Manaus, 18 de agosto de 2025

Sebastião Salgado: o idioma da imagem e os arquétipos do Brasil

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Com sua câmera como instrumento ontológico, Sebastião Salgado não apenas retratou rostos e paisagens — ele decifrou a condição humana, os paradoxos da brasilidade e o espírito da floresta.

Hoje, o Brasil se despede de um de seus maiores intérpretes. Sebastião Salgado, mais do que um fotógrafo, foi um tradutor da alma humana, um narrador do tempo com a linguagem da luz e da sombra. Sua obra é um idioma visual que atravessa a dor, a resistência e a beleza do mundo — sobretudo do Brasil invisível.

Seus projetos – Gênesis, Êxodos, Trabalhadores, Serra Pelada, Amazônia – não são apenas registros. São ensaios filosóficos silenciosos sobre o ser, o destino e o pertencimento. Salgado falava com imagens o que os mitos sempre tentaram dizer com palavras. E é nesse espírito que o homenageamos, traduzindo seu idioma com os arquétipos que ele mesmo evocou em suas fotografias eternas.

Sísifo na lama de Serra Pelada

A epopeia dos garimpeiros cobertos de barro, subindo e descendo com sacos de 40 quilos nas costas, lembra a tragédia de Sísifo. Mas os homens da Serra Pelada não desafiaram os deuses: foram punidos por obedecer ao sistema. Na imagem de Salgado, vemos o esforço cego, a repetição cruel e o fardo que se renova a cada passo. Sísifo é o trabalhador brasileiro condenado ao ciclo da sobrevivência.

Com sua câmera como instrumento ontológico, Sebastião Salgado não apenas retratou rostos e paisagens — ele decifrou a condição humana, os paradoxos da brasilidade e o espírito da floresta.

Orfeu em meio à floresta

Na série Amazônia, Salgado não fotografa a floresta como cenário, mas como personagem. Acompanhado de Ailton Krenak e outros guardiões da sabedoria indígena, ele desce aos mundos subterrâneos do tempo ancestral. Lá, encontra o Orfeu que canta a vida vegetal e espiritual. Um Orfeu que não busca Eurídice, mas a permanência do sagrado. A imagem torna-se canção. A floresta, partitura. E o indígena, maestro da existência.

Com sua câmera como instrumento ontológico, Sebastião Salgado não apenas retratou rostos e paisagens — ele decifrou a condição humana, os paradoxos da brasilidade e o espírito da floresta.

Prometeu com as mãos vazias

Nos refugiados, sem-terra, famintos e esquecidos, Salgado capturou o Prometeu do nosso tempo. Não aquele que rouba o fogo, mas o que é consumido por ele. São homens, mulheres e crianças punidos por sonhar. Eles aparecem com os olhos secos de tanto esperar, mas ainda acendem alguma centelha de dignidade. A fotografia, aqui, não é vitrine da miséria. É altar da resistência.

O Cristo Crucificado da brasilidade

Talvez nenhum símbolo seja mais recorrente nas entrelinhas de Salgado do que o Cristo popular. Um crucificado sem cruz visível, mas presente nos corpos dobrados do trabalho, no abandono do Estado, na exclusão cotidiana. Seu Cristo é indígena, negro, nordestino, operário. E sua ressurreição é possível: está na criança que brinca no sertão, na benzedeira que sorri com o céu, no gesto de partilha que insiste em sobreviver.

A luz que revela o ser

Sebastião Salgado não se limitou a fotografar. Ele pensou o Brasil — e o mundo — como um corpo cheio de feridas, mas também de cura. Sua lente tocou o barro e o sagrado. Seu idioma foi universal e, ao mesmo tempo, profundamente nosso. Hoje, perdemos o homem. Mas sua obra segue dizendo aquilo que não conseguimos dizer. Com um idioma mais antigo que as palavras: o da imagem que é luz sobre o ser.

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