Manaus, 18 de outubro de 2024

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

Driblando as mágoas

Bar da Francisca, em frente à escola, ponto de encontros do corpo docente masculino, após o expediente de sexta-feira à noite. Uma verdadeira orgia à beira da calça- da. Das piadas de Fernando às lamentações de Carlos, tudo acabava em trago. Uma a uma as garrafas iam-se amonto- ando. A pobre Chica tinha paciência oriental para esperar o pagamento.

– Hoje o movimento não foi dos melhores – disse o professor Marcos Pontes – vendedor de fitas piratas na feira do bairro – As originais há um bom tempo me têm tirado do aluguel. Não sei mais o que faço.

– A professora Teresa sabe! Ironizou Fernando.

– Arranja outra.

– Que mais tu quer? Viúva, estatutária.

– E mexe muito bem! Completou João Antônio.

– Sem falar da língua

Estou satisfeito com a minha nega.

E parecia que com a vida. Não, absolutamente não. Marcos era um guerreiro e um grande paradoxo. Professor de Ensino Religioso, ateu, adepto do marxismo e sonhador. No primeiro dia de paralisação, levou de sua casa um cadeado com que trancou o portão da escola. “Só abro pros aliados e pra imprensa”, dizia. Com duas marretadas, a substituta da velha Ermita botou o dito cadeado no chão. Foi aplaudida pelo vigia, o seu Pedro, e vaiada pelos alunos.

Poder-se-iam chamar aquelas conversas de tertúlia? Provavelmente. O certo é que tudo não passava de terapia, ou, como se dizia na época de Álvares de Azevedo, de fuga da realidade. Esquecer por um tempo as preocupações, o inevitável, isto é, as dívidas, até criar coragem de voltar para a família.

– O senhor ainda aceita o meu trabalho? – perguntou

Fátima ao professor Gonzales, de Filosofia.

A saia curta da aluna, a blusa transparente e a cor do sutiã antecipavam a resposta. Às vezes, determinadas circunstâncias têm dois lados extremos: da mesma forma que podem autossustentar, dizimam o homem. Qual dos dois se poderia aplicar, no caso de Gonzales, é avaliação sua, meu caro leitor. Era-nos, pois, impossível não nos envolvermos com aquelas alunas. Não que fossem fáceis, mas deixavam muitas passagens. A esposa de um professor bateu numa colegial com o cinturão do próprio marido na porta da escola. Foi naturalmente um escândalo. O infeliz desapareceu. Soubemos depois que o educador havia deixado a valentona. Passou a viver com a mocinha num quarto alugado no Beco Natal. Insistia em separar o que o amor teve por destino unir. Resultado: a jovem reagiu e deu uma surra na substituta, que, em companhia do homem amado, mudou para Manaus, mais precisamente para o Bairro da Compensa. Ele, vivendo numa cidade onde o professor é respeitado, conseguiu um contrato com a Secretaria de Educação e passou a ministrar aulas de História do Amazonas em uma escola no grande contingente populacional, que é a Zona Leste.

Júlia fez-me um sinal. Nunca tinha ido àquele lugar. A “Praça do Acari”, no Conjunto Residencial dos Professores, como sempre, estava movimentada. Sentamo-nos à mesa e pedimos um tira-gosto. Dois rapazes aproximaram-se e foram-me apresentados por Júlia. Ramon e Célio, disse ela, eram amigos de longa data. Haviam acabado de chegar de Belém, a onde tinham ido levar mercadorias das empresas para as quais trabalhavam. Estavam a caminho de São Gabriel da Cachoeira, para onde embarcariam no dia seguinte do roadway. Aparentavam ser boas pessoas. Muito bem-vestidos. Relativa aparência. Denominavam-se representantes comer- ciais de produtos importados. Faziam, também, pelo que disseram, um pouco de cada coisa. Para mim tinham pinta de garotos de programa, profissão em ascensão. Um deles não tirava os olhos de Júlia. Somente agora uma coisa me vem à cabeça. Seria Júlia uma garota de programa? Dizia-se vendedora de uma loja de roupas na Avenida das Palmeiras. E desde quando em lojas de periferia são vendidas roupas de grife? Seus pais eram realmente comerciantes na cidade de Manacapuru? Não concluo que uma garota de programa ganhasse suficiente para manter aquele padrão de vida. Só a corrida do táxi que nos levou àquele local ter-me-ia custado quase um terço do meu salário de professor. Mas o que me deixou mesmo chateado, mesmo sem ter o direito, foi ela ter ficado por quase uma hora conversando com os caras, na área do estacionamento, enquanto fiquei ali, só, comendo as chamadas patazinhas de caranguejo. Houve, no entanto, uma compensação. O pernoite num motel da Presidente Dutra teve direito à hidromassagem e a outras coisas do gênero. O problema é que, quando acordei, a manhã daquele sábado já estava avançada. Na mesa de refeições, um manuscrito de Júlia. Voltaria somente na terça-feira da semana seguinte. Agradecia-me, ainda, por ter-se lavado em meu corpo. Não era a primeira vez em que se ausentava. Também nunca dissera o destino. Nunca também fui de fazer especulações.

Como se pode observar, dinheiro não havia. No entanto, as facilidades eram muitas. E tudo pago pela vendedora de loja. Sucede que aquela vida me causava preocupações. Nunca fui defensor da riqueza aparente. Comprar ou adquirir bens e serviços além de suas reais possibilidades. Poderia relacionar os amigos que mantinham um estilo de vida à custa de cheques sem fundo e de atividades ilícitas. Isso tudo me preocupava sobremaneira. Abalava-me emocionalmente. Tinha um grande peso na consciência por estar decidido a deixar o magistério no segundo plano e já ter procurado outros meios de sobrevivência. Não me considerava exatamente culpado. Era na verdade um momento de fraqueza seguido por uma grande vontade de atender às minhas necessidades e de poder finalmente ajudar minha velha mãe. Esperar pelo magistério? Quando o professor será valorizado neste País? Depois da posse? E se tudo for um fracasso? Estava mesmo decidido. Seria por pouco tempo. No máximo um ano. Dois, talvez. Dizem também que quem entra nesse tipo de atividade dificilmente consegue sair. Será como a política? Como o adultério? Como a fantasia que todo ou quase todo homem tem de manter relações sexuais com duas mulheres? Logo estariam em minhas mãos as respostas para cada um desses questionamentos. Que não demorassem muito.

Isso tudo, confesso, servia-me de fuga da realidade, Poucos dos meus colegas, pelo menos os do nosso círculo de famílias apenas com o troco do vale-transporte. O professor amizade, tinham os meus privilégios. Voltavam para as suas Lucas, nome de apóstolo, que ministrava a disciplina Funda mentos da História Brasileira, nem isso tinha. Seu percurso foi o mesmo durante cinco anos. Quem conhece esta cidade sabe que o perímetro urbano do Bairro do Presidente, a popular Maromba, para o São João, onde ficava localizada a Escola Estadual Padre José de Anchieta, aquele do Quinhentismo, é de aproximadamente quinze quilômetros. Uma maratona. E lá vinha o professor Lucas. Inegavelmente um homem de fé. Indiscutivelmente um homem necessitado. Eram exatos trinta quilômetros diários. Muito sacrifício para uma disciplina à qual os alunos não davam muita importância por desinteresse pelo seu passado. E foi na Avenida das Palmeiras que o ônibus de um hotel cinco estrelas atropelou aquele brasileiro. Tetraplégico, vende pipocas em frente à escola a que deu seu sangue. Se fosse professor estatutário, ainda teria direito de se aposentar por invalidez. Depois do acidente, só lhe restou esperar a chegada de uma idade mais avançada para obter algum benefício da União. No seu carrinho de pipoca, o teimoso ainda tinha uma fotografia de Che Guevara, aquela que sempre está estampada em camisetas de universitários que acabam de ingressar em uma universidade. Ficou conhecido dos alunos. Apenas abaixava a cabeça quando via os ex-colegas de profissão. Talvez de vergonha. Talvez por se sentir descartado em um Sistema que só privilegia quem ainda detém alguma força de trabalho.

Seu uniforme branco, na verdade, era um jaleco que mandou confeccionar com a palavra professor bordada no bolso superior esquerdo. Logo abaixo o seu nome em letras menores quase indecifráveis.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani – Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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