano-Bom na Praia de Copacabana, e também na Ponta Negra, coitada, àquela altura, entre às ruínas e local de crimes hediondos nas madrugadas barés. Apenas ouvia a agitação da minha nova residência. Mas podia também ver o rosto das pessoas que a vida inteira esperavam por aquele momento. As bandeirolas com o a estilizado davam um colorido à parte. O guarda de plantão também comemorava.
Os outros detentos olhavam-me de forma desumana. Todos, com exceção do mais alto, eram mal-encarados. Aquele sujeito não me era estranho. Puxando pela memória, vi que se tratava de Israel, ex-policial militar que abandonou o quartel por não suportar o envolvimento dos colegas de fardas com o narcotráfico. Ainda frequentou uma igreja no Lírio do Vale, nas proximidades do Campo do Buracão. Com um megafone na mão, ficava na esquina pregando o evangelho. Mas foi
por pouco tempo. Quando soube que o pastor da sua igreja estava enriquecendo à custa do dízimo, tentou pôr fogo no templo. Preso, virou viciado. Passou a viver de pequenos furtos e era um dos frequentadores daquela delegacia. Passei ali três meses. Conversamos pouco. Falou-me da vida dele. Falei-lhe da minha. Viramos aliados. Foi ele que me livrou das agressões a que normalmente os novatos são submetidos. O Rato do Quarenta e o Ensebado tentaram submeter-me a esse vexame. Israel travou uma luta sangrenta com os dois. O guarda de plantão foi até a cela, olhou, levou o cigarro à boca e voltou para a recepção. Depois fiz amizade com quase todos eles. Dei-lhes aulas de Literatura. Falei de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, do apocalíptico Thiago de Mello, enfim, de todos os que me vinham à cabeça. Perguntaram-me se era verdade que no Amazonas também existiam poetas. Não só respondi como ainda recitei versos de Luiz Bacellar e Alencar e Silva. Todos eram muito humanos, apesar de terem sido excluídos da sociedade e de não terem nenhuma oportunidade de ressocialização. Uma vez fizemos uma faxina geral naquela cela. O delegado passou a ir com a nossa cara. Os guardas de plantão já não nos tratavam com tanta indiferença. Um deles havia sido meu aluno e continuou chamando-me de professor.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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