Manaus, 18 de outubro de 2024

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

PARTE II

Júlia

O problema é que aquela empregada doméstica do Bairro dos Laminados não me inspirava nenhuma fantasia sexual, apesar de bela e boa de cama. Júlia era minha obsessão. Mas por quê? Porque os homens são obcecados por mulheres bonitas, principalmente as que têm bunda grande, seios fartos e pernas grossas. Não era exatamente o caso de Júlia. Seus lábios e seu modo de olhar transformaram-me num Juca Mulato caboclo. Apaixonei-me pelo olhar daquela aluna da turma b do segundo ano. Falava com desembaraço, usava bem a segunda pessoa do singular, pois a população local tem uma mania de usar o pronome tu e empregar o verbo na terceira pessoa. Não era o caso de Júlia. Mas de tudo uma coisa sempre me chamou atenção: o seu modo de vestir. Nunca me saiu da cabeça o charme da miniblusa que ela usava quando foi à minha casa buscar explicações sobre o teste da segunda-feira. Mas o carro que nos seguiu a distância, ao subirmos a Rua da Fé, era muito estranho. Somente agora, depois da trama em que me envolvi e que me trouxe aqui, consegui entender por que os homens se encantam com as mulheres, por que são tão frágeis, tão rudes e, na maioria das vezes, tão idiotas. Nenhum homem terá sua personalidade completa se não viver uma decepção amorosa, se não sofrer por uma mulher, por mais que seja uma daquelas prostitutas que fazem ponto à sombra do Teatro Municipal.

Essa mulher nunca se revelou por inteira. Assim também era a Madalena do Paulo. Sempre posando de comerciária de uma loja da periferia, ganhando um salário-mínimo mais comissões sobre as vendas e vestindo-se com as roupas de grife compradas em Manaus. Isso tudo pode ser um sentimento de inveja, uma vez que se vestir mal é próprio dos que apenas têm para o jaraqui e o feijão, prato típico de uma sociedade que administra o pouco com a graça de Deus. Mas qual seria, verdadeiramente, a diferença entre Carolina e Júlia? O nível social destaca-se em primeiro plano, depois teríamos a estética, não propriamente a corporal, uma vez que ambas eram extremamente bonitas, mas o estilo de vida que cada uma tinha. Carolina, coitada, não tinha estilo nenhum. Suas roupas, muito simples, eram compradas nos brechós do bairro, principalmente naquele do Minisshopping. Já Júlia, como já foi exaustivamente repetido, usava as melhores marcas de que se tinha notícia. Na cama, as duas eram um demônio. Fiz várias comparações para tentar definir qual a melhor. Carol perdeu por não gostar, no início, de sexo animal. Achava nojento e pouco romântico, o que era a mesma coisa. Somente depois de muita insistência consegui fazê-la mudar de ideia. A empregada doméstica ganhava na humildade, no fino trato e nos seios que me excitavam no primeiro contato com o meu corpo. Das mulheres que passaram por minha vida, apenas uma tinha os seios parecidos com os de Carolina: era a Sandra, uma paraense que traía o noivo com o gerente de uma loja de material de construção, e também comigo. Perdi Sandra por indisciplina. Estava terminantemente proibido de deixar qualquer marca no seu corpo, mas, num momento de descuido, um traço vermelho ficou cravado no lado inferior do seio esquerdo, o que a levou a um cruel espancamento por parte do futuro marido, à ruptura do noivado, a uma queixa no oitavo DP, ali mesmo no Bairro dos Laminados, próximo à Escola dos Artífices, e à sua volta para Belém, onde ajudava sua mãe numa banca de artesanato no mercado Ver-o-Peso. Com esse episódio, aprendi que a marca que o homem deve deixar em uma mulher é no coração, que não existe apenas para bombear o sangue para o resto do corpo. Agindo assim, tornar-se-á inesquecível.

Há mais de três meses não tinha contato com Ernandes nem com Júlia. Naquela tarde chuvosa, recebi um telefonema para um jantar em uma mansão na Avenida Rio Negro, nas proximidades do Olimpo, talvez a área mais rica da cidade, com o seu hotel cinco estrelas, jogando dejetos na praia imprópria para o banho. Era de Ernandes. A notícia soou como uma ordem. Antes, porém, precisava ver o saldo da minha poupança na agência da Caixa Econômica Federal na Praça do Instalador. Lembrei-me, de imediato, de ter dado o número da conta em uma das conversas que tive com o meu ex-colega de magistério. E vi. A quantia depositada me deixou atônito. Era muito dinheiro. Se fosse considerar os valores de hoje, poderia muito bem comprar um carro popular zero quilômetro. E fui. O taxista que me levou, profundo conhecer desta cidade, conhecia a área do Olimpo como a palma de sua mão. Durante todo o percurso, foi chamando-me de doutor e tratando-me como se fosse alguém importante. Nunca tinha visto tanta casa bonita em minha vida, afinal de contas era morador do Bairro dos Laminados, que nasceu a partir de uma invasão de operários que trabalhavam numa fábrica de compensado. Já tinha ouvido falar no Condomínio Jardim das Orquídeas, de sua exuberância, de seu esplendor, de empresários honestos e também dos corruptos que investem boa parte de seus atos em barcos e imóveis. Foi nesse mesmo condomínio que a Polícia Federal invadiu a casa de um deputado estadual e flagrou-o com uma quantia absurda desviada de obras superfaturadas por um esquema que envolvia altos funcionários do governo.

A mansão em que seria o jantar ficava na segunda quadra à direita de quem entra. Portão de mármore, cerca elétrica, dois seguranças armados logo à entrada; esse foi o quadro que encontrei depois de passar por uma revista minuciosa. O ambiente não era de festa. Tudo muito parado, parado e morto. E as pessoas? E a música? E os garçons? Não podia estar na casa errada porque o segurança falou meu nome. Ao sair do táxi e sem aceitar o troco que me seria devido, fui encaminhado para um andar superior sempre acompanhado por uma mulher que se negava a mostrar o rosto. O local era uma espécie de suíte, muito espaçoso, com frigobar, um televisor de vinte e nove polegadas, tela plana, e uma cascata no centro do ambiente. Em outra área, uma piscina oval e uma hidromassagem. Na outra ponta, uma academia de musculação. Numa área de serviço, uma mesa repleta de frutas, garrafas de vinho e exatos onze pratos com talheres.

As portas abrem-se, e alguns homens entram sem nenhuma saudação pelo menos de boa-noite. Sentam-se à mesa e um deles começa a manusear uma pasta preta da qual retirou vários papéis que iam sendo entregues aos demais. Demorei um pouco para reconhecer Ernandes e seu novo visual formado por óculos escuros e jaqueta jeans. “Boa- -noite, professor!”, disse-me como se estivesse corrigindo a falta de educação dos demais. Sentamo-nos à mesa. Éramos nove, e dois lugares ficaram vazios.

Abruptamente as portas novamente se abrem, e chegam um homem e uma mulher. Ele, dirigindo-se à mesa, afastou a cadeira para que ela sentasse. Depois, ocupando o outro assento, dá-nos boa-noite e pede que todos se sintam em casa. Eu não podia sentir-me em casa diante de tudo aquilo. O meu jantar sempre foi muito simples, pois, quando não comprava um churrasco na banca de D. Zefa logo no início da Rua da Fé, fazia um copo de arroz frito com feijoada em lata. Agora, via-me ali, num condomínio de luxo, cercado por pessoas esquisitas, muitas das quais nem falavam o português.

– Então, Ernandes, esse é o nosso homem?

– Sim, senhor!

A pergunta, apontando em minha direção, foi feita pelo sujeito que chegou por último. A resposta de Ernandes foi de uma subserviência que dava medo. Somente agora entendo as razões pelas quais aquele meu amigo teve o dito comportamento. Tudo por uma questão de hierarquia. A sociedade é extremamente hierárquica, e isso em todos os setores, não apenas no contexto militar.

Professor! – disse-me o sujeito -, conhecemos tudo sobre a sua vida, suas necessidades e seus anseios. O senhor terá, a partir de agora e aceitando nossas condições, a oportunidade de ajudar sua velha mãe, seus irmãos, sair da periferia e morar, por exemplo, numa casa igual a esta.

Ernandes nos falou da sua lealdade e do modo responsável com que cumpre suas atribuições. O senhor gosta de desafios?

Antes que eu pudesse responder, Ernandes o fez por mim. Falou que não somente gostava de desafios como também procurava inventar obstáculos que pudessem ser superados.

– Senhor – falei -, a vida já é um grande desafio. Às vezes, por medo ou vergonha, perdemos grandes oportunidades. Ernandes me conhece. Ingressei, por exemplo, no magistério, pensando que pudesse contribuir com a sociedade em que vivo. Em sala de aula tenho procurado fazer o meu papel.

– Admiro seu heroísmo-retrucou, sua preocupação e seu sentimento pelo País. O problema, meu jovem, é que o Brasil não está muito preocupado com os seus filhos, com a crise na saúde, com a segurança pública e com a educação, além do mais não se faz revolução só com palavras. Infelizmente o dinheiro determina os rumos da vida moderna. Nós pagamos bem o serviço. É tudo muito simples e estamos dispostos a pagar-lhe um milhão de dólares. Com esse dinheiro, você pode morar em Nova Iorque ou em qualquer parte do mundo, mudar de identidade e nunca mais passar em frente de uma escola. Uma coisa, porém, precisa ficar bem clara. Você está envolvido com a nossa organização até o pescoço. Não se trata mais de uma proposta. Agora há uma imposição, uma ordem que não pode, de maneira nenhuma, ser desobedecida. O mundo do crime não tem volta…

O sujeito pronunciava essas palavras, aumentando cada vez mais o tom de voz e, ao mesmo tempo, olhava para a mulher que estava a seu lado. Os grandes óculos escuros escondiam sua identidade, o novo corte de cabelo deixava- -a diferente, o excesso de maquiagem não me permitiu reconhecê-la no momento em que entrou na sala. Não restava mais dúvida: era Júlia, que nos foi apresentada como mulher do sujeito denominado mais tarde de comandante Douglas. Ela não me encarou, apenas olhava fixamente para o copo de vinho a sua frente e seu único gesto foi para servir-lhe um copo de água. Os demais apenas observavam os fatos e não se pronunciaram. Um, branco e gordo, tentou algumas sílabas de forma bem tímida, provavelmente em italiano.

Não houve jantar nem cumprimentos no momento da saída de todos aqueles figurões. Júlia, por sua vez, antes de sair da sala, estendeu a mão de leve num cumprimento frio e melancólico como se não me conhecesse.

Os próximos minutos foram, à Machado de Assis, de avaliação acerca de tudo que sabia sobre aquela mulher. Nunca foi, conforme supunha, funcionária de uma loja de roupas no Bairro dos Laminados. O seu estilo de vida de- nunciava outras fontes de recursos para seus gastos além da conta e muito aquém das outras pessoas com as quais mantinha relações de amizade. Júlia era amante de Douglas, o comandante, talvez por sua beleza ou por seu desempenho na cama. Uma coisa é certa: quem detém o poder econômico pode ter quantas mulheres quiser e servir-se do melhor prato, comer da melhor carne e cultivar determinados rituais.

Júlia.

Depois daquele pseudojantar passei a saber quem era

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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