
*Wilma Tereza dos Reis Praia
Continuação…
Fauna
COBRA NORATO
A lenda da cobra Norato ou Honorato é uma das mais conhecidas sobre cobra grande (a boiúna) na região amazônica, sobretudo na parte ocidental da imensa região norte do Brasil.
Contam que uma índia tomava banho no paraná do Cachoeiri, quando foi engravidada por um boto. Mais tarde nasceu-lhe um casal de gêmeos: um menino, que tomou o nome de Norato e uma menina, que ficou conhecida como Maria Caninana.
Enquanto Norato era bom e gentil, a jovem era má e grosseira para com sua mãe e, estranhamente, as crianças tinham o corpo coberto de escamas, a cabeça triangular, os olhinhos oblíquos e a língua bifurcada, tudo como se fosse de cobra.
Temerosa, a mãe foi ter com o pajé, perguntando-lhe se devia matar ou abandonar, no rio, as crianças.
O “curador” respondeu à mãe que, se as matasse, morreria também. Então, ela as abandonou junto ao grande rio onde passaram a viver. As crianças ficaram então “encantadas”.
Assim, foram crescendo.
Maria Caninana, desde cedo, constituiu-se um verdadeiro demônio: afogava banhistas, virava embarcações e assombrava viajantes e pescadores. Com seu irmão Norato, passou a percorrer todos os rios do Amazonas. Norato acabou por se cansar com as perversidades da irmã. Chegou ao ponto de não mais aguentar. Por isso, um dia, resolveu matá-la e ficar sozinho.
Adulto, tornou-se uma serpente monstruosa. Assim mesmo, continuou visitando, de quando em quando, sua mãe.
Tinha dupla vida: quando a noite caía, espalhando-se ao longo do vale lendário, Norato largava a carcaça de ofídio na beira do barranco e ia para as festas dos arraiais, fazendo amigos, brincando com as moças; quando a aurora se aproximava, Norato enfiava-se na casca, voltava a ser cobra e desaparecia no fundo das águas. Jamais alguém vira o moço Norato de dia.
Com o correr do tempo, o jovem tinha feito muitos amigos na região, e todos sabiam do seu encantamento e da sua provação. Era público e notório que o feitiço sob o qual vivia, seria desfeito, se alguém, vencendo o medo e a repugnância, tomasse a iniciativa de deitar algumas gotas de leite de mulher na boca do monstro e lhe ferisse a cabeça com uma faca nova.
Quando Norato dormia em casa de sua mãe, pedia-lhe que, de madrugada, antes do primeiro canto do galo, se dirigisse à beira do rio e colocasse na boca da serpente um bocado de leite, dando-lhe em seguida um golpe que provocasse sangue, com a faca que lhe entregara. Seria o suficiente para livrá-lo do encanto. A velha índia, por várias vezes, tentou atender ao pedido do filho, contudo, chegando à beira do rio, aterrorizava-se de medo da cobra, retornando às pressas, à sua rede, trêmula e agitada.
Norato fazia o mesmo pedido para as outras pessoas que estimava. Embora quisessem ajudar o jovem, ninguém parecia disposto a enfrentar o monstro. Os anos foram passando. A índia morreu e os amigos de Norato foram desaparecendo. Ele continuou cumprindo a sina que lhe estava reservada.
Afirmam que, certa vez, foi tentada a libertação de Norato. Um soldado da polícia tomou-se de brios e se dispôs a fazer tudo exatamente como pedira o jovem seu amigo. Ninguém ficou sabendo, ao certo, qual foi o resultado da empreitada.
Uns dizem que Norato livrou-se do encanto de cobra grande, deixando de habitar o fundo do rio e voltando a ser um homem normal.
Outros, dizem que não; que o soldado não conseguiu concluir o ritual e que Norato, sob a forma do temível ofídio, continua até hoje encrespando as águas do grande Rio Amazonas e seus afluentes.
O URUTAU
Existe na região amazônica uma crença de que a índia que desejar ser feliz, em sua união matrimonial, deve varrer o chão, debaixo de sua rede, com as penas do urutau.
Até hoje é comum, em todos os rincões do Vale, na hora da Ave-María, as jovens noivas caboclas, na delicadeza ingênua dessa crendice, cumprirem o ritual do urutau, com o coração cheio de ternura.
Além disso, guardam suas costuras e seus objetos de estimação em um pequeno balaio tecido com as penas desse pássaro. Dizem que é a fórmula certa para se tornarem esposa fiel, mãe carinhosa e dona de casa exemplar.
Narra a lenda que, após morte de Ceuci, Tupã desceu sobre uma ilha formosa bem verde, na foz de um grande rio com um imenso mar (Ilha de Marajó, na foz do Amazonas com o Oceano Atlântico, cuja denominação antiga é Ilha Grande de Joanes). Procurava escolher um casal jovem e bem ajustado para adotar Jurupari, que estava órfão e que se propunha a reformar os costumes da selva.
Entre os pares mais virtuosos, escolheu o filho de Xapã e a filha de Taquarussu, dois tuxauas famosos por seus singulares atributos morais.
Concentrou sua atenção nesses jovens.
Eis, porém, que, para desencanto divino, a jovem esposa do filho de Xapã resolve abandonar seu valente marido. Apaixona-se por um guerreiro branco egresso do mar, com ele desaparecendo. Fugiram de madrugada, deixando a notícia de que iriam para a Fenícia, um país distante mas que ninguém sabia onde ficava.
Mal o sol se elevou no horizonte, a notícia correu célere pelo domínio insular. A consternação foi geral, de vez que as duas famílias envolvidas eram muito estimadas. Alvoroçada a maloca, o pajé invocou os espíritos e, ao som do maracá, pediu a proteção de Tupã.
A tribo inteira participou daquele ritual comovente.
O deus-todo-poderoso ouviu a súplica. A cunhã fugitiva foi trazida de volta e transformada em uma ave encantada, o urutau, que passou a viver errante pelos arvoredos da ilha.
O canto da ave começou a ser ouvido nas matas, todas as noites. Parecia um gemido, triste e melancólico, como soluço de alma penada.
A seguir, ainda sob o efeito de tantas e tão singulares surpresas, os índios ouviram Tupã proferir estas palavras, como que tentando explicar a atitude que acabava de tomar:
“A cunhã ficará, doravante, com a alma na lua. À noite, ela descerá à terra, sob a forma de um pássaro, gemendo, e debatendo-se na escuridão. É o castigo, por ter traído um amor honesto, consagrado pela tradição tupi.”
Assim nasceu a lenda do urutau, o pássaro encantado das cunhãbiras.
Continua na próxima edição…
*Wilma Tereza dos Reis Praia, nascida em Manaus, é formada no Curso Técnico de Análise Clínicas pelo Colégio Amazonense D. Pedro II. Trabalhou como funcionária pública na extinta CODEAMA e ministrou aulas particulares para estudantes de nível médio. Atualmente, dedica-se à digitação de artigos acadêmicos e pesquisa sobre povos e lendas da Amazônia. Dessa pesquisa, nasceu sua obra “Raízes da Amazônia – LENDAS DA AMAZÔNIA”, composta por dois volumes, cada um contendo 45 lendas, publicada em 2011.
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Uma resposta
Parabéns!
Uma obra repleta de aventuras, magia e histórias que nos faz relembrar da nossa infância.