
*Vinícius Alves da Rosa
Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am
Continuação…
Historicamente, o Brasil legitimou meios para manter as desigualdades. Mesmo com a lei da abolição da escravatura – assinada sem nenhum consenso entre setores da economia e de partícipes da sociedade – os negros precisaram trabalhar para seus senhores reconfigurados como patrões, visto que, embora libertos, não tinham opções de inserção a condições de trabalho digno, tampouco de acesso à educação.
A Constituição Brasileira, outorgada por Dom Pedro I em 25 de março de 1824, propunha a educação como um direito dos cidadãos, ignorando-se a população de escravizados e/ou os ex-escravizados. Nesse sentido, contrário ao que se apregoava, a desigualdade surge como forma de opressão, imprimindo a lógica da exclusão. Sobretudo, entre as pessoas mais vulneráveis e “por mais que lutem para conseguir sobreviver, o sistema social instituído não lhes dará as oportunidades” (Nascimento,1978).
Quanto a isso, desde o período colonial, Abdias Nascimento é enfático ao afirmar:
A assimilação cultural é tão afetiva (?) que a herança da cultura africana existe em estado de permanente confrontação com o sistema dominante, concebido precisamente para negar suas fundações e fundamentos, destruir ou degradar suas estruturas. (…) Tantos obstáculos teóricos quanto os práticos têm prevenido os descendentes africanos de se afirmarem como íntegros, válidos, auto identificados elementos da vida cultural e social brasileira. Pois realmente a manifestação cultural de origem africana, na integridade dos seus valores, na dignidade de suas formas e expressões, nunca tiveram reconhecimento no Brasil, desde a fundação da colônia (Nascimento, 1978, p. 94).
O racismo e o preconceito emergem em diferentes modalidades, dentre as quais, destacam-se: o racismo biológico e o epistêmico, ambos expostos ao público através de teorias preconceituosas, a exemplo da democracia racial ou da mestiçagem em que omitem ideologicamente as lutas e consequências da escravidão, servindo, certamente, de obstáculos históricos para a ascensão social dos negros.
Mário Ypiranga Monteiro, no artigo publicado na Folha de São Paulo em 1967, assinalou:
Manaus é uma cidade que se cosmopolitizou no início do vigente século, mas não se deve esquecer de que a sua fundação, como forte, data de 1669. Antes, já os portugueses ensaiavam por aqui essas coisas de conubios com a índia e também por via das dúvidas, estabelecia com o governo luso a estratificação racial, afastando o preto. O preto na Amazonia, é um elemento de poucas sugestões, sobreviveu a duras penas, condenado a não usar jóias e roupas burguesas, enquanto que o índio plantava a sua cultura em plena sociedade lusa, impondo a sua língua como primeiro fator de aprisionamento social do conquistador. Mais tarde surgiram as famílias brancaranas e a herança sanguínea continuaria dominando para sempre. Esse processo de caldeamento persevera. Não se duvide, portanto, da ausência completa de folclore negro na Amazonia, de origem diretamente africana. A escravidão por aqui foi escassa, e o negro – um pingo de café num jarro de leite (Monteiro, 1967, p. 38-39).
O autor considerou a cosmopolitização de Manaus no início do século XX, ao relatar os casos de casamento dos Portugueses com as mulheres indígenas. Fato a respeito do qual Monteiro (1967) infere dizendo que a estratificação racial historicamente afastou o preto, e assim também proibiu os negros no período colonial de usar joias e ornatos de luxos.
De acordo com o pesquisador, a região Amazônica valorizou a cultura dos indígenas que impôs a sua língua, ainda que em plena sociedade lusa. Ao contrário dos pretos, pois, nas palavras do folclorista, estes se tornaram um elemento de poucas sugestões. Sendo, para o autor, a presença do folclore negro uma ausência completa na realidade da Amazônia.
É possível se contrapor aos argumentos de Mário Ypiranga que expressou ser a presença do negro na região “um pingo de café num jarro de leite”. Em que pese a expressão preconceituosamente carregada de estereótipo estigmatizante: “o pingo de café e o jarro de leite”, os fatos ou registros históricos descontroem esse tipo de afirmação, a exemplo das correntes migratórias de negros maranhenses que, no século XVIII, ao desembarcarem em Manaus, fundaram uma unidade social, hoje autodenominada sob a designação histórica de Quilombo Urbano do Barranco de São Benedito.
Assim, resguardam-se traços que identificam as expressões culturais vivamente preservadas no bairro da Praça 14 de Janeiro em Manaus, a exemplo do “Bumba Meu Boi”. Uma expressão popular que nasceu como produto da criatividade artística desse grupo étnico. Há registro que sugere se tratar de uma atividade cultural naquele momento trazida do Maranhão pelos negros quando de seu deslocamento para Manaus por ocasião do fluxo migratório.
Posteriormente a isso, ao migrar para o município de Parintins/AM, essa representação simbólica assumiu a designação de “Boi Garantido”, tornando-se um forte apelo cultural, hoje adaptado às peculiaridades regionais por ocasião do apoteótico festival folclórico, anualmente realizado na cidade de Parintins/AM. São expressões que se mesclam às realidades regionais, tornando-as multifacetadas e, com isso, mesclam-se, em especial no Estado do Amazonas, as marcas incontestes da socioantropológica política de grupos identitários.
Todavia, refutando essa perspectiva, Monteiro (1990) enfatiza:
A razão essencial do nosso pensamento é que, olhando-se hoje essa sociedade, percebe-se a raridade da mancha escura na família. Principalmente no interior do Estado e, muito particularmente, nos rios Juruá e Purus, onde predomina a cor clara europeia. Os elementos de cor presentes em nossa sociedade são oriundos do Maranhão e do Nordeste, principalmente Alagoas e Sergipe (Monteiro,1990, p.10).
A classificação “mancha escura na família”, e a referência “aos elementos de cor” presentes em nossa sociedade, caracterizam o preconceito outrora utilizado por viajantes naturalistas, missionários, que ao passar pela região Amazônica referiam-se aos negros pejorativamente. Mário Ypiranga ressalta “a cor clara europeia”, no interior do Amazonas, mais especificamente nos rios Juruá e Purus, em cujos locais os negros presentes no Estado eram oriundos do Nordeste e, por assim dizer, sob a denominação de forâneos.
Trata-se da ideia de Amazônia inventada por percepções colonialistas, vistas, portanto, a partir de olhares construídos para classificar o Outro de maneira arbitrária, reforçando estereótipos, estigmas, com vistas a homogeneizar matrizes étnicas. Ao hierarquizá-las, nega-se o fluxo da diversidade cultural que, em verdade, perpassa e constrói o sentido atribuído à região, compreendida como síntese da afirmação político-organizativa de grupos étnicos.
É neste cenário que alguns [teóricos] passarão a explorar dimensões das presenças negras e indígena na configuração das manutenções histórico-culturais amazônicas em particular, aqueles que se alinharam aos estudos folcloristas. É o caso de Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004), conhecido pelo seu profícuo trabalho nesse campo. Sem pretender uma análise exaustiva, nossa intenção é realizar apenas uma aproximação de sua obra tentando indicar qual o lugar que ocupa nesse processo de construção do silêncio sobre a presença negra no Amazonas (Melo, 2021, p. 20).
Deste modo, a historiografia oficial ajudou a validar a tese da inexpressividade dos/as negros/as em contextos amazônicos. Trata-se de manifestações intencionais que se negam enxergar aqueles que eram visíveis, ao argumento quantitativo, balanceando-os minoritariamente sob a justificativa “da pouca presença negra nesses lugares”.
No entanto, apesar do silenciamento já mencionado, sob o ponto de vista da realidade amazônica, urgente se faz dar visibilidade ao protagonismo político materializado através das mobilizações dos movimentos organizativos de grupos étnicos. Oficialmente identificados sob a designação de comunidades remanescentes de quilombos.
Trata-se da conquista de direitos territoriais garantidos na Constituição Federal de 1988, conforme prevê o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais do Transitórias-ADCT-CF/88: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Sobre o processo social de afirmação étnica e de territorialização referido às conquistas históricas arregimentadas por segmentos representativos, Almeida (2011) afirmar que, no caso específico dos chamados quilombolas, esse processo não se desenvolveu necessariamente a partir da Constituição de 1988, “uma vez que ela própria é resultante de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas sociais” (Almeida, 2011, p. 122).
Também é público e notório endossar o reconhecimento de conquistas resultantes desses acirrados conflitos cujas lutas sociais ocorridas a partir de 1988 imprimiram ganhos de causa, como correu na Terra Quilombola Boa Vista, localizada no Pará, e que é tido como o primeiro território quilombola titulado no Brasil em 1995, ou seja, 07 (sete) anos após a consolidação de nossa Carta Magna.
São registros oficiais, cujos fatos – ao descontruírem a tese insistentemente defendida sobre a inexpressividade dos negros na região – evidenciam o protagonismo dos quilombolas amazônidas na acirrada luta pela manutenção dos seus territórios tradicionalmente ocupados. Para além disso, convém acrescentar informações a respeito da Comunidade Quilombola de Cachoeira Porteira, situada na região do Alto Rio Trombetas, no oeste do Pará, área, esta, regularizada em 2018, com o perímetro territorial correspondente a 225 (duzentos e vinte e cinco) mil hectares.
Anteriormente ao ordenamento jurídico que atribui aos quilombolas, o reconhecimento oficial sob a designa de remanescentes de quilombos – consoante apregoa o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias-ADCT da CF/88 –, estes agentes sociais invisibilizados eram vistos como escravos fugidos. Em decorrência disso, ao molde do regime colonial, os quilombolas, submetidos à constante ameaça a exemplo do ideário apregoado pelo sistema escravocrata, tornavam-se passíveis de sofrer ações repressivas conduzidas pelo moderno aparato da violência policial.
Embora libertos, como previa a Lei Áurea, é no pós-abolição que se aprofunda o quadro de injustiças sociais, relegando os quilombolas à condição de invisibilidade. Diante das atrocidades que daí resultam, Abdias do Nascimento lembra que os negros, mesmo capturados pelo movimento quilombista, cuja expressão política tinha por propósito a infiltração destes junto ao Estado, de modo a reverter e combater as estruturas políticas e socioeconômicas racistas e excludentes. Eram, também, definidos e conceituados como terras de preto e, sobretudo, como comunidades negras rurais, muitas vezes, confundidas ou subsumidas pelo movimento dos Sem-Terra ou pela estratégia da chamada cultura do campo. Neste aspecto, ao serem subtraídos de sua condição histórica, os quilombolas foram remetidos à identificação de camponeses conduzidos, por isso mesmo, ao patamar das análises e interpretações sociológicas anunciadas sob a perspectiva marxista de lutas desencadeadas no campo e/ou no universo rural.
Contudo, em meio ao advento de lutas do Movimento Negro Contemporâneo surgiram as mobilizações políticas em favor da luta pelos direitos à terra, à história, articulada à especificidade cultural desse grupo étnico; uma inspiração político-organizativa que se expressa através da identidade quilombola e suas especificidades.
Então, sob o ponto de vista do movimento organizativo dos quilombos no Estado do Amazonas que, ao combater veementemente aquele ideário do projeto de colonização escravocrata, pergunta-se: como propriamente se deram estes processos sociais e políticos, tanto no quilombo urbano quanto no rural, ou seja, na Comunidade do Barranco de São Benedito em Manaus/AM e na Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa-Itacoatiara/AM? Quais são os parceiros e mediadores nestas lutas políticas? Quais foram as emergentes lideranças locais, suas vozes, suas pesquisas documentais? Quais as lutas que antecedem o advento do Art. 68-ADCT a posteriori, cujos agentes sociais, antes identificados como moradores do “barranco da negrada” numa visão depreciativa e estigmatizante para posteriormente assumirem, aos olhos dos “de fora”, a designação histórica de seu “autopertencimento” afirmativo de identidade étnica daqueles moradores?
Para melhor entendimento, convém resgatarmos alguns fatos que incidem nas ações organizativas dos 08 quilombos do Amazonas e suas respectivas pautas de reivindicações, sejam elas locais e/ou nacionais. Dentre essas atividades, se tem a pauta proposta e coordenada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, que realizou em Manaus, no período de 06 e 07 de julho de 2019, o chamado: “Projeto Fortalecimento Institucional da CONAQ Região Norte” (veja a figura 14, em anexo. O evento contou com a participação de representantes das oito comunidades quilombolas do Estado do Amazonas, oficialmente reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares-FCP, estando as mesmas instaladas nos seguintes municípios: Novo Airão, Itacoatiara, Barreirinha e Manaus.
Na ocasião, entre os temas discutido se deu destaque às principais políticas que amparam as comunidades quilombolas, tais como: a busca pela garantia de políticas sociais nas comunidades referentes à saúde, educação, segurança; a luta pelo reconhecimento da titularidade dos quilombos rurais; e a organização estrutural da CONAQ.
Tais processos organizativos evidenciam as dinâmicas dos quilombos territorializados na Amazônia brasileira, fortalecendo a busca no âmbito dos direitos étnicos e sociais. Não obstante, destacaram-se as dificuldades enfrentadas pelo coletivo face à consolidação da presença negra, momento em que se deu destaque ao movimento organizativo das comunidades quilombolas na geografia da região Amazônica.
Convém salientar também sobre o intitulado 1º Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Amazonas, com o tema: Quilombos do Amazonas nenhum direito a menos! Este evento foi realizado em Itacoatiara/AM, nos dias 16,17 e 18 de setembro de 2022, especificamente, na comunidade quilombola Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa – Itacoatiara/AM.
Os quilombolas do Estado do Amazonas, com vistas ao enfrentamento à invisibilidade dos negros nesta unidade da Federação, com a anuência dos participantes do referido evento, decidiram, coletivamente, honrar as memórias dos seus antepassados, fazendo referências às suas histórias de vidas e lutas por superação de possíveis obstáculos impostos aos quilombos.
Na pauta de reivindicações do encontro constavam os respectivos registros: a) titulação dos territórios quilombolas certificados no Amazonas; b) identificação de territórios quilombolas incidentes em municípios do Amazonas; c) implementação de políticas públicas voltadas à população quilombola com participação do poder público; d) valorização da cultura e espiritualidade do povo negro quilombola; c) afirmação do compromisso quanto a lutar contra a intolerância religiosa no combate ao preconceito com religiões de matriz africana.
Entre outras questões, o Encontro também se propôs a combater o preconceito e o racismo em todas as suas formas, com ênfase no enfrentamento ao machismo, ressaltando-se, prioritariamente: a) lutar pela equidade de gênero, primando pelo fortalecimento das mulheres quilombolas nos espaços de decisão e pelo respeito à comunidade LGBTQIA+; b) promover ações relativas a projetos que equacionem diferentes formas de políticas públicas voltadas à juventude negra, com vistas a superar situações que incidem na falta de expectativa, de vulnerabilidade social, dos atos de violência e que, via de regra, tais iniciativas permitam combater certos fenômenos sociais relativos ao genocídio da juventude negra.
Deste modo, após a criação da Coordenação Estadual dos Quilombos do Amazonas, vinculado à CONAQ, ficou pactuados nesse 1º Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas Amazonenses (rurais e urbanas), as lutas encampadas coletivamente quanto às reivindicações por direitos étnicos e territoriais, e que essa luta seja extensiva às questões socioambientais e pela preservação dos patrimônios materiais e imateriais desses grupos oficialmente identificados como comunidades remanescentes de quilombo.
Neste sentido, destacou-se ainda que as comunidades quilombolas, assim como os povos indígenas, são fundamentais para a preservação do meio ambiente e para a manutenção da Amazônia viva. A exemplo dos povos originários, os quilombolas registram sua identidade e pertencimento ao território tradicionalmente ocupado, doravante se registram esses processos historicamente construídos e que, por certo, darão notoriedade aos quilombos do Amazonas face ao reconhecimento político deste grupo étnico perante à sociedade brasileira.
Finalmente, em um momento histórico, protagonizado no Quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa/Itacoatiara – AM, reuniram-se os representantes dos respectivos quilombos, a saber: a) Quilombo do Tambor (zona rural), Município de Novo Airão/AM; b) Quilombo Urbano do Barranco de São Benedito, Manaus/AM; c) as 06 (seis) Comunidades Quilombolas do rio Andirá-Município de Barreirinha/AM: Santa Teresa do Matupiri, Boa Fé, São Pedro, Trindade, Ituquara, São Paulo do Açu; d) Quilombo de São João do Urucurituba; e) Quilombo do Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa –Município de Itacoatiara/AM. Dessa forma, ratificaram-se, coletivamente, as vozes dos quilombolas presentes, ocasião em que o Amazonas preto exige: nenhum direito a menos! (Veja a figura 15, em anexo).
1.4 Os quilombos urbanos: a cidade como abrigo da memória identitária
A autodefinição dos quilombolas não nasceu nas mobilizações assembleísticas dos sindicatos, tampouco nas comunidades eclesiais de base-CEBS. Contrário a essas situações, trata-se de conceber, o protagonismo construído a partir de identidades étnicas em curso, na realidade concreta dos territórios ocupados.
Por essa via, reafirmam-se novas ações políticas que possibilitaram efetivar as mudanças de um lugar com a presença de negros, cujos locais estão oficialmente reconhecidos sob a designação de comunidades remanescentes de quilombos. Dizem respeito, portanto, a “terras tradicionalmente ocupadas”, a respeito das quais Almeida (2008), utilizando-se de uma noção prática, vai designá-las de “territorialidade específica”. Isto, para o autor, implica “nomear as delimitações físicas de determinadas unidades sociais que compõem os meandros de territórios etnicamente configurados” (Almeida, 2008, p. 29).
Nesse contexto, foi necessário definir o Quilombo Urbano instalado num bairro central de Manaus sob o prisma de uma nova categoria emergente, identificada como “Comunidade do Barranco de São Benedito”. Assim, convergindo para uma “territorialidade específica”, constituída por negros. Portanto, contrário à atribuição genérica e/ou a traços biológicos, o significado de quilombo está evidenciado pelos seus membros como componente de autodefinição, historicamente construída, segundo a memória social do grupo organizado enquanto comunidade quilombola.
Para Farias Júnior:
A autodefinição de um grupo, a reivindicação de uma identidade étnica, converge para uma territorialidade, que se materializa concretamente. Dessa forma, a compreensão que um determinado grupo tem do seu território, resulta de processos sociais dinâmicos, tais como disputas e/ou acordos conciliatórios, entre outros processos diferenciados de territorialização. Dessa forma, podemos delimitar empiricamente o grupo étnico (Farias Júnior, 2013, p.169).
Compreender as configurações da comunidade implica em reconhecer uma área delimitada de terras secularmente ocupada por famílias de ascendência negra residentes numa localidade hoje considerada oficialmente um quilombo. Trata-se da dinâmica acionada por meio de lutas identitárias dos quilombolas que se propõem à conquista e afirmação de direitos étnicos e territoriais.
Conforme afirmou Jamily Souza da Silva:
Depois da nossa certificação […] nós passamos a ter mais visibilidade e até mais respeito. Nós deixamos de ser ‘barranco da negada’ para sermos reconhecidos como um quilombo […]. Agora temos visitas todos os sábados, mais movimentação, para apreciar nosso artesanato, culinária… E nosso pagode virou tradição. Fazia tempo que aqui na Praça 14, nós não tínhamos um pagode de raiz. Mas agora as pessoas dizem “o samba voltou ao seu lugar” 18.
As relações e interações mediante a autodefinição dos quilombolas reafirmou a indissociabilidade territorial das famílias estabelecidas com a localidade, bem como os relatos testemunharam as mudanças ocorridas na estrutura da existência coletiva, ao conquistarem respeito público e visibilidade histórica. Os quilombolas da comunidade do Barranco de São Benedito reivindicaram a prerrogativa constitucional, com novas formas organizativas e processos de autonomia. Segundo tais demandas pactuadas pelo movimento organizativo, isto proporcionou aos quilombolas um lugar de fala; de relações fundadas no poder de decisão perante os órgãos do Estado, e diante da sociedade envolvente.
Os quilombolas garantiram a reprodução física, social, econômica e cultural, com ênfase nas peculiaridades próprias dos modos de vida construídos no interior do quilombo do Barranco de São Benedito; na dinâmica capaz de traçar caminhos, não apenas como objetos, mas na condição de sujeitos reflexivos determinados em consolidar lutas reivindicatórias para o desenvolvimento da comunidade em que vivem e convivem.
Por se tratar de processos historicamente construídos, convém analisar o que se entende por “quilombo urbano”, discussão a respeito da qual se torna algo desafiador face a questões contemporaneamente discutidas no ambiente acadêmico, extensivas ao debate promovido em âmbito nacional. Sob a devida responsabilidade, compete trazer à tona tais debates concernentes às comunidades remanescentes de quilombos. Desse modo, as reflexões devem proporcionar um novo olhar visto sob o prisma de argumentações políticas, tanto para as próprias comunidades interessadas quanto para o público em geral, o que diferencia investigar realidades concretas, no caso aqui referidas à comunidade do Barranco do Barranco de São Benedito.
Os estudos dos “quilombos urbanos” estão presentes nas instituições de pesquisas, inclusive, com considerações estabelecidas nas próprias unidades sociais designadas “quilombos urbanos”’. Assim, investigar a categoria “quilombo urbano”, a partir da “relação de pesquisa” como identifica Bourdieu (1997), pressupõe estabelecer contato de reciprocidade junto à comunidade em estudo, cujo espaço físico se faz ocupar pelos quilombolas desde o final do século XIX. É, pois, nessa “relação de pesquisa” que se deve levar em conta os relatos dos quilombolas, constante do exercício da reflexividade.
A antropóloga Ana Paula Comin de Carvalho, exímia pesquisadora sobre a temática “quilombos urbanos”, o que incidiu na produção do Laudo Antropológico e Histórico sobre o Quilombo da Família Silva, situado em uma área urbana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, trabalho este desenvolvido em parceria com historiador Rodrigo Azevedo Weimer. Porto Alegre, atualmente conta com sete comunidades quilombolas urbanos oficialmente reconhecidas pelo Estado brasileiro. Trata-se de estudos etnográficos realizados a partir de 2003, sobre a comunidade quilombola Chácara das Rosas, um território quilombola urbano localizado em Canoas, no Estado do Rio Grande do Sul.
A pesquisadora destaca que:
As demandas das comunidades negras rurais e urbanas na atualidade demonstram que estes grupos não são poucos, suas formas de resistência não ficaram restritas às fugas e que suas lutas por liberdade, dignidade e respeito perduram até os dias de hoje. Quilombo passa de uma denominação utilizada por aqueles que queriam reprimir esta forma de organização social à categoria que vai abarcar uma diversidade de experiências negras de busca de autonomia que se territorializaram, ou seja, que se projetaram sobre espaços físicos e a eles agregaram um conjunto de sentidos e significados (Carvalho, In: Almeida, 2010, p. 242).
Atualmente, contrário a ideias de fugas que regem as constituições destes quilombos urbanos, deve-se levar em consideração os processos de migração dessa população em busca de empregos, moradias, formação escolar e profissional, além dos processos de desterritorialização. Este processo de desenraizamento dos quilombos rurais, implica expandi-los para as áreas urbanas, situando-os, geralmente, em territórios desvalorizados devido à falta de infraestrutura comercial e urbana, a exemplo dos interstícios sociais de morros, favelas e guetos periféricos.
Diante desses processos de precarização urbana, há que se investigar por meio das lutas desencadeadas e, assim, verificar quais as memórias históricas e territorializadas que permitiram ao coletivo quilombola a identificar aqueles fundadores dos quilombos, tendo por ênfase o resgate histórico de suas ancestralidades. Superando o quadro das invisibilidades apontadas, os registros das estórias que estão nas mentes, nas memórias, nos costumes, saberes, fazeres e práticas culturais ou especificamente religiosas, tais reflexões certamente permitirão maior compreensão acerca das comunidades quilombolas, identificando-se a especificidade identitária assumida politicamente.
Com base nessa perspectiva de análise e se atendendo às orientações propostas pelo INCRA-MG é que o Núcleo de Estudos de Populações Tradicionais Quilombolas vinculado ao departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, reuniram-se, em 2008, com vistas ao atendimento à pauta que teve por propósito a elaboração dos Relatórios Antropológicos de Caracterização Histórica, Econômica e Sociocultural das comunidades quilombolas urbanas de Luízes e Mangueiras19. Além desses, em Belo Horizonte, há ainda mais dois “quilombos urbanos”: Souza e Manzo, totalizando o quantitativo de quatro comunidades quilombolas urbanos oficialmente certificados.
Cabe, ainda, ressaltar a pesquisa realizada por Souza e Ferina (2012), sob o título de “Família Sacopã: identidade quilombola e resistência ao racismo e à especulação imobiliária na Lagoa, Rio de Janeiro”. Trabalho que diz respeito ao “quilombo urbano’’ Sacopã, localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Essa pesquisa acadêmica realizada pelas autoras apresenta os aspectos da organização social, o processo histórico de ocupação territorial e as fugas dos negros na região da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Na esteira dessas investigações acadêmicas, somam-se também os dados apontados no Relatório Histórico-Antropológico sobre o quilombo da Pedra do Sal, intitulado “Em torno do samba, do santo, e do porto”, elaborado pelas autoras Mattos e Abreu (2006), cujo documento descreve os conflitos ali existentes, e a presença histórica dos/as negros/as nesse quilombo situado na zona portuária do município do Rio de Janeiro.
No contexto da cidade de Manaus, o Quilombo do Barranco de São Benedito ganha destaque e notoriedade urbana em razão das lutas envidadas pelos quilombolas e através das quais os agentes sociais constroem suas relações de existência material, no campo econômico, ao tempo em que reafirmam culturalmente a sua identidade étnica. Assim, o movimento organizativo estabelece conexões tanto no espaço comercial quanto nas formas de sociabilidade e religiosidade que resultam das vinculações afetivas de pertencimento ao território e em cujo espaço se reproduzem os modos de vida característicos desse grupo étnico. Representado historicamente por práticas de resistências culturais, o quilombo fixa interações com a sociedade que o cerca, imprimindo, na atualidade, larga importância político-organizacional no contexto da dinâmica urbana que perpassa e dá sentido ao cotidiano da cidade de Manaus.
Importante e necessário se faz refletir sobre tais processos, identificados a partir das narrativas dos próprios quilombolas e que expressam os sentidos culturais e políticos atribuídos a essa forma de construção identitária. Trata-se de uma constelação de representações simbólicas capturadas com e a partir de visão de mundo politicamente construída e que dizem respeito ao patrimônio imaterial, registrado por via das crenças religiosas; ou da materialidade de expressões culturais subjacentes nos hábitos, costumes, linguagem, signos, símbolos e devoções. Enfim, trata-se dos contornos da autoidentificação que, afinal de contas, para além do lugar histórico comum, prefigura-se a noção de quilombo, seja ele rural ou urbano. E, neste sentido, firmam e se afirmam as comunidades negras que se autodefinem, expressando o sentimento de pertença aos territórios tradicionalmente ocupados e espalhados por toda a extensão geográfica do Brasil.
As narrativas dos moradores antigos do Quilombo do Barranco de São Bendito relatam as trajetórias históricas ao longo dos anos, bem como identificam situações envolvendo preconceito e discriminação racial. Fato a respeito do qual se tentou ignorar a presença dos negros nesta área, seja por autoridades eclesiásticas, ou pelos órgãos de Governo. Quanto a isso, faz-se necessário ressaltar como os quilombolas ressignificaram suas condições de existência, pois, apesar dos estigmas atribuídos, perseveraram com os aspectos culturais e uso dos espaços afirmados para legitimar a pertença étnica dos agentes sociais, historicamente fixados nessa área urbana da cidade de Manaus.
Sendo assim, a comunidade do Barranco de São Benedito é um território coletivo situado em meio à cidade, do qual os quilombolas se utilizam com o entendimento de que se trata de um espaço social, conquistado com e a partir do reconhecimento oficialmente identificado e reconhecido pelo Governo Federal; um atributo de lutas ensejadas e conquistadas por aqueles remanescentes de quilombo.
Deste modo, é indispensável a efetivação e aplicação dos direitos constitucionais por parte do Estado em relação às identidades culturais dos grupos étnicos, para o reconhecimento de seus territórios conquistados ao longo das trajetórias históricas das comunidades quilombolas e de sua afirmação político-organizativa.
Tal perspectiva evidencia a comunidade quilombola, por resistir secularmente, imprimindo afirmações das tradições reinventadas culturalmente e que demarcam uma identidade própria em meio aos desafios vividos em virtude do crescimento imposto em face da urbanização desordenada do lugar ocupado. Neste aspecto, a análise dos fatos oriunda da pesquisa empírica evidência notadamente tais contradições ocorridas na Comunidade do Barranco de São Benedito.
Do ponto de vista do espaço geográfico, as construções e arruamentos para o planejamento na abertura das estradas, alteraram a topografia natural dos terrenos, deixando uma parte da Avenida Japurá, onde está situado o quilombo, no formato de um barranco. Na unidade social, os quilombolas mantêm vínculos históricos e afetivos com o território tradicionalmente ocupado ao longo de décadas, cuja construção da identidade étnica já perpassa seis gerações.
Neste sentido, a referência da memória quilombola está associada à própria história do bairro. Na ocasião da ocupação das terras do quilombo, a partir de 1890, havia nesta localidade matas e igarapés. As mudanças ocasionadas no bairro impactaram diretamente os modos de vida dos moradores que perderam espaços importantes e tradicionais da comunidade, como, por exemplo, a extinta Associação Recreativa e Beneficente Jaqueirão, que outrora era utilizada como sede de encontros, eventos sociais, práticas de jogos, atividades musicais, dentre outros.
Os quilombolas apresentam características culturais na sua territorialidade, afirmadas através das práticas religiosas e fazeres cotidianos, uma representação das lutas e resistência frente aos atos discriminatórios, à invisibilidade social resultantes da expansão desordenada do perímetro urbano ocorrida em virtude do crescimento da cidade. Ao longo dos anos, os processos urbanísticos causaram mudanças no lugar outrora habitado pelos quilombolas, o que tornou a localidade assim como as propriedades imobiliariamente valorizadas, em decorrência das melhorias da infraestrutura, das novas construções residenciais, além da instalação dos prédios comerciais no entorno do quilombo.
Nas imediações das residências dos quilombolas há três escolas públicas estaduais: Luizinha Nascimento, Plácido Serrano e a Primeiro de Maio. Inúmeros foram os agentes sociais que estudaram nestas escolas localizadas nas adjacências do quilombo, tendo alguns quilombolas conquistado a formação de nível superior, com o ingresso em universidades públicas e privadas e nos cursos de graduação e pós-graduação em diferentes áreas do conhecimento. Neste aspecto, há que ressaltar dificuldades enfrentadas pelos quilombolas na luta de combate às práticas do racismo, cujos preconceitos, contraditoriamente, resvalam para o ambiente escolar quanto a ignorar ou negar certos simbolismos da cultura e identidade de matriz africana.
Ao analisar a realidade da vivência nesta região de Manaus identifica-se a oferta de serviços públicos disponibilizados pelo Estado, como a Delegacia de Polícia, a Procuradoria Geral do Estado (PGE), a Maternidade Estadual Balbina Mestrinho, a Unidade Básica de Saúde Vicente Pallotti e a Escola Superior de Artes e Turismo-ESAT/UEA. No entorno da comunidade quilombola há uma agência bancária, o Mercado Municipal Maximino Corrêa e um amplo comércio alimentar. Somado a isso, o bairro é referência do setor automotivo de autopeças e acessórios.
Nesta localização urbana, os remanescentes quilombolas desenvolvem interações e guardam a memória familiar dos seus antepassados. Isto permite entender que os membros da comunidade quilombola residem no território etnicamente delimitado, e reivindicam direitos étnicos. Pertencente a esse grupo social, grande parte das pessoas trabalha ao longo do dia e lutam por melhores condições de vida, dignidade e respeito aos princípios étnicos.
Todavia, as políticas governamentais relacionadas à qualidade de vida em benefício dos quilombolas têm sido ineficazes, fato que impõe aos remanescentes de quilombo enfrentarem problemas com a falta de saneamento básico, sobretudo no que diz respeito a esgoto sanitário. Por outro lado, há que se explorar, não somente em termos epistemológicos e teórico-metodológicos, mas à luz da perspectiva de memórias singulares que, por vezes, se confundem com as memórias do espaço rural ou urbano sob a administração pública, nem sempre combinados aos interesses da coletividade.
Na área central do bairro da Praça 14 de Janeiro, estrategicamente posicionado, está o Santuário Nossa Senhora de Fátima (figura 16), que desde a sua fundação na década de 1930 contou com a participação, ajuda e doações dos voluntários e devotos da santa e, ao longo dos anos de construção da igreja, as obras foram concluídas em 1975.
Situada à Rua Jonatas Pedrosa, a igreja é o símbolo desse bairro. As missas reúnem a comunidade católica e a festa em devoção à Nossa Senhora de Fátima é marcada por extensa procissão cujos festejos ocorrem durante o mês de maio. Na arquitetura do prédio, destaca-se a cúpula do templo em estilo renascentista, o que configura, ainda que pela perspectiva arquitetônica e simbólica, uma igreja mais romanizada.
Destarte, ao longo dos anos até a atualidade, convém analisar como foram estabelecidas as relações entre os poderes eclesiais e os elementos da cultura quilombola, com vistas a identificar quais as disputas políticas acionadas no campo do sagrado. Isto certamente coloca às claras questões relativas ao seguinte questionamento: em que medida a igreja acolhe ou ignora a diversidade cultural e religiosa quilombola? Ou, pelo menos, é possível estabelecer certo diálogo intercultural entre esses dois segmentos representativos? (Observe a figura 16, em anexo).
Em meio a essas contradições internas, permeadas de conflitos e tensões, os quilombolas buscam fixar lutas em prol da construção de seu projeto hegemônico, por conseguinte, resultante da autonomia política constituída nos meandros da afirmação de uma identidade própria. Nessa arena de disputa política, as estratégias operacionais amparam-se nas relações de vizinhança identificadas por fatores étnicos, de parentesco e de “sucessão, por fatores históricos, político-organizativos e econômico, consoante práticas e sistemas de representações próprios” (Almeida, 2011, p. 50). Desta feita, contrário a buscar vestígios arqueológicos para corroborar a concepção de quilombo vinculada ao passado, a realidade específica evidencia o sentido atribuído ao quilombo, conforme conceituação ressignificada contemporaneamente.
Nessa perspectiva, Almeida é enfático ao afirmar:
O quilombo, em verdade, desencarnou-se dos geografismos, tonando-se uma situação social de autonomia, que se afirmou fora ou dentro da grande propriedade. Isso muda um pouco aquele parâmetro histórico, arqueológico, de ficar imaginando que o quilombo consiste naquela escavação arqueológica onde há indícios materiais e onde estão as marcas ruiniformes da ancianidade da ocupação. Este procedimento tem que ser revisto e as evidências reinterpretadas. Se porventura houver uma escavação para identificar quilombo, neste contexto, ela resultará se tanto na reconstituição dos alicerces da casa-grande, o que poderá parecer contraditório e extremamente paradoxal para os “operadores do direito”. O teste de arqueologia de superfície e o seu poder comprobatório devem ser relativizados, como devem ser relativizadas certas provas documentais e arquivísticas (Almeida, 2011, p. 69).
Sobre tais evidências a serem reinterpretadas, infere-se sobre a comunidade do Barranco de São Benedito, compreendendo-a como uma área que, apesar do estigma, ou da exclusão social a que fora submetida ao longo das décadas, continua a afirmar o caráter dinâmico da identidade étnica dos seus membros, configurada na mudança de um lugar social com a presença de negros, reafirmando a existência político-social de um “quilombo urbano”. A invisibilidade do grupo étnico não resulta da subalternidade cultural, ao contrário, os processos organizativos construídos nas dinâmicas culturais dos quilombolas, suscitaram lutas protagonizadas na busca da visibilidade, pela reivindicação e consciência da identidade social coletiva.
Para garantir certa fidelidade desse processo de construção histórica, este trabalho busca descrever e analisar fatores que prenunciam ou expressam elementos de construção histórica da Comunidade do Barranco de São Benedito em Manaus/AM, discussão que deve se pautar no respectivo entendimento acerca da cartografia de um “quilombo urbano”. O mergulho nessa incursão teórico-interpretativa deve levar em conta a pesquisa empírica com ênfase na observação direta e sistemática do trabalho de campo a fim de refletir sobre as interações socioculturais numa área etnicamente configurada.
Os membros da comunidade têm com o território urbano vínculos de pertencimento e ligações afetivas, percebidos na relação indissociável com o lugar ocupado há mais de cem anos. Disto resulta a criatividade que permite aos quilombolas, na atualidade, reinventar ou ampliar certas tradições “guardadas” nas memórias coletivas e materializadas nas práticas religiosas, seja nos hinos registrados aos santos de devoção, seja, em geral, nos cultos que preveem firmar e afirmar os elementos que conferem coesão social ao grupo identitário.
Portanto, os novos processos de visibilidade permitiram aos quilombolas afirmarem seus conhecimentos tradicionais, resistir nos dias hodiernos às pressões da urbanização e especulação imobiliária, bem como nas lutas coletivas envidadas por seis gerações, garantindo a valorização e manutenção de sua história, registrada na memória de seus antepassados que viveram no mesmo território tradicionalmente ocupado.
De algum modo, estes processos também obtêm o reconhecimento de alguns aspectos circunscritos em áreas externas ou do entorno, quais sejam: a legitimidade pública; os registros efetuados pela mídia, ainda que em alguns casos de modo estigmatizante; as redes de informações, sejam elas escolares ou de influência e interação social abrangente. Enfim, essas ações no seu conjunto são fruto da luta incessante dos quilombolas por reconhecimento de seus direitos étnicos e territoriais prevalecentes.
Outro fator a considerar, para além da questão teórica e conceitual, diz respeito à forma pela qual se dá a apreensão desta identidade, por parte dos quilombolas. O diferencial está em considerar a inserção das práticas culturais produzidas em meio a esse cenário urbano, em cujo contexto – diferente do universo rural – há, de certa forma, maior acesso aos serviços públicos promovidos segundo a lógica das políticas implementadas na esfera estadual ou municipal. Trata-se de mecanismos que interagem de acordo com a dinâmica de realidades urbanas; algo também um tanto comum em face das relações de sociabilidade entre os quilombolas e as possíveis facilidades oferecidas pelo mundo moderno-contemporâneo.
São práticas que imprimem ao movimento organizativo quilombola certas táticas de intervenção política frente aos contraditórios interesses de uma sociedade que prima em alta escala, essencialmente pelo assédio ao consumismo ocorrido no amplo contexto da complexa diversidade etnoconcorrencial, seja ela fixada nas práticas culturais e/ou religiosas. Adicione-se a isso outras circunstâncias ocorridas no cenário urbano, imprimindo maior exposição e proximidade à mídia burguesa, aos sindicatos, às Organizações não Governamentais (ONGS), religiosas e as representações político-partidárias.
Não obstante, outras situações entram em contradições quando confrontadas com o baixo poder aquisitivo da população. Está-se diante das mais contraditórias formas de desigualdades sociais; algo gritante se analisadas as condições de periferização, marginalização social e política dos segmentos menos favorecidos. No conjunto desses acontecimentos, emergem fatores socialmente agravados pela precária política de urbanização imposta pelos gestores públicos e enfrentada em detrimento do processo de gentrificação/elevação de impostos, entre outras mazelas sociais.
1.5 Os Quilombos rurais: por entre rios e trilhas percorridas
As mobilizações contemporâneas realizadas no Brasil acerca dos direitos específicos dos quilombolas, na década de 1990, iniciaram em diferentes Estados, com as denominadas comunidades negras rurais, que construíram estratégias para garantir o uso dos territórios tradicionalmente ocupados.
Unidades da Federação, a exemplo do Maranhão, Bahia e Pará, foram protagonistas das articulações do movimento quilombola que posteriormente ganhou projeção nacional, visibilizando as comunidades engajadas nas lutas por reconhecimento étnico e valorização da memória de antepassados que protagonizaram o processo de construção identitária desse grupo étnico.
Nesse aspecto, visando resguardar registros históricos e primando por estabelecer pactos de luta político-organizativa, destacamos o I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado em 1996, no município de Bom Jesus da Lapa, Estado da Bahia, onde nasceu a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, CONAQ, entidade constituída como representação dos quilombos organizados em todo o país. Numa escala de interesses antagônicos acerca das comunidades negra rurais, certamente, aqui, se tem um divisor de águas em face da assunção política dos quilombolas, já em nível nacional:
Neste sentido, é que as mobilizações ganham força e se materializam em “encontros”, desde pelos menos 1995-96, com a criação da CONAQ, aprovando pautas reivindicatórias, nas quais as lutas identitárias mostram-se inseparáveis de lutas econômicas que enfatizam os direitos territoriais (Almeida, 2011, p. 11).
As comunidades quilombolas localizadas em áreas rurais possuem especificidades, vias de regra, relacionadas às atividades profissionais desempenhadas por seus membros em face da produtividade na esfera da agricultura, da pesca, do extrativismo. São ações que estão intrinsicamente vinculas às lutas pela titulação de seus territórios acionadas pela política de territorialidade.
A lentidão dos órgãos governamentais, oriunda da procrastinação do serviço público, está associada à representatividade do segmento dos agronegócios nos espaços de decisão política, somados ao racismo institucional. Entre essas instâncias, tais fatores conspiram contra a política de territorialidade constante das pautas de reivindicação do movimento político-organizativo dos quilombos. As dificuldades que daí resultam comprometem as ações pertinentes aos modos de vida característicos daqueles lugares etnicamente configurados. Na atualidade, esses entraves estão imersos
[…] na acomodação da burocracia oficial que não titula as terras das comunidades quilombolas e se, porventura o faz, procede a conta-gotas, sem dirimir os antagonismos, traz a incerteza da reprodução física e cultural. Constata-se que, passados 23 anos, foram titulados menos de 5% do total de hectares até o momento reivindicados pelas comunidades quilombolas. Mantido esse ritmo tem-se que em um século após a promulgação da Constituição Federal e dois séculos após o ato que declara a Abolição, se terá titulado um total inferior a 20% das áreas reivindicadas (Almeida, 2011, p. 13).
No Estado do Amazonas, as comunidades quilombolas rurais aguardam pela titulação dos territórios. Conforme dados oferecidos pelo INCRA: na comunidade do Tambor em Novo Airão, os quilombolas aguardam a emissão do título fundiário desde 2006; os quilombos do Andirá em Barreirinha, desde 2013, e a comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, em Itacoatiara, desde 2014.
É preciso compreender que a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), constituiu formalmente, em 1994, um grupo de trabalho para investigar as questões dos quilombos, e assim instituiu um conceito, como também fizera Moura (2006), para definir o quilombo como uma unidade social contemporânea, ou seja, trata-se de:
Comunidade negra rural habitada por descendentes de africanos escravizados, com laços de parentesco. A maioria vive de culturas de subsistência, em terra doada, comprada ou secularmente ocupada. Valoriza tradições culturais de antepassados (religiosas ou não) e as recria no presente. Possui história comum, normas de pertencimento explícitas, consciência étnica (Moura, 2006, p. 330).
Ao longo das pesquisas de campo, para além do quilombo urbano do Barranco de São Benedito, meus estudos fixaram-se por via de contatos estabelecidos com os quilombos rurais em 2017. Inicialmente, minhas pesquisas sucederam por ocasião do trabalho de mestrado vinculado ao Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH, no momento da viagem realizada ao município de Parintins/AM, rota de acesso ao município de Barreirinha-AM, em cuja área de jurisdição estão situados os quilombos do rio Andirá. O contado com essa realidade permitiram-me compreender as peculiaridades das interações sociais constituídas entre esses quilombos instalados na área rural.
Ao chegar no porto da cidade de Barreirinha, no dia 01/09/2017, às 08:h00, encontrei-me com a Sra. Maria Amélia dos Santos Castro, líder quilombola, e juntos nos deslocamos para a Comunidade Quilombola Santa Tereza do Matupiri. O acesso aos quilombos do rio Andirá se dá através de transporte fluvial, comumente chamado de “voadeira” em alusão à velocidade da lancha utilizada para proceder às curtas ou médias viagens pelos rios da Amazônia.
Ao acessar a comunidade, receberam-me na residência do Sr. Tarcísio dos Santos Castro, então Presidente da Federação das Organizações Quilombolas no Município de Barreirinha-FOQMB. Logo a seguir, participamos de uma reunião que iniciou às 11h:30min, na Sede da Comunidade Santa Tereza, com a presença de onze agentes sociais, devidamente autodefinidos como quilombolas, respectivamente moradores dos quilombos de Santa Tereza do Matupiri e Trindade.
O assunto em pauta era a construção do “Museu Vivo” vinculado ao Projeto Centro de Ciência e Saberes, a ser realizado conforme solicitação da FOQMB junto ao Projeto Nova Cartografia Social na Amazônia – PNCSA. Por deliberação dos membros da Federação em Assembleia Geral, a construção palafitada que abrigaria o Museu Vivo seria instalada num terreno adjacente ao quilombo de Santa Tereza do Matupiri. Local previamente escolhido pelos quilombolas e posteriormente deliberado juridicamente pela Câmara Municipal de Barreirinha, atendendo-se à solicitação do então prefeito Glenio José Marques Seixas.
Salientamos que a construção do Centro de Ciências e Saberes em Barreirinha, na região do rio Andirá, objetiva valorizar a cultura dos quilombolas, os quais poderão expor objetos, apresentar trabalhos artísticos ou materializar seus conhecimentos e saberes tradicionais, no chamado “museu vivo”. Atualmente, em 2023, parcialmente construído pelos próprios quilombolas das comunidades para posterior conclusão da obra e eventual inauguração prevista para o ano em curso.
A segunda visita na comunidade rural do rio Andirá, ocorreu para atender à demanda da Federação das Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha/FOQMB ao Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/PNCSA. Esta viagem ao quilombo de Santa Tereza do Matupiri, ocorrida em 2018, teve por objetivo tratar sobre a concepção, objetivos e fases de implementação do projeto científico “Centro de Ciência e Saberes: experiências de criação de ‘Museus Vivos’”.
Em companhia da pesquisadora doutora Maria Magela Mafra de Andrade Ranciaro, docente da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, na lancha “Expresso Fernanda”, com saída de Manaus no dia 02 de fevereiro de 2018, chegamos a Barreirinha às 15h00. Imediatamente à chegada ao município, providenciamos o aluguel de uma lancha com saída às 17h00 para o quilombo de Santa Tereza do Matupiri, com chegada às 18h00.
Das 19h00 às 21h00, desse mesmo dia, na residência da Sra. Maria Amélia dos Santos Castro, reunimo-nos com a Diretoria da Federação e demais agentes sociais. A reunião iniciou com informes da Sra. Maria Amélia que, respondendo pela Assessoria de Articulação Política junto à FOQMB, relatou sobre a reunião ocorrida em 26 de janeiro de 2018, na Cartografia Social da Amazônia, que tratou sobre o Centro de Ciências e Saberes a ser implementado em Santa Tereza do Matupiri.
Em seguida a esses informes20, deu-se início à reunião, por nós conduzida na condição de pesquisadores do PNCSA, com os pontos de pauta elencados a seguir:
- Explicar junto aos presentes sobre a concepção e objetivos do “Museu Vivo”;
- Verificar o croqui e o local de construção da edificação do Museu, ambos já discutidos e definidos pelos quilombolas;
- Saber sobre a legalização de concessão da terra junto à Prefeitura de Barreirinha para a construção do Centro de Ciências e Saberes;
- Debater questões de logística: recurso disponível e operacionalidade de implantação do Museu Vivo;
- Identificar qual a forma de seleção do acervo cultural, selecionados pelos próprios quilombolas, para a exposição no Museu cujos objetos identifiquem suas representações cotidianas objetivadas em símbolos por via do fabrico de artefatos, apontados pelos agentes sociais, quais sejam:
- Instrumentos de trabalho: caça, pesca e agricultura;
- Produção artística sobre os instrumentos musicais: gambá, cavaquinho, pandeiros, flautas, banjo, maracá e bumbo; danças: garcinha, jaçanã, london, boi-quati, a onça-te-pega.
- Fabricação de utensílios de barro: panelas, potes, alguidares, torradores, fogareiro, vasos e assadeiras.
- Confecção de adereços ornamentais: anéis, produzidos de caroço de tucumã; que é uma fruta típica do norte do Brasil, colares feitos de sementes adquiridas da floresta, entre outros;
- A arte do tessume: paneiros, cestas, tipitis, tupé, abanos, chapéus, balaio e vassouras.
- Organizar narrativas míticas e/ou lendárias sobre figuras sobrenaturais como: a cobra-grande, o mapinguari, o curupira e o matin;
- Identificar as crenças religiosas e confeccionar os santos e santas de devoção;
Os ritos de cura: a benzeção e os remédios de manipulação caseira.
No dia 03 de fevereiro de 2018, às 9h00, em um sábado, reunimos no Centro Social. Em decorrência da mobilização previamente feita pela Federação das Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha – FOQMB, cuja pauta tratou de políticas públicas sobre o Programa “Fome Zero” e da implementação do “Museu Vivo”. Esta reunião contou com a presença do Prefeito de Barreirinha, Glenio Seixas, demais Secretariado e a Diretoria da FOQMB. Somados aos moradores de Santa Tereza do Matupiri, compareceram a esta reunião 280 (duzentos e oitenta) agentes sociais dos quilombos de Ituquara, Boa Fé, São Pedro e de Trindade.
Após pronunciamento dos presentes, explicamos sobre os objetivos do projeto científico, denominado “Centro de Ciências e Saberes: Experiências de Criação de Museus Vivos”, ressaltando que se trata de um projeto proposto pelo Museu de Astronomia (MAST), financiado pelo CNPq, e executado em parceria com o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/PNCSA.
Aproveitamos, ainda, para informar aos presentes que, como desdobramento do referido projeto, os quilombolas do rio Andirá participaram da elaboração e montagem da Exposição Saberes Tradicionais e Etnografia, realizada em São Luís do Maranhão, em 2016, por ocasião da inauguração do Centro de Ciências e Saberes. Em cujo local estão expostos os artefatos produzidos pelos próprios agentes sociais dos quilombos do Rio Andirá. A reunião encerrou às 13h00 com o pronunciamento do Prefeito Glenio Seixas, comprometendo-se publicamente em enviar para a Câmara Municipal de Barreirinha mensagem solicitando a concessão oficial do terreno para a construção do “Museu Vivo”.
No domingo, dia 04 de fevereiro de 2018, das 15h00 às 17h30min, reunimos com a Diretoria da FOQMB e agentes sociais para proceder ao balanço geral pelo presidente da Federação a respeito das atividades realizadas acerca dos objetivos e trâmites necessários para a realização do Projeto “Museu Vivo”.
Com base em algumas dificuldades de compreensão apontadas pelos agentes sociais e, dada a importância de discernimento acerca do que vem a ser o Projeto “Museu Vivo” para as comunidades quilombolas, votou-se que a Federação após discussão e deliberação em Assembleia Geral deverá encaminhar demanda ao PNCSA quanto à possibilidade de uma Oficina a ser realizada em Santa Tereza do Matupiri, sobre o tema: “Patrimônio material/imaterial e processo de patrimonialização de bens culturais”, ministrada pela Dra. Sheilla Borges Dourado.
Deliberou-se também que, uma vez implantado o Centro de Ciências e Saberes, seja feita semestralmente uma avaliação de impacto das atividades com vistas a potencializar os pontos positivos quanto à produção da memória, tradição e saberes concebidos e construídos, e/ou redimensionar aqueles que, porventura, estejam identificados como entraves ao pleno desempenho das atividades pedagógicas, artísticas e de mobilização política.
Ao término dessa reunião, ou seja, às 17h30min, visitamos o local em que será construído o “Museu Vivo”. Momento em que os agentes sociais expressaram a vontade de que a denominação dada ao referido Museu será Benedito Rodrigues da Costa, em homenagem ao ex-escravo a chegar em locais do rio Andirá no final do século VXIII e início do século XIX. O protagonismo do ex-escravizado é por todos reconhecido e endossado que se trata do fundador daquele território quilombola e da linhagem de descendência resultante da união com a indígena Gerônima Sateré, pertencente à etnia Sateré-Mawé, também instalada em território pertencente ao rio Andirá, na fronteira com os referidos quilombos. A reunião no quilombo de Santa Tereza do Matupiri foi registrada na Ata da Federação e através de fotografias e narrativa dos agentes sociais.
A nossa saída do quilombo se deu no dia seguinte, segunda-feira, para Barreirinha e, na terça-feira, às 12h00 do dia 06, viajamos no “barco de linha” PP MAUÉS III, com chegada em Manaus na quarta-feira, às 13h00 do dia 07 de fevereiro de 2018.
Os contatos estabelecidos na relação de pesquisa construída com os quilombolas, na oportunidade das visitas realizadas in loco, permitiram-me conhecer melhor a cotidianidade das comunidades situadas em áreas rurais. Porque além das lutas identitárias e econômicas, sofrem ameaças em meios aos conflitos provocados no confronto com os agronegócios e demais grupos político-empresariais interessados na exploração arbitrária de recursos naturais do território por parte de madeireiro, pecuaristas e profissionais da pesca predatória.
Outro registro de campo diz respeito à minha participação, em 2019, na reunião realizada na sede da Associação dos Pescadores no município de Novo Airão-AM. Teva a presença de lideranças quilombolas do local, do servidor do Instituto de Colonização e Reforma Agrária, antropólogo João Siqueira, da líder quilombola das comunidades do Andirá, em Barreirinha, Maria Amélia dos Santos Castro. Naquele momento, os quilombolas relatavam as condições de vida e trabalho desses agentes sociais, removidos compulsoriamente do Quilombo do Tambor onde habitavam, para a área urbana na sede do município, em Novo Airão.
Em decorrência da criação do Parque Nacional do Jaú-PARNAJAÚ, a crise ali instalada ocasionou problemas sociais aos remanescentes quilombolas que, alocados na periferia da cidade, passaram a viver de forma precária e, para além disso, tiveram seus costumes e tradicionais práticas culturais interrompidos após serem expulsos do território secularmente ocupado desde 1900.
Na Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, em Itacoatiara-AM, os problemas também se avolumam em decorrência de ameaças praticadas por forças políticas locais, a excluir o quilombo, impossibilitando-o do uso de recursos naturais que fere o sentimento de pertença e posse a esse território historicamente habitado. Assim sendo, as famílias de remanescentes quilombolas têm sido vítima de constantes conflitos relacionados à impossibilidade da titulação definitiva de propriedade das terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas.
Tais conflitos têm sido mediados por intervenções de órgãos de Estado, como o Ministério Público Federal-MPF, que acompanha o processo de titulação da comunidade, frente à pressão e a tensões dos conflitos, imponto riscos dramáticos contra a integridade física dos membros do território quilombola.
Como expressou a pesquisadora Ranciaro (2016), na tese elaborada sobre os quilombos do Andirá, em Barreirinha/AM:
Para associar-me a essa cotidianidade vivenciada pelos quilombolas é que o pensamento prospera rumo à construção de um saber que permitiu, do ponto de vista epistemológico, desvendar os nexos que se interligam à dinâmica das representações e dos significados sócio-históricos; do sentido atribuído pelos quilombolas acerca das suas relações de vivência cotidiana reconstruídas pela memória coletiva; da construção de sua identidade (Ranciaro, 2016, p. 31).
Em suma, eis o constante desafio epistemológico assumido nesta construção científica, consoante a permanente tarefa reflexiva que perpassa a construção de conhecimentos. São desafios que circunscrevem a investigação em termos de religiosidade, território e identidade étnica, estabelecendo-se, a partir daí, reflexões analíticas e a devida interpretação entre as dimensões internas e externas daquelas condições inerentes ao quilombo urbano do Barranco de São Benedito em Manaus e o quilombo rural Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa em Itacoatiara-AM.
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18 Esta citação está disponível em: <http://www.mpf.mp.br/am/projetos-especiais/memorial/conte-sua-historia/jamily-souza-da-silva>, acesso em 15/04/2018. Trata-se de uma entrevista concedida pela quilombola, Sra. Jamily Souza da Silva, ao MPF-AM, para o projeto “Um passeio pela história do MPF no Amazonas/Conte sua história”.
19 As informações referidas estão disponíveis no Pensar BH/Política Social (2009, p.19). A comunidade quilombola de Luízes está territorializada na Vila Maria Luiza, no atual bairro Grajaú, na região oeste de Belo Horizonte (MG). A comunidade quilombola Mangueiras está localizada na zona norte de Belo Horizonte (MG), na região do Ribeirão da Izidora.
20 Os informes descritos abaixo foram gentilmente cedidos pela antropóloga e pesquisadora Maria Magela Mafra de Andrade Ranciaro, docente aposentada da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Continua na próxima edição…
*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).
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