
*Francisco Calheiros
Continuação…
Terra adubada
O Tribunal Regional Eleitoral divulgava, a cada cinco minutos, um novo boletim. Um especialista em eleições, em entrevista à Rádio Difusora, já considerava o jovem deputado o mais novo prefeito da cidade. Amanhecia, quando o candidato chega ao prédio do Tribunal. Uma multidão, mesmo com uma chuva fina e insistente, não arredava o pé. Recebeu-o cantando o Hino Nacional Brasileiro. Muitos, soube depois, trocaram mais garrida por Margarida. O importante, porém, era a simbologia do momento. Do alto da sacada o presidente do Tribunal mostra para o candidato o desenrolar da votação, que já o consagrava vitorioso.
Não podia, daquela cela, descrever a emoção das pessoas ali presentes. Mesmo a distância imaginava a velocidade dos batimentos cardíacos, a reação de quem há anos estava com um grito preso na garganta. A hora era de expor aquele sentimento. A hora era de olhar para o céu e, com a religiosidade de um povo, agradecer a proteção divina. É verdade que aquele momento só foi possível graças a uma mudança de comportamento de pessoas sufocadas e acorrentadas. É também provável que todos estivessem lá. Refiro-me à turma do Bar da Francisca. O anedótico Fernando, por exemplo, devia ser o maestro. Gonzales, sempre muito crítico, deve ter assistido a tudo pensando na dinâmica dos acontecimentos. Carlos, João Antônio, Marcos, enfim. E o professor Ferreira, que resistiu às pressões da diretora da Unidade, a loura com cara de macaco? De uma coisa tinha certeza: Carolina não estava presente. Da porta da delegacia, a esmo, entrou no interbairro e foi parar lá para as bandas de Santa Etelvina. Precisava buscar ajuda. Mas a quem recorrer? O falido sistema prisional brasileiro não suporta pobres que não podem sequer contratar um advogado. Portanto, de imediato, nada poderia ser feito por parte daquela mulher que nunca me abandonou. Os recursos de Carolina eram apenas suficientes para o vale-transporte usado nas aulas do supletivo.
No barraco da Irmã Helena, pediu um copo de água. A religiosa e líder das invasões recebeu-a com a humildade de sempre. Muito atenciosa, foi falando:
– Entre, minha filha!
Obrigada!
Ganhou muito mais do que um copo de água. Ganhou estímulo. Ganhou, à saída do casebre, um forte abraço. E assim fazia com todos. Sua rotina começava às seis da manhã. Para aquelas pessoas, que viviam naquela área da cidade, era uma verdadeira mãe, embora fosse chamada de irmã. Resistiu o que pôde às ameaças dos latifundiários. Depois desapareceu. Suas ações estavam sempre estampadas nas manchetes dos jornais. No mesmo interbairro, Carolina voltou para casa. O sofá atravessado na sala, os livros que restaram do criminoso incêndio, tudo fazia parte de um passado que precisava de dinheiro para ter um final feliz. Sempre o dinheiro. Isso lembra Marx em uma de suas célebres frases: “O fator econômico é o motor da História”.
“Ao vencedor, as batatas”, escreveu Machado de Assis em Quincas Borba. Ao perdedor, a reflexão, escrevo eu neste relato que nunca será publicado. Portanto, que fim levou o candidato do Sistema? Muito abatido, concedeu uma entrevista desejando boa sorte ao novo prefeito. Seu olhar era de um homem mau, de quem não acreditava no que havia acontecido, de quem estava vivendo um pesadelo, de quem ainda não tinha caído na real. O séquito, que sempre o acompanhava, reduzia-se a duas ou quatro pessoas. Nem sinal dos bajuladores e muito menos dos empresários interessados em obras superfaturadas que sempre foram a sangria dos cofres públicos. Ao perdedor, a reflexão.
No seu primeiro discurso como novo prefeito, o jovem deputado reafirmou seu compromisso com o desenvolvimento da cidade e com a melhoria de vida das pessoas:
– Povo de Vila da Barra – sua voz estava embargada. Deus e o destino me trouxeram aqui. Este não é um dia qualquer. Não poderia ser um dia qualquer. As dificuldades, sabemos, são imensas. Precisamos reconstruir esta cidade. Precisamos refazer o sistema de ensino. Precisamos reimplantar um novo sistema de saúde. Precisamos levar água para as zonas Norte e Leste. Precisamos, enfim, esquecer as diferenças e trabalhar. A terra foi conquistada. A terra precisa de ser adubada”.
Vila da Barra era o nome da cidade que aparecia nos meus pesadelos. Na verdade, não era bem uma referência ao nome antigo de Manaus. Era a metáfora dos que sempre quiseram construir o presente tendo o passado como ponto de partida. Nunca fui de pregar o futuro, que deverá ser construído pelos que estão por vir. Prefiro falar do presente.
O discurso prolongou-se por mais de meia hora. Nas entrelinhas, uma metáfora chamou a atenção dos mais atentos. A terra precisa ser adubada. O que significava aquilo? Que mensagem aquelas palavras estavam tentando passar? Os jornais da cidade estamparam a vitória do jovem deputado. Em letras garrafais, a manchete de primeira página trazia a tal metáfora da terra que precisava ser adubada. O então governador do Estado, obrigado a aceitar a derrota, divulgou uma nota, colocando-se à disposição para o diálogo. Os cientistas sociais e os analistas políticos anunciavam uma nova época.
Da Delegacia de Entorpecentes, fui encaminhado para este presídio à espera de uma sentença. Não sou a única vítima do falido sistema prisional brasileiro. Dizem que a morosidade do Judiciário, incapaz às vezes de punir seus próprios integrantes, torna a justiça brasileira uma forte aliada do crime e da própria injustiça. Estou aqui há mais de um ano. Para ser mais exato, um ano, dois meses e três dias. Aqui já vi cenas de subornos, estupros, assassinatos. Sobrevivi a várias rebeliões. Nunca pensei em fugir. Seria um erro. Errei. Um professor não pode fazer o que fiz. Existem outras formas de se fazer uma revolução. Pensei que, envolvido com o narcotráfico, teria dinheiro para ajudar minha velha mãe, que morreu sem a minha proteção. Não fiz investimentos. Gastei com panfletos de sindicato. Ajudei vários professores em dificuldades. Maldito seja o país que permite que seus cientistas passem necessidade. Estou falando da fome. Meus filhos, um dia, se os tiver, não seguirão a carreira do Magistério. Não quero ninguém na minha porta pedindo dinheiro para comida. Minhas palavras são de revolta. Meu julgamento é de quem não possui nenhum crime. Entregar-me-ia de qualquer jeito para que pudesse pagar os meus erros. O promotor Francisco apenas antecipou minha decisão.
Os meus amigos, aqueles do Bar da Francisca, nunca mais apareceram. O que poderiam fazer por mim? Visita de solidariedade? Somente Carol nunca me abandonou. Muito pelo contrário, travou uma verdadeira batalha para de alguma forma tentar me proteger. Na Defensoria Pública, conseguiu a promessa de um advogado de defesa, que lhe exigiu uma noite no motel Cobras apenas para averiguar o andamento do processo. Sentiu-se agredida. Saiu chorando e foi sentar-se no monumento da Praça da Saudade. A quem recorrer? O sindicato poderia fazer alguma coisa?
Lembrou-se de Júlia. Em algumas pastas que deixei sobre a mesa, alguns endereços. Viu o da loja do shopping. Não teve dúvida. Júlia, pensou, poderia fazer alguma coisa. Contratar um advogado. Pedir que algum amigo de alguma forma interviesse. Tinha dinheiro. Tinha, portanto, poder. O dinheiro determina. Dita normas. Um advogado apenas.
Durante uma semana, ficou a distância esperando que Júlia, a amante do comandante Douglas, aparecesse. Na sexta-feira, resolveu obter informações no balcão da loja. Nenhuma das atendentes sabia dar informação. Na verdade, não conheciam nenhuma pessoa com aquele nome.
– Mas ela é a dona desta loja! – insistiu Carolina. Preciso falar muito com ela. Preciso ajudar um amigo, que também é amigo dela. Ela vai entender.
-Moça! A dona desta loja é a senhora Bárbara. Não temos necessidade de mentir. Não conhecemos ninguém com esse nome. Um momento! Ela acaba de chegar.
Carol volta-se para uma mulher que, sem dar atenção a ninguém, entra por uma porta lateral e desaparece . De Súbito, ainda sinaliza com uma tentativa de diálogo.
– Senhora!
A mulher não olhou nem deu atenção. Bárbara passou a ser dona da loja de pois que Julia foi para o
Manicômio. Ela, subamante que virou proprietária por ironia do destino, ignorou o caso. Mandou dizer que, no momento, a loja não estava selecionando novas vendedoras.
A esmo, anda pelo shopping. Cabisbaixa, senta-se em uma das mesas da Praça de Alimentação. Não ia muito ali. Preferia o minishopping do bairro. Tudo mais em conta. Tudo mais compatível com o seu salário de empregada doméstica. Na entrada da Praça de Alimentação, Márcia e Carol se falam por acaso. De volta do hospital, a recepcionista também não sei por que andava por aquele local movimentado de pessoas que apenas se exibem. Conheciam-se da época da escola. Foram alunas no Colégio Marquês de Santa Cruz. Ali no bairro de São Raimundo, nas proximidades da balsa. Márcia concluiu o segundo grau e realizou um desses cursos de atendimento ao público espalhados pela cidade e sem registro na Secreta ria de Educação. A conversa girou em torno da minha prisão. E foi Márcia quem deu a notícia sobre o paradeiro de Júlia. Sua irmã trabalhava no serviço de limpeza daquele hospital. A paciente ficou conhecida depois que a polícia esteve no local para efetuar um mandado de prisão. O estado da jovem era crítico: não falava coisa com coisa; apenas balbuciava algumas palavras. Foi salva pela loucura.
Pensou em voltar à Defensoria Pública. E assim o fez. Precisava de um advogado. Era dever do Estado. Estava na lei. Ninguém poderia ser condenado sem direito à defesa. Pelo menos um sem experiência. Não se põe numa cela comum um preso portador de diploma de nível superior. Sobre tudo isso ela divagava.
À saída da Defensoria, depois de mais uma tentativa fracassada, encontrou Moisés, recém-saído da Faculdade de Direito, conhecido por seus pares como falador e metaleiro. Sempre cabeludo e com aquela fisionomia de Raul Seixas. Tudo por fazer: o cabelo, a barba, enfim, mais parecia um homem da caverna. As pessoas se assustavam com aquele advogado que chegava ao prédio do Tribunal exigindo ser recebido pelo juiz. ” -Vossa Excelência precisa liberar esse processo. Há mais de um ano que venho aqui. E me respeite, pois não sou seu filho. Quero ser chamado de senhor”, protestava o jovem Moisés, mesmo sabendo que suas reclamações de nada adiantariam diante de um Judiciário frágil, muitas vezes parcial, cheio de vícios e do maior de todos os males do serviço público no Brasil: o nepotismo.
Conheciam-se de vista, provavelmente das passeatas organizadas pelo sindicato dos professores.
– Ajude-me! Ele está ali, jogado na cadeia pública da Sete de Setembro. Vão matá-lo! Faça alguma coisa. Eu lhe pago! Eu tenho um terreno, o senhor pode ficar pelos seus serviços. Ajude-me!
– Calma, jovem! As coisas vão se resolver da melhor maneira possível. Tenha paciência. Acalme-se! Não chore! Vou assumir o caso. Preciso de mais informações.
E assim, depois de uma longa conversa com Carol, Moisés assumiu o meu caso. Sua intervenção foi importante. Ameaçou ir para a imprensa se alguma coisa de mais grave me acontecesse. Hoje, as coisas começam a se encaixar. Muitas pessoas me estenderam a mão, entre as quais o promotor Francisco, aquele jovem advogado. O primeiro, como já disse, foi afastado de suas funções. Quanto a Moisés, foi aprovado num concurso para juiz substituto e designado para a comarca de Tefé. Nunca mais deu notícia. É possível que, entre as inúmeras correspondências que não me foram entregues, estivesse uma das suas. Custa-me dizer que Carol ficou sozinha em toda esta história. Jurou, porém, que concluiria o curso supletivo, cursaria a Faculdade de Direito somente para me tirar daqui. Isso ela me revelou há pouco tempo. Logo ela, que tinha uma tendencia para o Magistério. Sempre gostou de Literatura.
Aquele manicômio, dizem, foi a casa de Eduardo Ribeiro. Uma chácara. Ali o militar foi assassinado. O construtor do Teatro Amazonas esteve à frente do seu tempo. E lá passou a viver Júlia. Não suportou o choque de ver o pai no necrotério do Pronto-Socorro 28 de Agosto. Ela, que sempre mentiu, dizendo que ajudava os pais em Manacapuru com o que ganhava como vendedora de loja. A calçada impediu que ela atravessasse a rua e fosse atropelada por um caminhão de uma distribuidora de bebidas. Ela não merecia ser salva por uma sarjeta. Carol nunca acreditou ser aquele o destino da toda poderosa Júlia. As duas nunca se falaram. No dia em que Carol me deu a notícia da morte de minha velha mãe, as duas quase ficam cara a cara.
A visita ao Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro fê-la ver de perto o estado em que Júlia encontrava-se. No horário de visita, lá estava Carolina. Várias pessoas andavam pela área externa. Algumas em cadeiras de roda. Outras sentadas nos bancos de cimento à margem da calçada.
Uma bata branca, toda branca, com algumas flores bordadas sobre o peito, Júlia foi colocada em um dos bancos de cimento. Olhava para as plantas. Olhava para os pássaros. Balbuciava algumas palavras indecifráveis. Parecia uma criança com alguns meses de vida. Uma grossa saliva escorria-lhe pela boca. Ainda tinha alguns sinais de beleza. A enfermidade não apagou de todo os traços que formavam o belo rosto. Sempre foi morena. Cabelos compridos até a metade das costas. Compridos e lisos. O olhar vivo. Olhos bem abertos. Arredondados. A boca e os dentes faziam uma combinação perfeita. O sorriso traduzia uma sensação de êxtase. Era na verdade provocante. Assim era Júlia, a mulher que me fez ver o lado clandestino das relações humanas, que usou o corpo para viver uma realidade além da conta, que nunca foi vendedora de loja, apenas achou que a mentira deve ser a verdadeira vocação de todo ser humano. Sua pena foi branda. A debilidade mental não poderia ser substituída por um julgamento e posterior condenação pelo envolvimento com o crime organizado. Sua bissexualidade hoje pode ser posta em dúvida. Teve na verdade algum caso com o comandante Douglas? Soube há pouco tempo que Bárbara havia sido o grande amor da vida de Júlia.
Carol aproximou-se. Ficaram, pela primeira vez, frente a frente. A comunicação seria um gesto inútil. Olharam-se longamente. Júlia estendeu-lhe as mãos. Pareciam duas irmãs. Um estranho abraço parecia ser um recíproco pedido de desculpas entre duas pessoas que nunca se tocaram, apenas tinham algo em comum: o interesse pelo mesmo homem.
À saída, Carol, numa rápida olhada para trás, pôde perceber que Júlia esforçava-se para pronunciar meu nome. Não me assiste tecer considerações sobre o destino que a vida deve reservar a uma pessoa. Custa-me, entretanto, acreditar em que Júlia tenha tido esse fim. Dela restaram-me as lembranças dos manuais de literatura e gramática.
A posse do jovem deputado foi dentro dos princípios constitucionais. O governador estava presente. Não usou da palavra. Não conseguia, talvez, entender ou aceitar que também tivesse sido derrotado. Não aceitava a tese de que seu grupo político estivesse sendo ameaçado por um líder que nem conhecia direito o interior do Estado. A terra estava adubada.
Foi essa a conclusão a que cheguei depois que analisei mais cuidadosamente o desenrolar dos acontecimentos. As próximas eleições para o governo do Estado seriam disputadíssimas. O povo dava demonstrações de querer novas caras no cenário político local. Estive ausente em dois acontecimentos muito importantes: a festa em frente ao Tribunal Regional Eleitoral e a posse no Paço Municipal, exatamente em frente à praça em que Paula passou a viver depois que foi expulsa daquela casa de swing. Foi enterrada na parte pobre do Cemitério Parque Tarumã, um dia depois da posse. Algumas colegas de profissão estiveram presentes. A moçada do Vagalume resolveu aparecer para as últimas homenagens. Brás Cubas, o das memórias póstumas, também foi enterrado na presença de alguns poucos amigos. Só que no caso de Paula não houve discurso.
Um longo artigo publicado em A Crítica criticou a escolha do novo secretariado municipal. Acusavam o prefeito de não cumprir com a promessa de campanha: ouvir os vários segmentos da sociedade. O anúncio de que a irmã Helena assumiria a Secretaria de Ação Social caiu como uma bomba nos meios de comunicação. Uma jogada de mestre foi a escolha de um renomado cientista para a pasta do meio ambiente. Um plano de obra foi anunciado para o mês seguinte à posse. Uma profunda intervenção no saneamento básico estava prevista nas ações a serem implementadas. Um surto de cólera causava mal-estar entre as autoridades da área de saúde. Manaus era uma cidade doente. Nunca teve um tratamento preventivo. Os resíduos fecais continuavam escorrendo a céu aberto, e não apenas em dias de chuva. A rede de esgoto datava do começo do século.
Aquela cidade precisava ser reconstruída. Nunca tivemos bons administradores. Os que assumiram o poder nunca se preocuparam em construir obras duradouras, que servissem o presente e se mantivessem para o futuro. Essa é uma das pragas das ações governamentais no Brasil. Governos chegam, mudam as leis, mudam nomes de órgãos, imprimem as iniciais do nome do governante no papel timbrado usado nas repartições públicas e ainda mandam pintar uma marca pessoal nos logradouros. O a estilhaçado passou a ser visto nas escolas da rede municipal de ensino. Por iniciativa do próprio prefeito, depois de um pedido do vereador João, a marca pessoal deixou de existir. O brasão do município deu um novo colorido às repartições públicas.
Mesmo sem poder acompanhar diretamente os acontecimentos, sempre me mantive ligado às ações do novo mandatário. Sonhei com aquilo. Fui pago para dar termo a um projeto que virou realidade. E se tivesse aceitado a proposta para marcar um gol contra? Que rumo aquela eleição teria tomado? Seriam mais vinte anos de espera. Se fosse apenas de espera ainda seria possível dormir sem peso na consciência. Os conselhos do Mestre José Raimundo fizeram-me mudar de ideia. Ele tinha razão. Sempre teve razão. Seria eu usado por eles como instrumento para obstruir um caminho que houvera sido aberto com lutas sindicais e com discursos inflamados em sala de aula, ainda que sob o olhar vigilante na diretora da Unidade, a loira com cara de macaco. Confesso que me sentir orgulhoso da minha decisão. Hoje, por exemplo, não sentiria vergonha de encarar o professor Ferreira, muito menos de cumprimentar o mestre Aluísio e a exemplar Arminda, com seus olhos verdes, sua boca sempre pronta a proferir palavras de ensinamentos.
A vergonha que sinto é de mim mesmo. Sairei daqui marcado. Não sei se a legislação brasileira ainda permite que ex-presidiários façam concursos públicos, por exemplo, o exame vestibular. Parece que sim. Ainda penso em cursar a Faculdade de Direito. Tudo é muito contraditório. Tudo me submete a uma tortura psicológica que me oprime fisicamente. Precisava ser lavado por aquela chuva, que, fina e insistente, inundou o prédio do Tribunal Regional Eleitoral, talvez eliminando a sujeira existente na política feita por gente pequena, talvez sepultando o arquivo sujo de eleições passadas, muitas das quais fraudadas nos bastidores do Poder ou no subterrâneo do velho Paço Municipal.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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