Manaus, 12 de dezembro de 2025

Religiosidade popular nos quilombos urbanos e rurais da Amazônia

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*Vinícius Alves da Rosa

Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am

Continuação….

4.5 As relações familiares: os “troncos velhos”, os Sabino, os Melo, os Macedo, os Clarindo, os Barros

A verdade estava como um leque fechado;
mas, agora, está se abrindo o leque.
Ernando Soares de Macedo58

O quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa está historicamente situado à margem de um lago cercado de verde em abundância. Contrário ao conflito agrário ali instalado, do ponto de vista geográfico, os moradores convivem com os desígnios da natureza; no silêncio das manhãs ou fins da tarde. Na comunidade rural, podemos ouvir os sons produzidos pelos pássaros e outros animais característicos da Amazônia.

Todavia, contrário à beleza da paisagem estimulada pela atmosfera envolvente no território quilombola que emana das relações de sociabilidade própria do grupo configurado consoante a ascendência dos troncos familiares ali representados. Enfim, em meios ao conflito agrário, estão as batalhas renhidas enfrentadas perante os distintos antagonistas que se colocam contrários à titulação fundiária daquele território quilombola.

Caminhar nas mesmas trilhas onde outrora pisaram os negros e negras desta região, de ancestralidades africanas e afro-brasileiras, torna-se conhecidas mediante as narrativas dos quilombolas registradas nos trabalhos acadêmicos contemporâneos, a respeito das comunidades remanescentes, e suas lutas por reconhecimento étnico e constitucional perante o Estado.

Conquanto, minhas idas e vindas nesta ambiência de contexto rural reforçam amiúde os propósitos previamente assumidos com intuito de apresentar as especificidades internas ao cotidiano quilombola e suas expressões advindas dos símbolos, das histórias e cultura, aqui materializados em relação ao quilombo do Lago do Serpa. Como explícito no relato concedido pelo quilombola, Sr. Ernando Macedo.

Eu sou da família dos Macedo, represento como Presidente a Associação quilombola da comunidade Sagrado Coração de Jesus. Sei das histórias e tenho 74 anos de idade, pois a história que vou falar sobre os meus pais, o meu avô eu não alcancei. O nome do meu avô era José Capitulino de Macedo, a minha avó era Ricardina Soares de Macedo. O meu pai contava a respeito da vinda deles de onde eles estavam, passando até pela África, realmente, na época em que ele falava das condições que os escravos tinham aí pra cima, no alto Purus, fazendo arrecadação do leite de seringa, nos seringais comandados pelos patrões. O meu avô e o meu pai trabalharam nessas arrecadações, quando chegavam em alguns pontos das cidades o navio atracava, com certeza para abastecer ou comprar algumas coisas, daí eles fugiam. Por isso tem muitas comunidades quilombolas, porque eles saiam fugidos, o meu pai, a minha avó e o meu avô, eles fugiram e vieram aqui pro Lago do Serpa… aqui, pro Lago do Serpa, eles falavam que onde o barco atracou, nós chamamos de Porto do Relógio, outros chamavam de rampa. As rampas eram feitas como uma escadaria que descia e subia. Aí, eles vieram aqui pro Lago do Serpa, o meu pai, a minha mãe, minha avó, mais dois tios e duas tias, eles se alojaram aqui nessa comunidade que não tinha habitação de ninguém. A profissão deles pra ganhar a vida era tirar lenha, naquela época tinha as embarcações a vapor que queimavam lenha, tinha umas pequenas lanchas que eles tiravam lenha para ganhar a vida, eles foram crescendo no conhecimento com a cidade e passaram a fazer carvão. Eles viviam de tirar lenha e fazer carvão, era um mercado pequeno, mas pra eles que não tinham recurso de nada era um bom mercado, assim, eles foram levando a vida, foram crescendo. No caso da minha mãe, já era diferente, ela quando se juntou com o meu pai, ele já tinha dezoito anos, eles terminaram os dias de vida aqui nesse mesmo lugar onde moramos, eles fizeram essa família, o meu pai João Marques de Macedo, falecido há treze anos, ficou eu com a minha família e hoje estou aqui, mas a certeza de tudo era que a gente tinha as histórias, mas não tínhamos um professor para transmitir direito as histórias dos quilombolas, dos escravos fugitivos. Daí apareceu o professor Claudemilson, o Francisco Gomes, que é um pesquisador antigo de Itacoatiara, foi ajudando, foi dando tudo certo. Enfim, a gente aqui é um quilombo, sempre lutei pela minha comunidade, lutei pela minha família, lutei pelo meu território, acho muito importante a gente conservar a comunidade, a localidade, pra evitar poluir o Lago muito rico e lindo que nós temos aqui, a gente luta com o objetivo de defender a natureza que é esse lago e a floresta, mas tem muitas castanheiras que são derrubadas. Quanto a isso, gente luta muito, eu trabalhei como catequista vinte e sete anos, Presidente mais de trinta anos. Como Presidente, hoje estamos esperando em Deus a nossa oportunidade de titulação dessa comunidade aqui do Lago do Serpa [Ernando Macedo Soares, 74 anos. Entrevista realizada na residência do entrevistado, Itacoatiara, Amazonas, em 27 de abril de 2024].

Consoante a entrevista realizada com o Presidente da Associação quilombola da comunidade rural do Lago do Serpa, Sr. Ernando Macedo, podemos constatar a sua pertença familiar junto ao “tronco” dos Macedo. Família tradicional que ocupou a região referida desde o início do século XX, com origens no nordeste brasileiro vindo do Estado de Pernambuco. De acordo com o líder quilombola, seus antepassados eram seringueiros, além de terem trabalhado na carvoaria, profissão publicamente desempenhada pelos quilombolas do Serpa. É possível observar à luz do relato do quilombola, ao fazer referências aos escravos fugidos e refugiados nas imediações do Lago do Serpa, local histórico e culturalmente construído pela família Macedo, um marco nas lutas enfrentadas secularmente e cuja memória social é repassada pelas narrativas da oralidade.

O Sr. Ernando Macedo destacou a função social dos professores nas atividades das pesquisas, para assim investigar a história da comunidade. Naquele momento a ênfase dada a essa prática acadêmica tem como destaque o trabalho de pesquisa realizado pelo quilombola e o professor Claudemilson Nonato Santos de Oliveira. Tal destaque está por se tratar de um agente intelectual do quilombo com notoriedade pelos relevantes serviços prestados na interlocução junto aos órgãos de Estado e nos processos organizacionais do grupo.

Outro interlocutor junto ao quilombo diz respeito ao Sr. Francisco Gomes da Silva, que, nascido em Itacoatiara/Am, hoje desfruta de sua aposentadoria como Procurador, destacando-se também por ser exímio estudioso e conhecedor da história local, além de que é autor de vários livros publicados. Do ponto de vista pessoal, sempre procura manter estreitos laços de cordialidade em suas relações com os moradores do Lago do Serpa. Uma atitude que tem se fortalecido como compromisso assumido desde a época do falecimento de seu pai.

Outrossim, o nosso interlocutor, o Sr. Ernando, atuou como catequista durante vinte e sete anos, exercendo tais funções religiosas junto à igreja católica Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa. Ressaltam-se, ainda, outras participações contínuas nos eventos organizados pela igreja, além de frequentar os cultos a convite dos membros da comunidade nas igrejas evangélicas situadas na área do quilombo.

Na mesma perspectiva analítica que se volta para a compreensão de como estão alocadas as famílias de moradores estabelecidos nesse território quilombola, é fator ilustrativo o caso dos Melo, como veremos segundo as declarações repassadas pelo quilombola Sebastião Gonçalves de Melo, conhecido como (Sabá). Diz ele:

O meu pai veio do Ceará junto com os negros no tempo em que o navio os trouxe. Ele com o meu avô, ambos ficaram lá no Centenário, do Centenário entraram pra cá pro Serpa. O nome do meu pai era Maciel, filho do Pedro de Melo, minha avó era Raimunda, então, eles entraram pra cá pra trabalhar porque na época eles só tiravam lenha, alguns já faziam o carvão, plantavam cana, arroz e a roça para fazer a farinha. Desse tempo pra cá, o papai arrumou a minha mãe, a minha mãe era caboca daqui mesmo, era do Arari, nós ficamos aqui trabalhando com o papai até ele morrer aos oitenta e seis anos. Um homem muito trabalhador, ele veio junto com os negros, mas nasceu no Ceará, nós ficamos aqui, e eu tenho sessenta e seis anos hoje, muitas coisas boas já se passaram, muitas coisas boas já aconteceram, a gente está passando aqui por essa dificuldade por motivos de a gente enfrentar perseguições. Somos trabalhadores e nos dedicamos à roça, plantamos milho e feijão, eu tenho uma família muito grande, graças a Deus, meus filhos vivem alguns aqui, outros estão em Manaus, tudo é com muito sacrifício. Assim, nós estamos nessa luta, depois que descobrimos o significado de quilombo, a gente abraçou essa causa com eles, para que tivéssemos mais respeito aqui, no nosso Lago, nas nossas terras, para que pudéssemos viver sem tantas perseguições, mas ainda temos muitas perseguições, muitas pessoas querendo fazer coisas erradas. Aí, nos pegamos com Deus para que nada de mal venha acontecer com ninguém, nós queremos o melhor, o bem da sociedade, da nossa água, dos nossos peixes, das nossas casas, nós podemos ainda desfrutar disso aí, do meu tempo de vida até agora nós estamos nessa luta aí [Sebastião Gonçalves de Melo, 66 anos. Entrevista realizada na Sede da Associação quilombola Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, Itacoatiara, Amazonas, em 28 de abril de 2024].

Essas recordações que brotam da memória coletiva, materializada nas narrativas dos agentes sociais convergem para a territorialidade específica deste quilombo rural. Assim, objetivadas nos relatos acerca da chegada dos primeiros membros de suas famílias, a exemplo do “tronco” dos Melo, em seu conjunto, tais expressões dão conta dos processos de constituição e construção histórica do quilombo. Oriundos da região nordeste do país, os fluxos migratórios de negros em direção a Amazônia apontam para as relações de sociabilidades, entendendo-a como âncora lançada em face da procura por melhores condições de vida. Compreendida sob a ótica dos ex-escravizados é que essa parte da região Norte, ou seja, no Amazonas, encontraram, mais especificamente, na região do Lago do Serpa, a oportunidade de ressignificar as suas condições materiais de existência, seja pela prática do trabalho e/ou nas relações de solidariedade e compadresco tradicionalmente estabelecidas.

É possível considerar como relatou o Sr. Sebastião Melo a respeito das perseguições, ou nas conversas com as lideranças da comunidade étnica, a constante preocupação dos quilombolas relacionadas às ameaças sofridas com a forte intenção de intimidar aqueles que lutam pela definitiva titulação fundiária do território, tendo em vista a reivindicação dos direitos constitucionalmente assegurados.

O Lago do Serpa em decorrência da abrangência do território quilombola compreende dois mil e quinhentas hectares. Tendo em vista a possibilidade da garantia dos direitos territoriais, tal ensejo tem sido objeto de embates políticos, ocorridos em detrimento das disputas econômicas aliadas à cobiça vinda do empresariado regional.

No entanto, os entraves – amparados numa nova consciência engendrada por via dos movimentos político-organizativos – encontram bases sólidas por se tratar de direitos constitucionalmente garantidos, como apregoa o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias-ADCT, da Constituição Federal de 1988: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Esse preceito constitucional respalda de forma inconteste o território quilombola do Logo do Serpa, doravante se tem como registro desse direito as próprias narrativas dos quilombolas que sustentam se tratar de longas décadas ou de forma centenária se tem o registro das famílias que adentraram esse território tradicionalmente ocupado. Ali se resguardam aqueles símbolos culturais herdados de seus antepassados e, na contemporaneidade, essas tradições vão sendo reinventadas ou culturalmente ressignificadas e repassadas de geração em geração: um lugar onde vivem e lutam pela conservação ambiental da área habitada, pois intencionam continuar a conviver com a biodiversidade que é peculiar à comunidade étnica rural localizada em Itacoatiara/AM.

A composição dos chamados “troncos velhos” com raízes no Lago do Serpa integra necessariamente a família dos Sabino: negros retintos e historicamente reconhecidos pelos moradores antigos da localidade, conforme verificaremos na sequência, como sugere o depoimento do quilombola Sr. Lourenço Sabino do Nascimento.

Quando eu tinha quatro dias de nascido o meu avô morreu, me falaram que o meu avô morreu quando eu tinha quatro dias, então, eu não cheguei conhecer o meu avô por parte de pai, mas aí, foi continuando a vida dos Sabino. Era a família mais preta que tinha por aqui, hoje, tem os filhos, tem os netos, tem os bisnetos, tudo da família dos Sabino, tinha a minha avó, a minha avó já não era muito preta, ela não era cearense, mas o meu avô era, depois de uns tempos a minha avó morreu, nós ficamos por parte de pai, vivendo a nossa vida, era Sebastião Sabino, Chico Sabino, Raimundo Sabino, João Sabino, esses são os irmãos que eu encontrei na vida, tinha o João Sabino, mas eu nunca vi, ele morou em Manaus, pra lá ele morreu e ninguém nunca viu ele. Então, essa aí é a família que nós conseguimos viver até hoje, estamos vivendo aqui, estamos seguindo nossa vida aqui, então, apareceu os quilombolas perguntando pelos Sabino, e os Sabino? Os Melo, Os Capitulino, aí começou a surgir, hoje, está surgindo, e tá aí. Os Sabino moravam lá embaixo em direção ao rio, onde hoje em dia é do Emanuel, porque o Emanuel morreu, lá eles moravam, eu ainda morei lá uns dez anos mais ou menos, lá era o terreno que eles moravam. O meu avô era de Fortaleza, mas aí foi pro Piauí, do Piauí ele vieram pra cá pro Amazonas, a minha avó por parte de pai era do Piauí, era bem morena, toda família tem os brancos e tem os pretos, é verdade né? Então, ela viveu a vida e ela veio pra cá, mas ela era de lá, o meu avô nasceu no Ceará, mas ele cresceu no Piauí, de lá eles vieram daquela guerra que teve em 53 mais ou menos, depois de 53, uma guerra que teve muito perigosa, né? Aí, se esconderam aqui, tinha o Centenário, o qual eu tomei conhecimento, eles viveram escondidos nesse lugar chamado de Centenário lá pro Lago do Serpa, por causa da guerra porque a guerra era muito perigosa, então viveram a vida assim, foi o que chegou do meu conhecimento pra cá [Lourenço Sabino do Nascimento, 70 anos. Entrevista realizada na residência do entrevistado, Itacoatiara, Amazonas, em 28 de abril de 2024].

O Sr. Lourenço Sabino afirmou pertencer a esta família de negros radicada historicamente no Lago do Serpa, o conteúdo do depoimento ratifica os relatos anteriores de membros de famílias tradicionais deste quilombo, em que os pais e avós foram migrantes do nordeste, mas encontraram no território rural um sentimento de pertença para ressignificar suas histórias de vida no atualmente autodefinido quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa.

O local oportunizou às famílias dos negros lá abrigadas construirem formas de suprir suas condições materiais de existência e, através do trabalho, conquistar a liberdade através da fuga decorrente dos maus-tratos engendrados pelo perverso sistema escravista/opressor. Organizam-se, desta feita, outras formas de convivência amparadas coletivamente em outros modos de interação cultural, bem como desenvolveu-se forma de sensibilidade ecológica e respeito por todas as formas de vida que se encontram no entorno.

Assim, nesta realidade especificamente particular da comunidade rural, resiste e interage o coletivo quilombola, ao afirmar a cultura própria do estar-no-mundo articulada aos processos organizativos. Não obstante, as dificuldades enfrentadas perante os seus antagonistas, os membros do grupo buscam conhecimentos contemporâneos acerca das discussões dos quilombos protagonizando as forças sociai vinculadas ao movimento político motivado pela consciência étnica.

A obra A Invenção do Cotidiano de Michel de Certeau, teólogo jesuíta e historiador, é um postulado da epistemologia crítica que traz proposições teóricas das práticas cotidianas e propõe outros métodos científicos para compreender as problemáticas de pesquisa e de ação a respeito da cultura. Como as Artes de Fazer, suscitadas e desenvolvidas em vários contextos, sendo a preocupação central do lugar concedido à teoria do relato.

Ao menos indicando os sítios onde as práticas cotidianas, vou marcar já as dívidas e também as diferenças que possibilitaram um trabalho nestes lugares. Os relatos de que se compõe esta obra pretendem narrar práticas comuns. Introduzi-las com as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e as lutas que organizam os espações onde essas narrações vão abrindo um caminho, significa delimitar um campo. Com isto, se precisará igualmente uma “maneira de caminhar” que pertence aliás “às maneiras de fazer” de que aqui se trata (Certeau, 1980, p. 35).

Alinhado ao horizonte acima citado, os trabalhos acadêmicos concebidos sob o viés da reflexividade na contemporaneidade em diferentes áreas do conhecimento valorizam os relatos dos agentes sociais pesquisados, cujas vozes necessariamente devem ser ouvidas como produtores de cultura religiosa, e detentores dos saberes tradicionais repassados por via da oralidade.

Assumindo tal postura acadêmico-científica, a tese aqui apresentada diverge do “espírito” que predomina nas sociedades colonialistas, em especial a brasileira, excludente em demasia por se tratar de práticas classificatórias, inventadas amiúde em instituições normativas, estruturadas intencionalmente para o silenciamento dos grupos minoritários subalternizados.

Neste sentido, se tem a oportunidade singular de aprender com a sabedoria dos que compõem as unidades sociais quilombolas, particularmente no caso da comunidade rural do Lago do Serpa, guardiã ao longo das décadas do território e na qual os seus integrantes trabalham ao longo dos tempos na profissão de carvoeiros, agricultores, pescadores, artesãos e professores, cujo protagonismo coletivo se notabiliza por meio das lutas identitárias de valorização da sua história.

Na sequência das entrevistas desenvolvidas com os membros das tradicionais famílias que ocupam o território quilombola do Lago do Serpa, ouvimos o Sr. José Jorge Amazonas Barros, conforme será exposto no relato registrado a seguir:

A família Barros começa aqui no município de Itacoatiara com o Aquilino Barros, o meu bisavô, Aquilino Barros, chega aqui no final dos anos 1900, no Estado do Amazonas, ele começa a adquirir terras, era do Catalão, veio da região da Catalunha, chegou aqui com outros empresários e começou adquirir terra, imóveis, enfim, pra explorar tanto a balata, quanto a castanha, a madeira inclusive, então, adquiriu uma área em Autazes, muitas áreas em Itacoatiara, na região do Canaçari, quatro áreas na região do Lago do Serpa, as quatro áreas na região do Lago do Serpa, ele transformou na Fazenda Grande Guajará, eram quatro lotes, ia da margem do rio Amazonas até a margem do Serpa, a parte da margem do rio Amazonas não era ligada à margem do Serpa, ela era mais acima, mas os fundos desse terreno fazia extrema com o Lago do Serpa, mais de setecentas hectares de terra, aí, lá, ele criava boi, tinha uma oficina fluvial para trabalhar tanto de batelões de ferro quanto de madeira, ele veio aqui pro Amazonas pra explorar, ele era um grande latifundiário [José Jorge Amazonas Barros, 41 anos. Entrevista realizada na residência do entrevistado, Itacoatiara, Amazonas, em 8 de maio de 2024].

O depoimento do Sr. Jorge Barros, assegurou que o seu bisavô, oriundo da região da Catalunha, na Espanha, adquiriu grandes quantidades de terras e imóveis, sendo um dos imóveis na região do Lago do Serpa em 1894, atual Itacoatiara, e mais três imóveis em outros municípios do Amazonas. Na condição de empresário e fazendeiro, trabalhou também no ramo da extração de castanha, de balata, leite extraído da árvore da seringa. Aquilino Barro fora um latifundiário que explorou esta área, pois era criador de gado desde 1893.

Neste sentido, a narrativa do membro da família Barros corrobora com o que já sabemos. Por exemplo, nas adjacências do Lago do Serpa havia, próximo das famílias dos negros que moravam na localidade, forças exploradoras da mão de obra humana, como é o caso dos fazendeiros, dos donos de seringais, ocupados com o acúmulo de riqueza, em detrimento da valorização da vida das minorias étnicas que residiam no entorno.

Segundo o Sr. Jorge Barros, o bisavô Aquilino Barros se casou com a indígena Liberata Maria Barros, do povo Moura, tendo se tornado uma pessoa mais solidária no relacionamento com os negros e indígenas, após contrair a convivência matrimonial com a sua esposa.

A sorte dele foi se apaixonar por uma indígena, então, ele se apaixonou por uma indígena Moura, acabou casando com ela, ela era ainda bem jovem quando ele se apaixonou, ela era menor, ele a tirou da aldeia, registrou e depois casou-se com ela construindo família, dez filhos ele teve, nessa região do Serpa, depois que ele passou a conviver com ela, ela então o convenceu de devolver o que ele já tinha furtado dos amazônidas aqui dessa região, ela o convenceu a vender uma área que ele não queria vender lá em Autazes, ele vendeu a Serraria Aliança para uma cooperativa lá, aqui no Lago do Serpa ela o convenceu a empregar algumas pessoas, inclusive indígenas e também quilombolas, pelo que a gente tem conhecimento na época já havia quilombolas na região, não exatamente nessa área onde era a fazenda Grande Guajará, passando um pouquinho da fazenda, e ela então se dava com todo mundo e trouxe as pessoas para trabalhar na fazenda. Posteriormente, o filho dele chegou a contratar uma família quilombola que até hoje está lá (José Jorge Amazonas Barros, 41 anos. Entrevista realizada na residência do entrevistado, Itacoatiara, Amazonas, em 8 de maio de 2024].

No entanto, a mudança de comportamento do Sr. Aquilino Barros, da condição de latifundiário explorador das etnias para a melhor convivência com os amazônidas, ocorreu pela influência positiva da esposa indígena, de acordo com o relato do bisneto. O local onde está localizado o aeroporto de Itacoatiara, teria sido uma doação de terras na qual a propriedade pertenceu ao seu bisavô.

No entorno do Lago do Serpa, conviviam famílias de negros que na oportunidade de fuga da escravidão encontraram na localidade trabalho para o sustento pessoal e coletivo, bem como construíram relações de afetividade e compadresco numa convivência ao longo dos tempos. Embora essas ressignificações do cotidiano, no mesmo lugar também habitavam alguns homens de negócios interessados na obtenção do poder econômico e financeiro nesta região.

Buscou-se aproximar os contatos com membros da família Clarindo, para fins da realização de entrevistas, mas não foi possível fazê-lo. Neste ínterim, respeitou-se o direito dos agentes sociais em não se permitir como lugar de falar, tal comportamento é possível compreendemos em razão das dimensões dos conflitos existentes no território quilombola rural, quiçá em relação à titulação definitiva desta área, sendo compreensível o receio dos quilombolas do Lago do Serpa em não conceder entrevistas.

Atualmente, em decorrência das ameaças sofridas, foram inclusos no programa de proteção de testemunhas quatro agentes quilombolas da comunidade do Serpa. Por conta desse impasse, os moradores têm suas residências monitoradas por câmeras de segurança, mediante a preocupação do risco iminente da perda de vidas, pois mantêm contatos permanentes com as forças policiais militares e federais, para resguardar a integridade física das lideranças do quilombo.

Os conflitos, por vezes, são arrefecidos em razão de certa respeitabilidade aos chamados “troncos velhos”. Suas perspectivas de vida têm raízes históricas na mesma geografia onde viveram seus antepassados, firmando pactos em detrimento da contribuição participativa junto ao município de Itacoatiara/Amazonas. São ligados por relações de consanguinidade, parentesco, casamentos constituídos, laços de solidariedade que vinculam os Sabino, os Melo, os Macedo, os Clarindo e os Barros.

E na medida em que os quilombolas se articulam, as dinâmicas do movimento organizacional seguem o seu fluxo, consolidando as estruturas internas, seja para compor a Coordenação Estadual da CONAQ no Amazonas, nas viagens para os Encontros Nacionais em Brasília, ou no ingresso às universidades nos cursos de Graduação e Pós-graduação. Fato é que as lideranças vão gradativamente se politizando no aperfeiçoamento das estratégias de atuação político-organizativa.

Portanto, ao longo do percurso metodológico desta pesquisa científica, estamos apoiados em alguns autores e autoras cujas referências bibliográficas disponíveis estão delimitadas a partir das dimensões dos cotidianos quilombolas. A respeitos das quais se assume a postura pública epistêmica em face da resistência que contrapõe ao colonialismo. Utilizando-se, portanto, os fundamentos teóricos decoloniais aplicados para os estudos da religião.

Assim, a presente produção científica busca contribuir com o debate acadêmico no âmbito das Ciências da Religião, trazendo para arena dos debates as epistemologias cujos fundamentos têm suas bases e perspectivas nas unidades quilombolas, situadas na Amazônia e, por assim dizer, discutidas e analisadas sob a ótica da religiosidade vivida no dia a dia das comunidades urbanas e rurais.

Neste sentido, o fôlego acadêmico dedicado às investigações referentes a cultura religiosa vivida pelos quilombolas enveredou pelo trabalho de campo adotado numa vertente analítica de interpretação etnográfica. Um pacto que foi coletivamente construído mediante os contatos estabelecidos no intuito de capturar, pela observação direta e sistemática, aqueles dados que descrevam as características específicas os territórios étnicos aqui analisados.

Nessa relação dialógica, procurou-se trazer elementos ao longo da execução da pesquisa, sobretudo para evidenciar os ritos religiosos legitimados secularmente nas duas unidades étnicas: a primeira, notadamente configurada na reverência prestada do culto a São Benedito, no quilombo do Barranco em Manaus; e a segunda, na procissão praticada nas águas do Lago do Serpa, em Itacoatiara/AM.

A riqueza de ambas as tradições religiosas, em suas complexidades, expressa a fé dos quilombolas politicamente organizados da Amazônia. Entre outras análises, o dado relevante da pesquisa está em verificar que as duas realidades – urbano e rural – se fortalecem por meio das crenças nos seus santos padroeiros, geralmente, a eles recorrido quando se trata da fé neles depositada sobre esperanças alcançadas. Por exemplo, na luta pela demarcação dos seus territórios, expressando com isso o sentimento de pertença ao grupo étnico historicamente construído.

Em contraposição, as classificações arbitrárias inventadas sobre as hierarquias religiosas firmam neste trabalho o esforço epistêmico para situar a religiosidade de vertente popular protagonizada pelos quilombos urbanos e rurais, no mesmo patamar de importância das demais tradições religiosas, com seus fenômenos sagrados, humanos, culturais e históricos.

Assim, cabe reforçar o compromisso científico publicamente assumido que se entrelaça na tessitura da tese ora apresentada e nos faz debruçar sobre aqueles patamares que invocam a urgência da inclusão das diferenças entendendo-a como pré-requisito da igualdade. Contrapondo-se, dessa forma, aos silenciamento das ideologias criadas para excluir ou invisibilizar as comunidades quilombolas. Por essa via, torna-se premente registrar a relevância das memórias e histórias da presença dos coletivos negros nos territórios amazônicos, como fomento à diversidade e equidade sociocultural.

Em síntese, a força motriz das discussões por ora delineadas intenciona oferecer subsídios teóricos e práticos para o campo de estudos avançados no âmbito da religião. Para tanto, enveredou-se por reflexões acadêmicas centradas na pluralidade de ideias, consoante às análises etnográficas realizadas criticamente ao longo deste processo de investigação científica reportada naqueles casos específicos advindos das relações cotidianamente engendradas nos quilombos urbano na cidade de Manaus e do rural no município de Itacoatiara/AM.

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58 A frase que serve de epígrafe ao referido subitem é do Sr. Ernando Soares de Macedo, Presidente da Associação Quilombola Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa e que foi pronunciada na ocasião de um momento de conversa informal, realizada em 27 de abril de 2024, nas adjacências da sua residência em referência às histórias das famílias que tradicionalmente ocupam a região do Lago do Serpa.

Continua na próxima edição…

*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).

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