
*Vinícius Alves da Rosa
Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am
Continuação….
Em Serpa, além desse passado marcado por vivências de exploração da mão de obra negra, há marcas históricas de práticas culturais tradicionalmente criadas, valorizadas e mantidas pelos quilombolas e que, em síntese, compõem o que se deve entender por patrimônio. Enfim, são atribuições àquilo que se cria, valoriza, pretendendo-se, em última instância, preservar. Esses valores simbólicos podem se expressar através dos processos de cura, das crenças em visagens ou das relações que os agentes sociais estabelecem com os seres encantados das águas e da floresta. Por exemplo, as experiências misteriosas narradas a respeito do aparecimento de bichos estranhos; de feras com os olhos de fogo, das onças d’água bravas com patas de cavalo, orelhas grandes de elefante.
Isso tudo compõe um cenário no qual criaturas, forjadas seja no processo de cura ou no enfoque lendário, eram vistas em áreas das proximidades do quilombo, conforme descreveu o Sr. Raimundo João Rolin, sobre o seu bisavô, Martinho Leal:
Ele começou a curar, uma pessoa vinha por ali, ele fazia o remédio, daí dava certo, começou a curar, então, começou a correr a fama dele de curador, na época era o tal de curador. Daí, passou a ser procurado por muitas pessoas, por muita gente. A minha avó contava que a casa do meu bisavô, quando ela casou, porque ela ainda viu ele curando. Ela contava muitas histórias desse momento, por exemplo, o caboco, ou seja, o espírito que vinha pra incorporar, ele chegava de cavalo, chegava de barco, eram vários tipos. Vinha aqueles cabocos brabos e outros que faziam só o bem, a fama dele cresceu bastante nesse meio aqui. A minha avó falava que a casa deles parecia casa de festa, era dia e noite, gente chegando e saindo, tinha gente que se curava e ia embora, outros ficavam por ali um tempão, até fazer algum trabalho voluntariamente pra ele e depois iam embora. Aqui no Lago do Serpa, em uma época, teve uma moça que havia se encantado, pela primeira vez ela ficou menstruada, ela não sabia, foi tomar banho no lago, daí, ela desapareceu, foi pra baixo do capim, então, foram buscar ajuda do meu bisavô, Martinho. Ele fez todo o procedimento e conseguiu fazer com que a moça subisse de dentro da água, ela estava cheia de limo, mas ele mandou fazer um banho pra ela, lavou ela que ficou um bom tempo fora de si e depois foi se recuperando. Minha avó e o meu avô contavam essa história [Raimundo João Rolin Leal, 63 anos, Entrevista realizada na residência do entrevistado, Itacoatiara, Amazonas, em 9 de maio de 2024].
O relato do quilombola Sr. Raimundo João Rolin, morador do quilombo do Serpa, a respeito do seu bisavô, aponta que o seu bisavô, o Sr. Martinho Leal, começou a desenvolver a cura na referida comunidade, após ter visto duas onças que o atacaram. As onças são chamadas de tapiraiauara, (onça d’água), figuras míticas amazônica descritas como habitantes dos rios da região. E, depois de um longo período doente em consequência do ataque dos animais, seu Martinho se recuperou e passou a desenvolver o dom de curar às pessoas que o procuravam.
E além do Sr. Martinho Leal, as narrativas dos quilombolas do Serpa, afirmam que eles conheciam os diferentes meios e modos de se curar, como é o caso do Sr. Severino do Nascimento, um rezador que promovia a cura de dor de dente, quebrante (mau olhado), erisipela (infecção na pele). Outro rezador na localidade do Serpa, era o Sr. Antônio de Vilena Clarindo, que rezava para a cura de desmentidura, isto é, deslocamentos ou contusões musculares ocasionadas nos corpos das pessoas. A prática da reza é bastante comum nas regiões norte e nordeste do Brasil.
A respeito desta identidade cultural, manifestada em mitos e lendas, crenças e práticas religiosas, o antropólogo Raimundo Heraldo Maués (2007), no artigo “Catolicismo x Chamanismo: reflexões sobre a pajelança amazônica, renovação carismática e outros movimentos eclesiais”, diz-nos que essas crenças e práticas se encontram espalhadas por várias partes da Amazônia, o que pode ser atestado por estudos científicos realizados por antropólogos e historiadores na região.
E, por esse viés, os trabalhos de pesquisas contemporâneas sobre as diferentes formas de religiosidade na região enfatizam como se diferencia de outras localidades do país, por certas características e peculiaridades, assim o trabalho intitulado: “A Igreja Católica na Amazônia: religiosidade e conflito” observa que:
Algumas expressões de religiosidade, como o catolicismo popular e a pajelança, prática religiosa muito vivenciada na região Amazônica o que muitas vezes acabou gerando certos atritos com a ortodoxia de alguns. De forma mais explicativa, o caso do Território Federal do Amapá merece destaque em relação a tais atritos, de um lado a religião considerada oficial com sua ortodoxia, de outro os festeiros do catolicismo popular, praticantes do xamanismo e/ ou de outras relações com o sagrado (Carvalho & Reis, 2018, p. 71).
Tais atritos travados entre a religião institucional e a religiosidade popular praticada de devoção aos santos padroeiros pelos quilombolas na Amazônia tanto nas comunidades urbanas quanto rurais já demonstrados nesta tese, permitem lançar um olhar crítico para a compreensão de um campo de disputas e poder em relação ao monopólio do sagrado.
A respeito, Maués (2016), autor da resenha “Linguagens da Religião no Contexto Amazônico”, é citado por Tuveri:
Quando Maués fala de catolicismo popular, não o entende como o catolicismo das populações das classes baixas, mas apenas do catolicismo praticado pelas pessoas que compõem o povo em geral, leigos ou até clérigos, em contraposição ao catolicismo oficial praticado pela Igreja enquanto instituição hierárquica, retirando, portanto, qualquer ambiguidade ou sentido depreciativo da palavra popular (Tuveri, 2018, p.1).
O pesquisador Raymundo Heraldo Maués, estudioso da religiosidade vivida em diferentes contextos amazônicos, ao discorrer sobre o catolicismo popular, o entende como a autonomia dos distintos agentes sociais que compõem o povo, desvinculados das normas estabelecidas pela religião oficial.
Isto posto, a presente tese busca contribuir com o debate acadêmico proposto no âmbito das Ciências da Religião, trazendo epistemologias cujos fundamentos têm as bases nas unidades quilombolas, situadas na Amazônia, sob a ótica da religiosidade vivida no dia a dia das comunidades urbanas e rurais.
Neste sentido, a atividade acadêmica dedicada às investigações referentes à cultura religiosa vivida pelos quilombolas está apoiada no trabalho de campo etnográfico, mediante os contatos estabelecidos no intuito de construir os dados que descrevam as características específicas das comunidades étnicas analisadas.
Procurou-se trazer elementos ao longo da execução da pesquisa, sobretudo, para evidenciar os ritos religiosos legitimados secularmente nas duas unidades étnicas. A primeira, configurada na reverência prestada do culto a São Benedito, no quilombo do Barranco em Manaus; a segunda, na procissão praticada nas águas do Lago do Serpa, em Itacoatiara – AM.
A riqueza destas tradições religiosas, em suas complexidades, expressa a fé dos quilombolas politicamente organizados da Amazônia que se fortalecem por meio das crenças nos seus santos padroeiros, dentre as quais está referenciada a fé na luta pela demarcação dos seus territórios, afirmando historicamente as suas identidades étnicas.
Em contraposição, as classificações arbitrárias proferidas sobre as hierarquias religiosas firmam-se neste trabalho, empregando o esforço epistêmico de situar a religiosidade de vertente popular protagonizada pelos quilombolas urbanos e rurais, no mesmo patamar de importância das demais tradições religiosas, com seus aspectos sagrados, humanos, culturais e históricos.
Assim, cabe reforçar a contribuição científica assumida, que entrelaça a tessitura da tese por ora apresentada e nos faz pensar na urgência da inclusão das diferenças, com vistas a combater as ideologias criadas para excluir as comunidades quilombolas.
Por essa ótica, torna-se premente registrar a relevância das memórias e histórias da presença dos coletivos negros no município de Itacoatiara/AM, bem como deve ser extensivo aos marcadores culturais que permeiam a realidade do quilombo urbano a ser analisado sob a ótica da diversidade e equidade acerca do prisma etnocultural da Amazônia, conforme discussões subsequentes.
4.3 Os quilombolas da Comunidade do Barranco em Manaus
“Praça 14 sempre foi muito divertida”.
“Sempre foi um povo festeiro”
(João Fernandes)55
As descrições etnográficas contidas nesta tese sobre os quilombos urbanos e rurais da Amazônia, estão centradas no constante esforço acadêmico deste trabalho desenvolvido nas bases conceituais oriundas da Ciências da Religião, que certamente contribuem para os estudos avançados acerca da religiosidade numa perspectiva das investigações realizadas cientificamente sob o viés do pluralismo religioso.
Neste ínterim, podemos nos reportar ao trabalho de autoria do professor Cláudio de Oliveira Ribeiro, que tem como título: “Como cheguei à formulação do Princípio Pluralista”. Eis o que nos diz o mestre:
O debate sobre o princípio pluralista está articulado com ao Grupo de Pesquisa Interinstitucional “Espiritualidades contemporâneas, pluralidade religiosa e diálogo”, da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Teologia e Ciências da Religião (Anptecre) e da Sociedade de Teologia e Estudos de Religião (Soter), coordenado pelo Prof. Dr. Roberlei Panasiewicz (PUC/Minas), Gilbraz Aragão (Unicap/PE) e por mim (UFJF) em vários eventos dessas associações e sessões do grupo diálogo, as ênfases de nossas pesquisas foram apresentadas (Ribeiro, 2021, p. 7).
Na referência citada, observa-se a razão das articulações do “Grupo de Pesquisa, Espiritualidades contemporâneas, pluralidade religiosa e diálogo”, em face das ações relativas aos profícuos debates, acionados pelas organizações de eventos acadêmicos, de publicações científicas, construídas coletivamente no âmbito da Ciências da Religião. Uma área autônoma do conhecimento, todavia, com a devida pretensão se tornar um campo de trabalho epistêmico. E, portanto, ainda em afirmação nas universidades brasileiras.
Vale frisar, perfilado ao mesmo horizonte de ideias, a minha participação no IX Congresso Anptecre com o tema “A Religião na América Latina e Caribe: conceitos, relações e perspectivas”, realizado entre os dias 19 e 21 de setembro de 2023 em formato híbrido e, presencialmente, na PUC/Campinas, por transmissão online via Evento Dinâmico.
Neste congresso, realizamos a comunicação na condição de autor em coautoria com a quilombola Rafaela Fonseca da Silva, no GT: Espiritualidades contemporâneas, pluralidade religiosa e diálogo, cujo título por nós proposto foi “Rostos amazônicos: indígenas e quilombolas na festa de São Benedito no quilombo do Barranco”.
A oportunidade de comunicação no evento da ANPTECRE, em 2023, possibilitou o diálogo necessário com os coordenadores do Grupo de Trabalho mencionado. A participação do professor Cláudio Ribeiro ensejou em trocas de experiências acadêmicas e aquisições de novos conceitos em face da formulação de críticas e sugestões acerca das literaturas que incidem contribuir qualitativamente com as reflexões da presente tese a ser defendida ainda no ano em curso. Enquanto processo de construção da reflexividade, entende-se:
Como indicativo da necessidade de novos referenciais teóricos para as ciências da religião [enquanto] compreensão mais adequada da diversificação cada vez mais visível do quadro religioso e o crescente anseio da parte de diferentes grupos pelos diálogos inter-religiosos, não obstante ao simultâneo fortalecimento das propostas de cunho fundamentalista. Este panorama tem implementado novas perspectivas hermenêuticas, teológicas ou não, mas ainda possui no horizonte a maior parte de suas questões. Estas também necessitam ser formuladas de maneira mais adequada e debatidas com profundidade (Ribeiro, 2021, p.10).
Os novos referenciais teóricos no âmbito das Ciências da Religião para compreender de modo mais adequado a diversidade religiosa, o que contempla por sua vez a religiosidade vivida nos cotidianos urbanos e rurais dos quilombos da Amazônia, anseiam por diálogos inter-religiosos, contrapondo-se ao fundamentalismo. E trazem à tona as perspectivas hermenêuticas teológicas ou não teológicas, situando-as no horizonte das questões debatidas com a indispensável profundidade acadêmica.
Pierre Bourdieu (1997), no capítulo “Compreender do livro A Miséria do Mundo”, identifica os problemas decorrentes da relação entre pesquisador e pesquisados. Segundo ele, o pesquisador em respeito ao seu objeto de estudo, deve estar atento às sutilezas para evitar a violência simbólica capaz de afetar as respostas dos entrevistados. O autor enfatiza que apesar dos manuais ditos metodológicos existentes sobre as técnicas de pesquisas, é fundamental colocar em prática a reflexividade para ter o controle no campo da pesquisa na condução das entrevistas, com a constante vigilância a fim de não ser arbitrário.
Nesses termos, procedeu-se à análise crítica em torno do objeto investigado, com vistas a refletir sobre os dados construídos por meio das narrativas, as quais possibilitaram a compreensão dos aspectos da realidade pesquisada no que tange à religiosidade vivida pelos quilombolas no cotidiano urbano.
É ilustrativa a matéria publicada no centenário Jornal do Comércio em Manaus, em 06 de abril de 1980, com o título: Fiéis levantaram mastro na tradição da Praça 14: a festa de São Benedito:
A sra. Lourdinha Nascimento, organizadora da festa de São Benedito, em entrevista ao JC, disse ontem que os festejos desse ano serão mais animados que dos anos anteriores, graças a colaboração do Jaqueirão e dos moradores da Praça 14 de Janeiro. A festa de São Benedito originou-se de uma família de pretos maranhenses que veio para Manaus e aqui se instalou no bairro de Praça 14. Um membro da família foi mordido por um macaco e estava entre a vida e a morte, Felipe Beca fez uma promessa a São Benedito e ao ser atendido teve que cumprir sua palavra. Desde então, todos os anos, nesta data festeja-se São Benedito. Esta é a mais antiga festa popular que chegou quase a desaparecer mas graças ao sacrifício de Lourdinha, até hoje se conseguiu manter a tradição. Afirma ela que há anos não havia mais mastro, devotos e nem recursos para continuar; estava prestes a desaparecer, mas hoje, com a ajuda da Associação Recreativa Beneficente Jaqueirão e o apoio da população, São Benedito será novamente festejado (Jornal Do Comércio, 1980).
À luz da narrativa informada pela Sra. Maria de Lourdes Fonseca, a conhecida tia Lourdinha, na entrevista concedida ao Jornal do Comércio no ano de 1980, percebe-se que o aludido festejo religioso em honra a São Benedito, ao longo dos anos se manteve devido à colaboração voluntária dos devotos e instituições como a Associação Recreativa Beneficente Jaqueirão, que ainda havia na localidade, usada como sede de encontros, práticas de jogos, atividades musicais, dentre outros. Esse local foi vendido a um grupo empresarial existente no norte do Brasil, cuja empresa agrega inúmeras lojas distribuídas na cidade. Em virtude da venda do terreno da Associação Jaqueirão, por motivos desconhecidos, uma reivindicação atual é a necessidade de um espaço cultural para realizar eventos, reuniões, recepcionar visitantes, além de um local próprio para a Associação Quilombola da comunidade urbana situada em Manaus.
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55 O Sr. João Fernandes estivera presente na festa realizada em Honra a São Benedito no ano de 2024. Ele relatou durante o momento em que se encontrava em uma das noites de novena do referido evento religioso, que desde a época dos antigos moradores já falecidos, como tia Lourdinha, Antão Fonseca, Manoel Fonseca, e Mestre Carlos, mantém-se como devoto do Santo Padroeiro, sendo que na ocasião do festejo estava completando noventa anos de idade. Ainda relatou durante um momento de conversa informal que o bairro Praça 14 de Janeiro tradicionalmente realiza festas para diversões, lazer e entretenimento dos seus moradores desde os tempos passados. De acordo com o Sr. João Fernandes, e como sabemos publicamente, os moradores do bairro têm o costume de realizar com frequência muitas festas.
Continua na próxima edição…
*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).
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