Manaus, 27 de julho de 2024

Uma luz possível

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lya luft
*Lya Luft

“A justiça funciona, as instituições estão de pé e, se não formos muito irresponsáveis e alienados, poderemos ter algum horizonte”.

Os noticiários de televisão têm sido um desfile de atrocidades e crimes: infelizmente, a gente se acostuma, quase não sente mais horror ao ver a carnificina. Quem sabe para se salvar, desliga o aparelho e toma um café em sossego antes de sair à luta.

Mas, numa dessas notícias, filmada por câmeras de vigilância, apareceu uma inacreditável cena que me chocou, e comoveu tanto a repórter que ela teve de engolir duas, três vezes para controlar a emoção e a voz.

Bandidos armados invadiram um supermercado. Um policial de folga, sem farda, atacou o bandido mais próximo, que o derrubou e friamente lhe deu três tidos. Pessoas corriam, pânico e confusão. De repente, no meio da cena aparece, de costas para mim, um menino de 5 anos. O bandido passou por ele correndo, e a criança levantou os dois bracinhos num gesto de defesa: estava fazendo mãos ao alto, “não me mate”. O criminoso atirou por cima do menino, que finalmente foi encontrado pelo pai e levado em seus braços daquele cenário surreal, nesta vida surreal, neste país surreal.

A que ponto chegamos: recentemente, um secretário de Segurança afirmou em entrevista que procura não sair de casa à noite, e quando sai evita parar nos sinais de trânsito com luz vermelha. O que resta a nós, coitados brasileiros, que precisamos estar na rua à noite, voltando do trabalhando ou indo para ele, e que, além de tudo, se flagrados ultrapassando o sinal vermelho à noite, mesmo sem tráfego, seremos multados?

Parece irremediável esse teatro de loucuras no qual se desenrolam os mais insanos cenários políticos. Frases alienadas sobre como estamos bem nessa “travessia”, festival de grandes traições ou deslealdades sutis, mas eficientes. Pobre nau sem comandante, sem roteiro sabido, grandes e pequenos ratos abandonando o barco ou trocando de papel neste patético e vergonhoso salve-se quem puder. A economia, um desastre; projetos faraônicos inúteis prosseguem; por outro lado, enormes construções se deterioram abandonadas, dinheiro posto fora. E todos somos aquele menininho de 5 anos levantando os braços para pedir que nos poupem.

Mas talvez nem tudo esteja perdido. O país foi submetido a uma surpreendente e saudável faxina com a Lava-Jato, que autoridades delirantes tentam responsabilizar pelo declínio geral – “A Lava-Jato reduziu o PIB! A Lava-Jato causa demissões em massa!” – como se fôssemos todos idiotas, e o bandido não fosse o bandido.

Visivelmente, a crise estende seus tentáculos até nós pessoas queridas: ótimos profissionais são demitidos, não por crueldade das empresas, mas porque, se não cortarem na carne, como o governo deveria fazer, virão a falência e muitos milhares de demitidos mais. Todos remanejamos nossas despesas e nossa vida com a sombra do desemprego pairando sobre a cabeça. Não porque nós erramos (a não ser incríveis milhões de brasileiros na hora de votar), mas porque, repito, estamos pagando uma dívida alheia.

Temos, porém, uma esperança, sim: a Justiça se move. Desvenda uma onda destrutiva na América Latina que nos devastaria se não fosse detida. Age como nunca antes. Políticos e empresários poderosos estão sendo investigados e presos, abre-se o sombrio labirinto de roubalheira e corrupção em que tantos enriqueceram à custa dos pobres e dos honestos. Desta vez, não se tapa a sujeira com um montinho de cinismo, mas ali estão, expostos ou encarcerados, alguns dos grandes responsáveis pela situação em que nos encontramos. Pelo que se diz, serão muitos mais. Esta é a nossa pequena luz: a Justiça funciona, as instituições estão de pé e, se não formos muito irresponsáveis e alienados, poderemos ter algum horizonte.

Como me disse um amigo, “na memória profunda do povo vai ficar marcada a associação entre certa ideologia e o roubo puro e simples que estava nos destruindo. E agora estamos recebendo uma vacina cavalar contra futuras façanhas desses aventureiros”.

Esperemos que sim. Amém!

*Escritora. Articulista da Revista Veja. Texto na edição 2439, de 19/08/2015.

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