
*Vinícius Alves da Rosa
Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am
Continuação…
2.3 A festa de São Benedito no quilombo urbano do barranco
São Benedito é quem nos move.
(Jamily Souza da Silva)
Em Manaus, capital do Amazonas, a festa de São Benedito, no bairro Praça 14 de Janeiro, iniciou no final do século XIX, mais especificamente a partir de 1890, com a construção de um barracão. Nesse lugar, havia danças, músicas, além da fé dos devotos dispensada ao Santo Padroeiro. Trata-se de eventos religiosos carregados de expressão da cultura de matriz africana, anteriormente praticada no Estado do Maranhão.
Sendo assim, ao longo dos tempos, conforme depoimentos coletados, bem como de acordo com as pesquisas já realizadas, constata-se a resistência da Igreja Católica Nossa Senhora de Fátima, localizada no referido bairro, quanto a permitir que a procissão adentrasse o interior da igreja para realizar o festejo religioso.
No entanto, após a chegada em Manaus dos padres Palotinos na década de 1970, vindos do sul do Brasil, isto possibilitou mudanças, redimensionando-se a estrutura administrativa da paróquia. A partir de então, a imagem de São Benedito foi aceita e a procissão manteve os seus ritos, ou seja, após a igreja católica situada no bairro Praça 14 de Janeiro permitir que os fiéis adentrassem ao templo carregando o andor de seu santo padroeiro.
Atualmente, há certo consenso estabelecido entre os quilombolas e a diretoria da igreja. Todavia, os conflitos religiosos são questionados pelos quilombolas da comunidade do Barranco, quando, ainda hoje, afirmam não entender o porquê de a igreja local não ter recebido o nome do seu Santo Padroeiro, e, sim, de Nossa Senhora de Fátima, apesarde o templo católico ter sido construído muitas décadas após a chegada da comunidade negra no bairro, onde, aliás, já havia na comunidade a festa em honra a São Benedito, como destacaremos ao longo destas reflexões.
A devoção a São Benedito encontrou espaço na vertente popular dos movimentos laicos espalhados por todo o Brasil, seja na construção de igrejas, capelas, realizações de festejos, procissões, ou expressões de fé no Santo Protetor dos humildes, negros ex-escravizados, especialmente nas comunidades de remanescentes quilombolas.
A festa de São Benedito no bairro Praça 14, na cidade de Manaus, manteve diferentes festeiros. Quanto a isso, há uma predominância das mulheres na coordenação das atividades, cuja liderança feminina no evento é notória. A propósito, destaca-se a participação de Bárbara Fonseca, Maria de Lourdes Fonseca, Jacimar de Souza e, atualmente, Jamily Souza, fato este que evidencia a tradição matrilinear da comunidade quilombola do Barranco.
Observa-se pela identidade do festejo tratar de um fenômeno religioso de vertente católica popular protagonizado pelos quilombolas, legitimado ao longo de cento e trinta e quatro anos pelas convicções de fé dos devotos, como dissera a quilombola e coordenadora do evento, Jamily Souza da Silva: “São Benedito é quem nos move”.
Em alusão à história da Comunidade Quilombola do Barranco de São Benedito e dando ênfase à importância do Santo Padroeiro na vida cotidiana do quilombo, esta frase ganhou destaque quando pronunciada por Jamily da Silva no Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, cujo evento foi realizado no Teatro Amazonas, em 2014.
Em Manaus, a comemoração a esse Santo de devoção dos quilombolas ganha temporalidade quando historicamente se registra na edição do Jornal do Comércio publicada no ano de 1908, conforme se verifica no anúncio da festa:
Terá lugar hoje a popular festa de São Benedito, que há muitos anos é feita pelo sr. Felippe Beckman, na avenida Japurá. Às 9 horas da manhã será cantada uma missa com grande instrumental, na igreja da Matriz. A tarde haverá diversões campestres. Nas proximidades da casa do festeiro, tocará uma banda de música. Às 8 horas da noite efetuar-se-á o leilão das ofertas feitas a São Benedito e será queimado um rico e vistoso fogo de artifício. São juízes da festa d. Adelina Pereira da Silva e o Sr. Raymundo Silva (Jornal Do Commércio, 1908).
O convite se repete em outra edição no ano de 1911:
Missa em ação de graça do Glorioso São Benedito, convida-se a todos os fiéis desse Glorioso Santo, para a missa que em sua glória será rezada no próximo domingo 23 do corrente, na Igreja da Matriz, às 9 horas da manhã. Não haverá convites especiais. À tarde desse dia, realizar-se-á procissão, que terá lugar à avenida Japurá, na sede dos festejos. Felipe Beckmann (Jornal Do Commércio, 1911).
As fontes já citadas, entre outras publicações de jornais da época, anunciavam o evento. É curioso perceber que em tempos mais recentes, outros noticiários fazem referência aos fatos, como, por exemplo, em junho de 1988, conforme se verifica um novo registro no
Jornal do Movimento Alma Negra (MOAN):
Chegava a Manaus vinda de Alcântara no Maranhão, a família Beckmann, seu Felipe, o patriarca trazia na bagagem muita esperança e uma promessa. Ainda em Alcântara, um macaco que os Beckmann criavam acometido de raiva, arranhou D. Maroca, sua esposa. Entre os pertences da família, somente uma coisa tinha um inestimável valor, uma pequena imagem de São Benedito. A promessa do seu Felipe era festejar São Benedito todos os anos, passando a “obrigação” de filhos para netos em agradecimento à cura que ocorrera (Jornal do MOAN, 1988).
A versão28 publicada pelo Jornal do MOAN em junho de 1988, afirma que o festejo em devoção a São Benedito na comunidade quilombola em Manaus iniciou em virtude de uma promessa feita pelo Sr. Felippe Nery Beckman, ainda em Alcântara, após a sua esposa, dona Maroca, ter sido arranhada por um macaco acometido de raiva.
Esta versão sobre a origem da Festa de São Benedito na Praça 14 também foi registrada por Mário Ypiranga Monteiro, no livro Cultos de Santos & Festas Profano-Religiosas o qual assegura:
Parece que a primeira festa foi realizada por Felipe Nery Beckman, […] promessa feita a São Benedito, se ficasse isento de qualquer mal proveniente dos arranhões de um gato doido, […] (Raimundo Nascimento Fonseca, filho de criação de Felipe Nery Beckman) que prosseguiu com a promessa. Em 1933 faleceu Raimundo Fonseca e a obrigação continuou, agora sob a direção de dona Maria de Lourdes (Lurdinha). Fonseca Martins (Monteiro,1983, p. 235).
Como gratidão pela cura da dona Maroca, seu Felippe Beckman passou a “obrigação” de realizar a festa religiosa para outros promesseiros. Não obstante, em entrevista realizada em 2017, com a Sra. Maria de Nazaré Vieira dos Santos, de 84 anos, a quilombola assegurou nunca ter ouvido falar acerca da referida promessa.
Outra versão sobre o início do festejo na comunidade, explica que uma promessa teria sido feita pelo Sr. Felippe Beckman em razão de um gato doido tê-lo arranhado. Deste modo, em agradecimento pelo reestabelecimento de sua própria saúde, a festa em louvor ao Santo Protetor iniciou e foi repassada aos quilombolas da comunidade de geração a geração.
Como se verifica a seguir, os membros deste grupo étnico, segundo Fredrik Barth, “é uma categoria atributiva e identificadora, empregada pelos próprios atores; consequentemente tem, como característica organizar as interações entre as pessoas” (Barth, 2000, p. 27). E apresentam suas versões para explicar o processo de formação da comunidade. História que, segundo os informantes, inicia com a chegada de algumas famílias na localidade. Habitando este lugar social, os quilombolas atualmente fazem parte da 6ª geração dos descendentes da escrava alforriada Lúcia Nascimento Fonseca, fundadora dessa unidade social, autodesignada contemporaneamente como “Quilombo urbano do Barranco de São Benedito”.
Promover festividades é uma prática costumeira na Praça 14, porque, além da devoção a São Benedito, há comemorações em honra a Nossa Senhora de Fátima, São Cristóvão, São José, e Santa Terezinha. Ainda que, no mesmo bairro, coexistiam outras manifestações religiosas, como o “tambor de crioula”, e “batuque”.
Sabemos que por meio do interno das celebrações festivas suas narrativas e tradições expressam elementos de fixação, reproduz um valor local, explica um hábito, revela aspectos funcionais de simbolização do imaginário de um povo. Em todo o território brasileiro, a presença das festas de caráter popular acontece em vários lugares, e são realizadas como forma de expressão cultural, geralmente associada a irmandades religiosas.
Essas festas persistem como conversão, diversão, sociabilidade e ajuda mútua, ao mesmo tempo servindo como garantia do imaginário estético poetizante da cultura. No Brasil, as festas de caráter popular mostram a importância das irmandades, sobretudo, no caso dos africanos e seus descendentes, uma vez que por meio delas pode ser garantida a valorização de costumes, crenças, rituais e outras práticas das comunidades negras.
As comunidades dos remanescentes quilombolas se tornaram locais político-organizativos, onde os agentes sociais poderiam viver em maior contato uns com os outros, num processo de interação e liberdade de movimentos que antes não conheciam, o que forneceu as condições favoráveis para o aparecimento de festas e cultos organizados.
Lembramos que o meio ambiente cultural está previsto no Art. 216 da Constituição Federal do Brasil de 1988, que resguarda o patrimônio cultural formado pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, e isto faz referência à identidade, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
Os ritos servem para expressar o status dos indivíduos enquanto pessoas sociais; e retoma a distinção feita por Durkheim, e aceita pelos antropólogos sociais, entre o sagrado e o profano. Trata-se, no entanto, de reformulá-las: ele apresenta a idéia de que as ações sociais se situam num contínuo entre o profano e o sagrado; num extremo estão aquelas estritamente técnicas, no outro as estritamente sagradas; entre os dois pólos figuram a maioria das ações humanas parcialmente sagradas e parcialmente profanas (Sigaud,1996, p. 31).
Edmund Ronald Leach (1996), ao elaborar sua argumentação explicou como usou o conceito de ritual, pois do seu ponto de vista significava a afirmação do status do indivíduo enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra temporariamente, e os antropólogos sociais ingleses, em sua maioria dividiram as ações sociais.
A saber, os ritos religiosos que são sagrados e atos técnicos que são profanos, já o mito nas palavras do antropólogo Leach era a contrapartida do ritual, porque o ritual implica no mito, e ambos são uma só e a mesma coisa. Portanto, em sua concepção, os mitos são apenas um modo de descrever certos tipos de comportamento humano.
Peter Ludwig Berger, autor do clássico denominado O Dossel Sagrado, uma importante contribuição no campo da Sociologia da Religião, expõe que:
Um provérbio árabe o enuncia concisamente: “Os homens esquecem, Deus se lembra”. O que os homens esquecem, entre outras coisas, são suas ações recíprocas identificações no jogo da sociedade. As identidades sociais e seus papéis correspondentes são dados ao indivíduo pelos outros, mas esses outros são também expostos a mudar ou retirar as atribuições. “Esquecem” quem era o indivíduo e, devido à dialética inerente de reconhecimento e auto-reconhecimento, ameaçam as lembranças que ele próprio tem de sua identidade. Se ele pode supor, em todo o caso, que Deus se lembra, suas tênues auto-identificação ganham um fundamento aparentemente garantido contra as reações variáveis dos outros homens, Deus se torna, assim, o outro mais confiável e definitivamente importante (Berguer,1985, p. 50).
Na comunidade quilombola urbana em Manaus, São Benedito é o mediador entre Deus e os membros do grupo coletivamente organizados, que expressam subjetividades, suas crenças e fé na afeição pelo Santo, as relações com o sagrado são vividas no campo experiencial do culto público prestado a Deus, pela veneração respeitosa representada na imagem do Santo Padroeiro.
Entre 2017 e 2019, em razão da oportunidade de participar das programações e festas em honra a São Benedito, organizadas pelos quilombolas da comunidade do Barranco, naquele momento, para fins de registro científico, constatou-se tratar de um ritual de afirmação étnica e cultural, compreendendo a seguinte sequência: retirada do mastro, realização das novenas, levantamento do mastro, procissão, missa festiva, derrubada do mastro, além do encerramento dos festejos no chamado ritual do “arranca toco”.
Os fatos são extensivos à história de São Benedito, adotado pela comunidade da Praça 14 de Janeiro, cuja imagem veio do Maranhão com os descendentes de negros escravizados. A comunidade que, em 2014, foi oficialmente identificada pela Fundação Cultural de Palmares sob a designação de “Quilombo Urbano do Barranco de São Benedito”, provavelmente, por preconceito religioso, o ali reconhecido por muitas décadas como o protetor dos quilombolas, tal imagem não foi acolhida no Santuário de Nossa Senhora de Fátima, localizado nas proximidades do Quilombo. Fato que causa curiosidade, tendo em vista que a devoção ao santo tem mais tempo de existência no bairro do que o próprio santuário católico.
Ainda em 2022, a imagem de São Benedito doada por um político local para saudosa senhora, Maria de Lourdes Fonseca, ex-coordenadora do festejo religioso, que, por sua vez, doara a imagem do santo para a igreja católica. Curioso é que a imagem não foi exposta no Santuário Nossa Senhora de Fátima, cabendo ao padre Nori José Broch, ao localizar tal imagem no depósito da igreja, colocá-la em um altar, de modo a permitir a sua visualização, assim como as demais imagens presentes no interior do templo católico. Observe a imagem de São Benedito na figura 17, em anexo)Os fatos narrados comprovam, consoante as diferentes fontes, o quanto as igrejas cristãs, entre outros credos, resguardam preconceitos reforçados pelas discriminações contra as comunidades negras e povos indígenas, desenvolvendo ações efetivas e serviços exploratórios para fortalecer seus projetos coloniais de dominação cultural.
São Benedito é o elemento aglutinador, produtor de identidades. Os devotos são, por conquista histórica, os quilombolas que, ao Santo, rendem solidariedade e a ele devotam suas crenças e recorrem em busca de socorro ou de, culturalmente, homenageá-lo como expressão de fé e respeito a ele imputados. A festa é a celebração do padroeiro glorioso, e milagroso dos quilombolas da Praça 14 de Janeiro.
A obra de Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, nos empresta um conceito interessante a respeito de festa religiosa:
Não é a morfologia da festa que nos interessa, e sim a estrutura do Tempo sagrado atualizado nas festas. Ora, a respeito do tempo sagrado pode se dizer que é sempre o mesmo, que é uma “sucessão de eternidades” (Hubert e Mauss). Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar aborígene e que é, ritualmente tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico. Em outras palavras, “saem” de seu tempo histórico – quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais – e reúnem se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no Tempo mítico e sagrado e reencontra o Tempo de origem, aquele que “não decorre” – pois não participa da duração temporal profana e é constituído por um eterno presente indefinidamente recuperável (Eliade,1992, p. 47).
A festa em devoção a São Benedito, apresenta em sua estrutura aspectos sagrados e profanos, vale ressaltar que essa percepção é um ponto de vista do pesquisador, pois os participantes do evento religioso não fazem tal distinção, a etapa do ritual litúrgico inclui as rezas, cânticos e devoção à imagem do santo, acompanhada na sequência pelas músicas, bebidas e gastronomia regional.
Na comunidade do Barranco, o Santo que é negro e dos negros obteve imediata devoção, cuja história se relaciona com a dos agentes sociais predominantemente negros estabelecidos em Manaus, mantendo vivo o festejo de São Benedito como um aspecto da cultura religiosa dos quilombolas. Na sala de uma residência situada na Rua Japurá, nº 1360, que pertence a uma família quilombola, está o altar com a imagem de São Benedito, medindo 52cm de altura. O Santo representa estimada importância para os agentes sociais, estando a estátua esculpida em madeira de “pau d’angola”.
Dada a importância da imagem, vale apresentar a descrição básica dessa escultura de São Benedito: o santo segura um cesto de flores, tem na cabeça uma coroa. A imagem traz ainda um hábito, roupa típica dos religiosos franciscanos, portando um terço em uma de suas mãos. Faz-se necessário ainda considerar a negritude enquanto atributo da representação social deste Santo, sobretudo, na comunidade quilombola do Barranco, onde São Benedito é reconhecido e/ou legitimado pelas crenças dos religiosos como glorioso, milagroso e Padroeiro dos quilombolas.
Todavia, alguns questionamentos são feitos com relação à cor de São Benedito:
Parece incrível que se tenha de discutir sobre a cor de São Benedito. Mais escurinho ou menos escurinho, que importância tem? Mas o fato é que a discussão existe. Escritores antigos, principalmente franceses, para distinguir São Benedito de São Bento, que na língua deles tem o mesmo nome: Benoît, le more, isto é, Benedito, o Mouro. Argumentam, então, alguns que se São Benedito era mouro, não era negro, mas escuro. Mas o caso é que ninguém prova que Benedito fosse mouro. Os pais de São Benedito foram levados da África para a Sicília, […]. Mas volumosa, porém, é a tradição que afirma, com Frei Diogo do Rosário, que “Benedito foi filho de pais mui tostados […] e sua mãe uma preta escrava”. A iconografia, que estuda o modo como os santos são representados nas suas imagens através dos tempos, sempre apresentou São Benedito na cor negra (Souza, 1992, p. 9).
As narrativas asseguram que a imagem de São Benedito presente na comunidade quilombola foi trazida de Portugal para o Maranhão por negros escravizados. E, conforme tais relatos, ele do Maranhão para Manaus no final do século XIX, foi trazido por Felippe Beckman. Os agentes sociais estabelecidos na cidade mantiveram sua devoção a São Benedito anteriormente praticada em seu Estado de origem.
A festa de devoção ao santo está resguardada por profundo simbolismo a expressar os traços culturais historicamente preservados. Para a realização da festa é necessário retirar madeira para a confecção do mastro, representado por um tronco de árvore chamada envireira, medindo, aproximadamente, 12 metros e, em média, 70 centímetros de diâmetro. Obedecendo-se ao ritual, o mastro é extraído da mata pelos homens da comunidade, também acompanhados pelas mulheres e crianças moradoras do quilombo.
O momento festivo é celebrado com fogos de artifícios, com o soar de um sino, que recebe várias badaladas, ao iniciar e no findar das atividades. Nas proximidades da capela, está o sino que fica próximo do altar que porta a imagem de São Benedito. Ao término do rito, a escultura é guardada com grande responsabilidade pelos agentes sociais, ocupados por organizar tais honrarias ao santo protetor.
Jamily Souza da Silva afirma que:
Dona Edna Rodrigues29, 69 anos, ou apenas Guguta, como gosta de ser chamada, prima de dona Jacimar, relatou como a igreja passou a participar da festa; D. Edna, catecúmena da paróquia de Nossa Senhora de Fátima contou que, no início da década de 80, quando os padres capuchinhos da Igreja de São Sebastião deixaram a direção da igreja de N.S. de Fátima, e vieram padres mais expansivos, comunicativos e integradores, como os padres Ivo Roratto e Celestino, da Ordem dos Padres Palotinos do Rio Grande do Sul, foram essenciais para a comunidade, pois através deles foi possível levar a procissão de São Benedito para a igreja de Fátima (Silva, 2011).
Segundo narrativas dos antigos moradores da comunidade, nos anos de 1980, constatou-se uma permanente resistência da Igreja Católica Nossa Senhora de Fátima, localizada no bairro, em permitir que a procissão adentrasse o interior da igreja para realizar o festejo. A recusa dos padres responsáveis pela paróquia se deu por eles atribuírem ao ritual uma prática anticristã, comparada pela Igreja Católica aos cultos das religiões de matriz africana, vulgarmente conhecida como macumba.
Vejamos a declaração do padre Celestino Ceretta30, quando da entrevista feita, em 2018:
Quando vim conhecer Manaus em 1976 os padres moravam na Rua Visconde de Porto Alegre, bem pertinho da casa onde tinha o altar com a imagem de São Benedito, na mesma quadra. Quando cheguei em 1977 fui morar na Rua Jonathas Pedrosa, então eu conheci o pessoal do quilombo que participava da igreja, posso dizer que a gente sempre teve uma boa ligação, a primeira pessoa que trabalhou na casa dos padres Palotinos no Amazonas, quando chegaram aqui, foi a Sra. Edna Lago que pertencia à comunidade quilombola. E com quem eu conversei um pouco depois, foi com a dona Lourdinha quando ela coordenava a festa de São Benedito. Neste tempo eu fui pároco da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, de 1986 a 1990, fui conversar com a Dona Lourdinha, e ela me passou aquela história que todo mundo sabe. As pessoas que vieram do Maranhão, sobre o homem que foi mordido por um macaco e foi curado por uma promessa feita a São Benedito. Toda essa ligação popular do Santo é importante, por ser a religiosidade eficaz, é onde se verifica a ligação do sagrado com a pessoa, não é no intelectual, a ligação do sagrado com a pessoa é no sentimento, na vivência, no compromisso, e os quilombolas têm um compromisso que guardam até hoje. E guardam como eu diria assim, até por sobrevivência cultural, se eles perdem isso aí; se eles perdem a festa de São Benedito, eles se dissolvem, porque são minoria, e eles somem. A religiosidade que eles têm os mantém unidos, na realização da festa, eles vivem em comunidade. Esta é uma das raízes da Teologia da Libertação que surgiu exatamente daquilo que o povo sente de Deus, sendo algo eficaz para as suas vidas, que os liberta dos seus sofrimentos. A religiosidade popular e a devoção a São Benedito faz parte dessa Teologia de gente que sente a presença de Deus através do Santo; que os resgata, e não os deixa só, pois faz com que a comunidade tenha uma vida eficaz. A primeira vez que incluímos a festa de São Benedito ao Santuário de Fátima foi num ano que a Campanha da Fraternidade era sobre as raças, então resolvemos trazer de volta o São Benedito para a Igreja, porque aqui existe, queira ou não, uma pendência entre a comunidade, é, digamos dos brancos e dos pretos, digo isso porque se a gente não fala desconhece o problema que tem. Portanto, São Benedito nunca foi bem aceito no Santuário, até porque acreditavam que era uma seita. Hoje, com o desenvolvimento da igreja, na abertura da igreja se percebe que não, é culto católico, e muito católico. Então, o que fizemos naquele ano, trouxemos o São Benedito, e foi a missa no horário das 18:30hs, com o São Benedito, e vieram todos eles, gente de muita fé. Esta é a beleza da fé… (Ceretta, Celestino. 74 anos. Entrevista 03 [12 de janeiro de 2018]).
A Sra. Maria de Lourdes Fonseca, “tia Lourdinha”, citada na entrevista do Pe. Celestino Ceretta, está presente na memória dos quilombolas da Praça 14. Ela foi quem coordenou os festejos de São Benedito até 2002, e, ao longo de 50 anos, era considerada uma referência de liderança. A festa, sob sua coordenação, tornou-se bastante popular, visto que “Tia Lourdinha” sempre estabeleceu vínculos sociais com autoridades políticas da época. Por conta dessa liderança, hoje ainda é possível encontrar entrevistas concedidas por ela nos registros de livros e jornais. Ao exercer outras atividades, com destaque ao desfilar como “baiana” no GRES – Vitória Régia, cuja atuação social é expressamente reconhecida pelos moradores da Praça 14 de Janeiro.
Atualmente, observa-se a relação construída entre os quilombolas e a diretoria da igreja. A festa de São Benedito tem diversas atividades, elas agregam a devoção ao Santo, bem como a procissão, os cânticos, as novenas, além da missa, correspondentes à parte religiosa; as demais atividades recreativas, como as danças, músicas, comidas e bebidas estão relacionadas com a parte da comensalidade.
Com o propósito de relatar os cultos e ritos religiosos referendados a São Benedito, faz-se necessário frisar que a luta dos quilombolas pela construção da capela do Santo, evidencia uma forma de afirmação político-organizativa desse grupo étnico, historicamente instalado na Praça 14 de Janeiro da cidade de Manaus e que tem ali se projetado culturalmente ao longo de todo esse tempo.
Além das relações de sociabilidade construídas, o fato que demarca a fé e devoção a São Benedito, compreende: a retirada do mastro, associada à realização das novenas; o levantamento do mastro, seguido da procissão, referendada com a celebração da missa festiva, seguida da derrubada do mastro; e o encerramento do festejo no chamado ritual do “arranca toco”.
A respeito de crenças que envolvem noções de sagrado e profano e/ou de crenças religiosas intrínsecas à fé, que representa significados simbólicos aos fiéis, Émile Durkheim observa que:
Essas crenças e práticas religiosas parecem, às vezes, desconcertantes, e podemos ser tentados a atribuí-las a uma espécie de aberração intrínseca. Mas, debaixo do símbolo, é preciso saber atingir a realidade que ele figura e lhe dá sua significação verdadeira. Os ritos mais bárbaros ou os mais extravagantes, os mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual ou social. As razões que o fiel concede a si próprio para justificá-los podem ser – e muitas vezes, de fato, são – errôneas; mas as razões verdadeiras não deixam de existir; compete à ciência descobri-las (Durkheim,1989, p. 01-2).
As crenças e práticas religiosas vivenciadas pelos quilombolas urbanos da comunidade étnica do Barranco têm os seus símbolos que imprimem significações verdadeiras, o ritual de afirmação possui elementos sagrados em comum e proporciona o desenvolvimento da vida comunitária que une os membros do grupo.
A religiosidade aludida ao santo Padroeiro da cor de pele preta na comunidade quilombola urbana em Manaus sinaliza o compromisso coletivo assumido, vinculado ao zelo da devoção popular praticada às margens da religião oficial, cujo culto está consolidado no território ocupado desde o final do século XIX.
Afinal, isso evidencia a longevidade do ritual ao Santo Protetor, pois, amiúde, mostra a sua potência como símbolo de resistência cultural, apesar de todas as adversidades apresentadas ao longo de sua história, como continuam a sustentar os agentes sociais autodefinidos quilombolas: “São Benedito é quem nos move”.
Para além dessas crenças ocorridas no referido quilombo urbano, a pesquisa estende suas análises ao Quilombo Rural Sagrado Coração de Jesus, no município de Itacoatiara-AM, sendo este, também, objeto de análise do presente estudo, conforme se verifica na seção subsequente.
28 Esta pesquisa acadêmica no decorrer das coletas de dados e contatos estabelecidos com os quilombolas identificou diferentes versões apresentadas pelos pesquisados. Sendo assim, em relação ao mesmo fato social em alguns momentos as narrativas estão em oposição, nos relatos dos distintos agentes sociais, as formas explicativas possuem versões diferentes.
29 A Sra. Edna Rodrigues, conhecida pelos agentes sociais como Guguta, a quem Jamily Silva se refere, infelizmente faleceu no dia 20 de Março de 2017, ela era responsável por tocar o sino durante os festejos de São Benedito na Comunidade Quilombola, desfilava como “baiana” do GRES – Vitória Régia, a quilombola era bastante atuante na comunidade.
30 CERETTA, Celestino. 74 anos. Entrevista 04 [12 de Janeiro de 2018]. Entrevista realizada na residência do entrevistado, Manaus, Amazonas. Entrevista concedida a Vinícius Alves da Rosa.
Continua na próxima edição…
*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).
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