Manaus, 21 de junho de 2025

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

PARTE II

Invasão de domicílio

Professor, o senhor vai ficar?

Essa pergunta foi-me feita por um companheiro de cela. Desde a minha chegada a este submundo, mantive um relacionamento respeitoso com Eduardo, que esperava ser condenado a uma pena restritiva de liberdade. Passaria, portanto, vários aniversários em regime fechado. Por sua intervenção, não fui submetido às torturas que normalmente acontecem, como estupros e agressões. O assalto, segundo suas revelações, foi por necessidade: sua filha de três anos de idade precisava de uma lata de leite. O mercadinho, no Bairro da Ponte Alta, ficava no final do beco. Havia poucas pessoas no momento em que anunciou o delito. De arma na mão, foi à prateleira, pegou uma lata de leite e exigiu dinheiro para um quilo de carne. No momento em que o caixa abria a gaveta para retirar a quantia, pensou Edu, assim o chamávamos, que o velho comerciante fosse retirar uma arma.

Sua prisão foi manchete nos jornais.

A greve de fome que os detentos tinham deflagrado há dois dias tomou proporções assustadoras. Mas por que a greve? Acusavam o diretor da Cadeia Pública de ser rígido, de proibir visitas íntimas, banho de sol e de submeter as esposas dos detentos a uma rigorosa vistoria que não possibilitava a entrada de armas, drogas e dinheiro. Isso para a maioria dos detentos. Para outros o diretor Carlos Honório era um corrupto e facilitava a fuga de presos. Um batalhão de jornalistas ocupava a esquina de acesso ao presídio. Um jornalista de O Fato foi ameaçado por um tenente da Polícia Militar e teve sua máquina fotográfica arrancada à força e jogada no córrego repleto de dejetos fecais.

O trecho da Avenida Cinco de Setembro, que vai da Escola Técnica até a entrada do Ponte Alta, foi interditado. O engarrafamento que tomou conta da Avenida Cinco de Setembro lembrava o caótico trânsito da cidade de São Paulo num feriado prolongado, mais precisamente a Marginal Pinheiros. A tropa de choque da Polícia Militar posicionou-se em lugares estratégicos. Os telhados dos prédios vizinhos foram ocupados. No Colégio Santa Luzia, as freiras protestaram contra os policiais que ficaram em uma das janelas que davam de frente para o portão de entrada do presídio.

A algaravia tomou conta das celas e de todos os corredores. Os detentos estendiam faixas nas janelas, de- nunciando as atrocidades do sistema carcerário. Do alto do telhado, Caveira e Corcel, os chefes da rebelião, exigiam a presença da imprensa, da Ordem dos Advogados e do Ministério Público. Encapuzados, apontavam uma arma para a cabeça do guarda Pereira, exatamente aquele que me fornecia os blocos de rascunho.

As mulheres dos presos, que ocupavam toda a calçada de frente do presídio, mais pareciam as carpideiras dos versos de João Cabral de Melo Neto. O desespero aumentou quando chegou a notícia de que a tropa de choque invadiria o presídio para pôr fim à rebelião que já durava vinte e quatro horas.

– Não matem meu marido! – gritava uma mulher grávida aos policiais prontos para o embate. – Seus assassinos! – Com esse discurso, ela era uma espécie de porta-voz das outras mulheres que se esfregavam num tumulto já generalizado.

Evidentemente que aquele massacre não teve as dimensões nem ganhou tanta mídia como o do Carandiru, mais tarde transformado em filme. Foi, por outro lado, assustador ver a invasão daquelas celas por policiais armados de escopetas, pistolas e acompanhados de cães treinados para esse tipo de situação. Foi o que chamam de execução sumária, uma vez que os policiais aproximavam-se das celas e descarregavam suas armas como se estivessem invadindo o Morro do Alemão no complexo de favelas do Rio de Janeiro, que, apesar de tudo, continua lindo, lembrando os versos do poeta Gilberto Gil.

Caveira e Corcel, alcunhas de Raimundo e Aparecido, foram colocados numa das celas e praticamente devorados por quase meia dúzia de cães aparentemente famintos ou induzidos a esse comportamento. Vi tudo da minha cela e até hoje não sei por que fui poupado. Talvez, creio eu, porque não manifestei nenhum protesto contra a invasão da polícia, mantive-me sentado, segurando Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre. Mas reconheci o policial que se aproximou da minha cela: tratava-se de João, ex-aluno do terceiro ano acadêmico da Escola Estadual Padre Pedro Albuquerque no Bairro dos Laminados. Com todo respeito pelo mestre Gilberto Freyre, mas não foi sua obra-prima que me livrou da execução. João, policial da tropa de choque, aproximou-se da minha cela, colocou a escopeta na posição de disparo, mas não chegou a consumar o ato. A seguir, arriou a arma, num gesto de quem pedia desculpas, passou a mão na testa e, por alguns segundos, ficou olhando-me, bateu a porta da cela e seguiu para outro pavilhão. O presídio, inaugurado no início do século, mais precisamente em 1907, foi um marco do governo de Constantino Nery. Com seu estilo colonial, seguiu todas as características do modelo idealizado por Jeremy Bentham, o pai da ciência penitenciária. Com seus 15.000 metros quadrados, três pavilhões, um corpo frontal e interior, uma horta, um galinheiro e um hospital de custódia, afinal de contas os irresponsáveis perante a lei também precisam de local para passar o tempo. Agora, estava completamente destruído, com suas celas danificadas e lâmpadas quebra- das. O setor de administração era um monte de ruínas, com documentos espalhados pelo chão, mesas jogadas na porta de acesso. Do velho arquivo, que seria transformado numa espécie de museu, ainda saíam sinais de fumaças. Aquilo tudo era um misto de protesto e vandalismo, coisas de um sistema carcerário falido, que não recupera ninguém, pelo contrário, cria criminosos ao quadrado, cuja herança é deixar para os filhos uma história de crimes. Como não poderia ser diferente, somente a tropa de choque teve acesso às dependências do velho presídio. Era uma vez o Ministério Público, era uma vez a Ordem dos Advogados do Brasil e era uma vez a imprensa.

A imagem que nunca me saiu da cabeça foi a do corpo de Eduardo sendo colocado dentro de um saco preto pelos funcionários do Instituto Médico Legal sob a vigília de policiais armados. “- Professor, o senhor vai ficar?”. Por muitas semanas ouvi essas palavras saindo do nada. No sábado seguinte, não houve visitas. Vi, da cela em que me encontrava, parentes de presos implorando por informações. Avistei Carolina na fila de espera. Uma mulher de vestido sempre me encantou.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.

Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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