Manaus, 21 de novembro de 2024

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

PARTE II

Notícias de abril

Os veículos de comunicação sempre viveram à custa de sensacionalismo. A sociedade moderna é marcada pelo que chamaria de vício dos acontecimentos. Os crimes, por exemplo, são os mesmos, com raríssimas exceções, desde o Renascimento. No entanto, quando uma emissora de televisão quer alcançar picos de audiência, começa a fazer de um estupro doméstico um filme longa metragem, exigindo providências de autoridades, como se não fossem pagas para intervir contra os infratores da paz social. O problema é que as manchetes dos jornais nunca tinham sido tão repetidas. Uma onda de atentados a políticos e autoridades ocupou semanas os primeiros lugares das paradas de sucesso. O prefeito de um município do Baixo-Amazonas foi encontrado morto num motel da Rua do Retiro; outro, alvejado ao sair de um condomínio de luxo em Teresópolis. Um vice renunciou ao cargo e acusou o titular de improbidade administrativa. Um outro, esposo de uma psicóloga, preso a uma cadeira de rodas, limitava-se a ficar em frente de um televisor. A população de um município próximo queimou a prefeitura e a casa do agente político, que no futuro ainda poderia ser eleito graças à ignorância das pessoas e à falta de novas lideranças. Por que só em Manaus essas coisas não aconteciam? Já era uma cidade de Primeiro Mundo? As autoridades cumpriam com suas obrigações? A democracia já estava consolidada? Isso mesmo. Uma cidade ímpar, uma espécie de paraíso perdido no mapa político brasileiro. Abrir investigações era especialidade de uma polícia que mudou de nome, por decreto governamental, envolvida com boca-de-fumo e grupo de extermínio. A estrada do Quequara há décadas era o local de desovas, ou seja, o lugar onde as vítimas eram postas no paredão da morte. Não foi lá que Etelvina de Alencar, a conhecida santa dos estudantes, foi assassinada pelo noivo? Não tenho muita certeza. A falta de banho de sol tem-me tirado a visão e a memória. Só sei que o atraso de uma sociedade não se conhece apenas pelo nível de vida de seu povo. É conhecido, também, pela insegurança que as autoridades passam à população. Nada mudou. Acabo de ler, nos velhos jornais que a sentinela deixa, vez por outra, à porta da cela, que um vereadorzinho invadiu uma casa no conjunto Bela Vista e estuprou uma moça. Provavelmente o inquérito, se houver, será arquivado. A imunidade parlamentar é uma das grandes aberrações da frágil democracia brasileira. Em Manaus, por incrível que pareça, os políticos doaram uma parte do salário para as instituições de caridade. Vereadores eram cassados, e o Ministério Público Eleitoral funcionava efetivamente. O procurador Edson Barata, em audiência pública, denunciou o presidente do Tribunal Regional Eleitoral sobre o que ainda vão chamar de nepotismo. Homenzinho de coragem aquele. Lutar contra o Sistema era colocar a vida em risco.

Aqui, pobre Ministério Público, cujos promotores tanto admiro! Há um baixinho que faz muito mais do que atuar como fiscal da lei. Grita. Esperneia. As coisas, entretanto, parece não acontecerem. A ópera tem um elenco poderoso e está sempre ensaiando os próximos números. Se um dia sair deste cárcere, não pretendo mais cursar mestrado em teoria da Literatura. Cursarei a faculdade de Direito. Serei promotor. É preciso se inspirar nos bons exemplos, apesar de hoje eu não poder servir de espelho a mais ninguém. Há um mês Carolina não aparece. Já tentei fazer amizade com o guarda de plantão, mas ele parece ter medo de mim. Os meus blocos de rascunho estão acabando. A ociosidade, neste presídio, transformou-me em um escritor que procura, por meio do que escreve, retardar o próprio suicídio. Todos, governo e sociedade, passam por um processo de putrefação.

A deterioração das instituições públicas muito contribui para que o Brasil viva um estado permanente de guerra civil. E muitos são os fatores que ilustram os dados negativos que envergonham o País perante a opinião pública internacional. E não me refiro à onda de violência nas favelas do Rio de Janeiro que, segundo o ex-presidente norte-americano Richard Nixon, é uma moça bonita com as roupas debaixo sujas. A segurança pública só funciona nas visitas do chefe da igreja católica. E parece que aquele estado de barbárie havia chegado às escolas da rede pública desta cidade.

Em Manaus as escolas eram climatizadas, todas com bibliotecas, laboratório de informática, merenda regionalizada, professores com graduação e cursos de especialização. Não se via um acadêmico de Medicina dando aulas de História, a exemplo do que acontece nesta cidade: professores desqualificados, falam e escrevem errado, muito do que ensinam é prejudicial à formação de qualquer indivíduo.

O consumo de drogas por parte dos estudantes passou a não ser objeto de preocupação nem das famílias nem das autoridades. As visitas dos policiais às chamadas bocas-de-fumo pareciam fortalecer o contato dos chamados “aviões” com alunos, que de alunos só tinham o registro no diário de classe. Eram, na verdade, os principais responsáveis pelas distribuições dos papéis de pó, vidretas, lança-perfumes e outros narcóticos de grande consumo entre estudantes vicia- dos. E por que as batidas às bocas de fumo não davam os resultados esperados? Elementar, meu caro leitor. Os policiais, na sua maioria, formavam sociedade com os traficantes. O soldado Israel, que ia para o plantão com o Novo Testamento e frequentava uma igreja evangélica no Lírio do Sol, próximo ao Campo do Buracão, entregou a farda porque achava que os outros policiais, envolvidos com o tráfico, estavam possuídos pelo demônio. Não aceitou o argumento de que os baixos salários justificavam o desvio de conduta. A verdade é que ainda hoje o quadro continua muito acentuado, e não se vê nenhuma solução aparente para, pelo menos, amenizar o problema. Antes desta residência forçada, ainda vi Israel na feira do bairro, em frente à banca de peixe, com um megafone pregando a palavra de Deus.

Ano de eleições é sempre assim. O grupo político, que há décadas governa o Estado, mantém-se unido em torno de um ou dois caciques que dão as cartas. E ai de quem não simpatizar com os conchavos e acertos visando às eleições! A dita oposição continua brincando com um projeto de poder. Sai sempre dividida. Desta vez, por exemplo, havia uma meia dúzia de candidatos. O Partido dos Trabalhadores ensaiava candidatura própria, com um grupo de sectários sempre avesso a diálogos. Os jornais, naquela manhã de domingo, traziam uma novidade em relação ao quadro sucessório: a candidatura de um aguerrido deputado federal, diplomata de carreira, bom orador e filho de um ex-senador. Seu discurso era vibrante e cheio de críticas ao governo do Estado, que continuava com sua política assistencialista, dando sopa para os pobres como forma de manter o seu curral eleitoral. Dizia-se candidato e não escolhia adversários. No entanto, a imprensa centrava suas atenções na figura do cacique político, que seria apoiado pela máquina do estado, da prefeitura e pelos empresários corruptos, sempre dispostos a investir na candidatura do Sistema em troca de obras superfaturadas. Hoje, fazendo uma análise mais séria de toda essa situação, errei em não ter obedecido àquelas ordens. Remei contra a correnteza, digo, opus-me ao poder, e isso um pobre não deve fazer. O que ganhei com o meu heroísmo? Há meses espero por uma sentença que depende da boa vontade da lenta justiça brasileira. A desculpa é sempre a mesma: 0 acúmulo de processos. E se não for condenado por tráfico de drogas? Talvez se tivesse cumprido aquelas ordens, esta- ria nas Bahamas, cercado por mulheres à disposição de um agora preso provisório. Muitos traficantes colombianos levam uma boa vida na área nobre da capital federal. Traficantes e ex-presidentes de países latino-americanos que chegaram ao poder com golpe de estado ilustram minhas indagações. Dizem que uma mulher sempre estar por trás dos erros de um homem. No meu caso, Júlia foi a minha Dalila, a mulher que usou o sexo, principalmente o emotivo, para destruir minha vida. Se tivesse ouvido os clamores de Carolina, não estaria aqui. E, por falar nela, é a única que ainda aparece, ainda que esporadicamente. Preferi as aventuras a um relacionamento responsável. Fui um insano. Meu calvário foi acreditar nas pseudointenções daquela dita vendedora de lojas. Só um cego não veria que Júlia, com o salário pago por aquela loja de confecções da Avenida das Palmeiras, não poderia vestir-se daquele jeito e, muito menos, exibir-se com as joias que usava. Mas foi o sexo. Maldita necessidade humana.

Mas, voltando às notícias daquele chuvoso abril, fui um dos únicos a acreditar na ousadia do jovem deputado. Era, eis a conclusão a que àquela altura cheguei, muita coragem da parte dele. Por que nunca quis envolver-me com a política partidária, mais especificamente sair candidato? Porque no Amazonas só se elege quem tem estrutura financeira. Um pobre sair candidato só se for para ganhar experiência. Sucede que havia um clima de inquietação na sociedade. E dizem que abaixo da vontade de Deus só a vontade do povo. O cacique político parecia já estar preparando o dia da posse. As pesquisas, divulgadas há seis meses das eleições, davam-lhe mais de setenta por cento dos votos. Lembra-me uma passagem de um romance de Álvaro Maia, não sei se Banco de Canoa ou Beiradão, dizendo que no Amazonas oposição jamais ganha quando há juiz pobre. Álvaro Maia foi um intelectual amazonense que governou o Estado e, dizem, foi um péssimo administrador; contudo, um grande poeta. E desde quando pobre tem vez neste País? Será? Isso é a mais pura verdade. E que não apareça nenhum cretino, caso estes relatos venham a ser publicados, condenando estas afirmações, tentando defender as poucas exceções que ainda existem neste País desigual. Essas exceções nada podem fazer frente a um universo de arbitrariedades contra as instituições. O cacique político era conhecido da população. Nas suas passagens pelo poder, tanto a saúde quanto a educação faziam greve. O diálogo era com a Polícia Militar em plena Avenida Cinco de Setembro. Aquele homem parecia estar morrendo e não tinha mais nada a oferecer a uma cidade castigada por invasões de terra e pela falta d’água.

Mas em Manaus não havia esses problemas. O problema é que Manaus era Manaus, com seus prédios, seu movimentado comércio, com seu mercado central totalmente recuperado, com baixíssimos índices de criminalidade, com zero de mortalidade infantil, com a polícia militar e a civil a postos vinte e quatro horas. Enfim, a terra prometida, somente para lembrar o episódio bíblico e o romance de Graça Aranha.

E o que é mais triste: sem prefeito. O que havia foi deposto por quem o colocou no poder. O interventor, dizem, era graduado em Letras, mas falava e escrevia errado o português. Sempre fui da opinião de que a sociedade não quer um letrado no comando de um cargo executivo. Apenas alguém que tenha espírito público. E o que é ter espírito público? Tirem vocês as próprias conclusões! Acabo de ler, em uma edição da semana passada que me foi emprestada elo sentinela, que, no São Judas Tadeu, a população se revoltou e depredou os ônibus de transporte coletivo. Isso já aconteceu no passado e vai repetir-se por décadas e décadas. página que me foi dada pelo sentinela está rasgada e só osso ler uma parte da notícia. Mas parece que a coisa foi eia. Ônibus em cinzas e coisas do gênero. Pobre do povo que precisa chegar ao extremo para que suas demandas sejam atendidas.

Hoje é sábado, e as visitas acabam de chegar. Não as minhas. Eu, há mais de duas semanas, não sou lembrado por ninguém. Se Carolina aparecesse, estaria com o dia ganho poderia até pedir a extrema unção. Para os pecadores um gesto de humildade serve para, pelo menos, aliviar a dor. Se Carolina aparecesse! Há tempos não sei o que é uma mulher.

Ah, se Carolina aparecesse!

Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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