Continuação ….
Educação
A escola do rio e da floresta
I
Estas notas pretendem revelar a memória de fatos que vi e vivi no processo educacional da Amazônia e fazer uma síntese de algumas dissertações de conclusão de curso dos professores-alunos do Proformar, um programa de titulação de professores no Amazonas.
Início com a memória e, em seguida, dedico-me à síntese dos citados trabalhos acadêmicos.
Vivi a primeira experiência com a escola do rio e da floresta, implantada nas cidades e vilas do Amazonas, por volta dos anos de 1940. Era uma escola primária assentada na boca do igarapé do Carão, às margens da entrada de cima do Paraná de Serpa, no município de Itacoatiara, no sítio Roseiral, propriedade do meu pai. A escola era mantida por ele, com o apoio oficial do prefeito da cidade, pessoa de suas relações, chamado Alexandre José Antunes32. O nome era Escola Mista da Boca do Carão. O carão é uma ave brasileira originária de áreas alagadiças e que emprestou o nome àquele igarapé, acidente geográfico definido na terminologia amazônica de rio pequeno, caminho de canoa. O igarapé do Carão nasce no lago do Canaçari e desemboca ali perto. A escola funcionava em um dos compartimentos de nossa residência. Em verdade aquela parte da casa era o nosso quarto de dormir, meu e dos meus irmãos. Dormíamos em redes atadas de noite e desatadas de dia, quando o dormitório transformava-se em sala de aula. No lugar de carteiras, os alunos serviam-se de bancos longos, onde se sentavam em grupos de 4 a 5.
Meu pai era comerciante e, nas suas obrigações voluntárias de mantenedor da escola, fornecia, ainda, a lousa e o material escolar como livros e cadernos, e dispunha da moradia e da alimentação do professor mantido pelo Estado.
A escola atendia crianças que moravam nas redondezas. Deslocavam-se para as aulas nos caminhos dos cacauais, ou de canoa pelo rio. Eram filhos de pescadores, pequenos agricultores e mateiros. Não chegavam a ser mais de 20. Vestiam roupinhas surradas e alguns meninos apareciam sem camisa, só de calção e, todos, meninos e meninas, descalços.
Nem por isso deixava de ser um ambiente agradável, tão alegre que o professor, ainda que envolvido por um ar austero, não conseguia empanar-lhe o bom astral. Minha melhor lembrança dessa escola ficou do convívio com aquelas crianças. Do professor ficou o sotaque usado em suas preleções, marcante numa frase inesquecível, captada em uma aula de ciências. O professor falava sobre a composição anatômica do corpo humano. Lá pelas tantas, na descrição da estrutura do tórax, dizia ele, passando a mão direita sobre o próprio peito: “O esterno é este ósso que forma o pêto”. Essa escola, no entanto, chegou a categorizar-se ao ponto de fornecer atestado de conclusão da terceira série ao meu irmão mais velho Edison que, ao mudar-se para Manaus, matriculara-se, após ser classificado em um teste de avaliação, à quarta série do tradicional Grupo Escolar Saldanha Marinho, onde prosseguiu os estudos sem dificuldade na aprendizagem, fato que atesta a qualidade daquela pequena escola plantada na beira do rio
Essa escola ocupava-se, ainda, com atividades extraclasses. Das atividades cívicas lembro-me da Semana da Pátria, celebrada nos dias 5 e 7 de setembro, datas de elevação do Amazonas à categoria de Província e da Independência do Brasil, e o Dia da Árvore no dia 21. Para atender às recomendações das autoridades públicas de então, no cumprimento da metodologia abraçada pelo Estado Novo, período da vida política brasileira informada por claro conteúdo nacionalista e patriótico, estimulado pelo getulismo, era montado o Altar da Pátria em verde e amarelo, com as armas da República de forma ampliada, ante o que se hasteava a Bandeira do Brasil ao som do Hino Nacional, com a criançada toda cantando em posição de sentido.
Na festa da árvore plantava-se uma árvore como símbolo também de exaltação à pátria, sem nenhuma conotação, pelo menos na retórica, de natureza protecionista do meio ambiente. Isso não estava ainda em moda. Nem se imaginava que aquele mundão de águas e floresta estivesse ameaçado de uma forma ou de outra e um dia pudesse desaparecer, necessitando, portanto, de defensores…
Outro testemunho sobre a situação da escola em nosso país, é o que vivi, em seguida, uns 5 anos mais tarde, em comunidades plantadas nos rios Uatumã e Uaicurapá. Uma situação muito negativa.
O Uatumã banha a vila de São Sebastião, hoje elevada à categoria de sede municipal, na região do baixo Amazonas, àquela altura incorporada como distrito ao município de Urucará, cidade plantada no paraná do mesmo nome. A vila de São Sebastião não possuía escola de qualquer espécie. Creio que o chefe político do lugar não tinha interesse no assunto. Afinal, ele dominava a pequena vila com mão de ferro. A luz elétrica ele fazia questão de oferecer com um gerador de energia instalado em sua própria residência. Nas noites de luar aquele poderoso senhor cortava o fornecimento de energia e ficavam apagadas as lâmpadas penduradas nos postes das ruas. Segundo ele, não havia necessidade de luz elétrica nessas noites, a lua se encarregava de iluminar as ruas e, assim, por extensão, talvez julgasse que não se precisasse também de escola, porque jamais adotou providências nesse sentido…
Outro caso ocorreu no rio Uaicurapá, município de Parintins, igualmente no baixo Amazonas. Às suas margens deitava-se uma vila chamada Varre Vento, formada pelas famílias dos trabalhadores de uma usina de beneficiamento de essência de pau-rosa, ali instalada. Também não possuía escola.
O leitor curioso há de indagar:
– E as crianças desses lugares, onde estudavam? Ou, para ser mais direto, existiam crianças nesses lugares?
É rápida a resposta. Existiam muitas crianças, mas, simplesmente, não estudavam. As famílias de mais posses mandavam os filhos para estudar nas sedes municipais, ou, os mais aquinhoados migravam para Manaus.
Passou-se o tempo e um dia, funcionando na Secretaria de Educação do Estado, já na década de 1970, estive com uma comitiva de professores e autoridades do ensino em uma comunidade no lago do Limão, logo em frente à cidade de Manaus, do outro lado do rio Negro, quando testemunhei outro fato curioso.
Como o Secretário de Educação estaria nesse dia naquele lugar, o povo acorreu para receber a autoridade que, nos beiradões amazônicos, é sempre motivo de festa aonde chega. Estavam todos envergando a melhor indumentária, velhos, jovens e adolescentes, em particular as meninas, todas emperiquitadas, com tranças nos cabelos ainda molhados do banho. Chamou-me atenção nas mocinhas elas estarem arrumadas com vestidos de festa, mas descalças.
O pleito mais eloquente rolava em torno da criação de uma escola na comunidade. Um homem idoso pediu a palavra e disse que jamais vira naquele lago uma autoridade da Educação. E o Secretário revelou que estava ali com o objetivo de instalar uma escola, afirmando que o ideal é que pudesse nomear para dar aula uma professora que residisse naquele lugar. Pediu que indicassem nomes e logo se apresentou uma candidata, jovem senhora recém-moradora dali, dizendo que podia assumir tal responsabilidade, pois possuía até o terceiro ano ginasial, feito no Rio de Janeiro.
O mais espantoso é que isso aconteceu nas últimas décadas do Século XX, numa comunidade localizada às barbas de Manaus…
Em face desse panorama as autoridades da educação passaram a enfrentar o assunto com um maior interesse. Cheguei a testemunhar o debate e o esforço de implantação de políticas oficiais de ensino como o “rodízio escolar” e o Instituto de Educação Rural, adotadas para mudar a face de tal realidade, matéria que vai abordada em próximos capítulos destas notas.
Esse panorama levou-me, também, a concluir que o processo educacional é aplicado levando em conta uma realidade. Perdoem-me o dogmatismo, mas sempre foi assim. Realidade humana e geográfica, nacional ou regional, com os seus comprometimentos culturais e políticos.
Os educadores ingleses P. H. Hirst e R. S. Peters33 lembram que a palavra educação originou-se do latim “educere”, que era usada para definir o desenvolvimento físico da criança e do jovem, e “educare”, que se referia ao cuidado com plantas, animais e crianças. O assunto, portanto, deste trabalho, ao ocupar-se, nos capítulos à frente, dos depoimentos dos professores-alunos do Proformar, é a educação e a Amazônia, dois temas que precisam ser exorcizados do conteúdo de demagogia e mistificação com que em regra são maltratados.
É inadmissível que os temas educação e Amazônia sejam por vezes olhados com a visão desastrada, igual à de um personagem de Jorge Amado, concebido na novela Os velhos marinheiro34, que lembro a seguir.
Nessa história do notável escritor brasileiro, sem conhecer os procedimentos de um verdadeiro Capitão de Longo Curso, um dos protagonistas da novela meteu-se em camisa de onze varas. O fato é que essa figura encarnava a efígie de um astucioso aventureiro, que inventou de improviso aquela profissão, para aproveitar-se do prestígio que ela lhe propiciaria e refestelar-se nas delícias de uma viagem de cruzeiro marítimo, na condição de autoridade.
Aconteceu, no entanto, o inesperado. Por uma dessas fatalidades da vida o navio ficou sem comandante em pleno mar e a tripulação foi chamada a resolver a questão de imediato. Sabedores da existência, entre os passageiros, de um cidadão chamado Vasco Moscoso de Aragão, que vivia a proclamar-se
Comandante e detentor do título de Capitão de Longo Curso, este foi convocado para assumir o posto de comando do transatlântico.
Tudo ia bem enquanto o barco navegava em mar sereno. Mas na hora de atracar no porto de destino, indagado, maliciosamente, pelos oficiais subalternos e moços de convés que já tinham observado no percurso da viagem, naquele cavalheiro pelintra e falastrão, o comportamento de falso marinheiro, ordenou que se lhe usassem de todos os cabos, como se o navio estivesse ameaçado por uma tempestade devastadora, daquelas costumeiras observadas na região amazônica.
Assim foi feito. O resultado é que, na maior calmaria dos ventos, o navio todo amarrado, atracado ao porto de destino com todos os cabos, convertera-se em motivo de chacota dos marinheiros em terra, a exibir a incompetência daquele cidadão, ali exposto ao ridículo dos seus subalternos, homens do mar experientes.
Mais tarde acontecem fatos surpreendentes no desenrolar da novela, mas aí já é outra história e para saboreá-la é preciso ler o livro.
Outro caso deu-se com um Governador do Amazonas, agora não mais no terreno da prosa de ficção, mas no realismo dos bastidores por vezes histriônicos da política. Tal governante, sem o necessário tirocínio sobre os fatos da Amazônia, saiu-se com um enorme disparate que serviu de repasto à imprensa, ainda que sob censura naqueles duros tempos dos chamados governos fortes…
Sim, vale a pena recordar, pois nesse tempo, no auge do movimento militar de março de 64, deu-se de se designar cidadãos de fora, às vezes completamente divorciados da geografia e da cultura amazônicas, para operar na região. Então aconteciam passagens como essa. Ante a crise de uma dessas grandes enchentes periodicamente acontecidas na região e que não constituem novidade para os nativos, o indigitado cidadão ordenou que as populações atingidas pelas águas subissem às terras firmes, mal sabendo ele que os amazônidas, historicamente, fogem às léguas desses lugares, porque as terras firmes, situadas de 20 a 70 metros de elevação acima da lâmina do rio, dificultam-lhes até do beneficiamento da água que deve ser apanhada lá em baixo para o consumo diário. O lugar ideal de sua moradia são mesmo as várzeas, onde tudo fica perto, principalmente o rio, fonte permanente de vida, onde buscam os alimentos e se louvam dos transportes.
Para plantar o homem amazônico nas terras firmes, há necessidade de investimentos públicos significativos, muito mais onerosos se aplicados numa política destinada a promover a melhoria da vida nas várzeas. Esperar que o homem busque as terras firmes como forma de proteger-se das enchentes anuais das terras baixas, por iniciativa própria, é pura ilusão. Ele prefere enfrentar as adversidades das águas altas, pois sabe que, ao baixar, elas vão deixando nos rastros as sementes de renovação da vida, ao contrário das terras-firmes onde só se produz alguma coisa com a aplicação de técnicas agrícolas sofisticadas e adubação de risco. Para precaver-se das enchentes grandes, que não acontecem nas várzeas altas a todo ano, embora esse fenômeno das águas amazônicas se registre semestralmente, ele adota a palafita, na construção das suas casas e dos seus estendais, e as marombas, para abrigar animais de estimação como os cães e as suas criações, principalmente o gado.
É preciso, portanto, que o homem se prepare para viver nesse mundo e aprenda a lidar com ele; que o amazônida seja habilitado por meio dos instrumentos de ensino que, aí sim, a educação ganha corpo e sentido prático. A educação como prática de um processo aplicado ao meio, como forma, não de escravização do homem a terra, mas de construção da individualidade de um ser em plena posse dos seus direitos políticos e civis, na conquista da cidadania ou da florestania35, neologismo criado pelos acreanos para identificar o povo consciente, morador da floresta. Numa escola diferente que transforme a vida para melhor, no próprio espaço de sua origem.
Ao contrário daquela escola que outro Governador, o Professor José Lindoso encontrou numa comunidade do alto Rio Juruá, onde se estudava em livros que apresentavam ônibus como veículos de transporte, e, mais exoticamente ainda, conduzindo as pessoas para a Penha, um bairro do Rio de Janeiro, sabedores de que os meios de transporte coletivo naquela comunidade, banhada pela bacia do Rio Juruá, eram as canoas, igarités a vela e os motores, nos caminhos de água.
O procedimento educativo correto, portanto, naquela comunidade, deveria ser desenvolvido no sentido de como trabalhar os seus legítimos veículos de transporte e de como cuidar das águas e do seu uso, inclusive como estradas que aproximam as pessoas e os grupos humanos, no intuito de mantê-las sempre limpas e boas para o consumo dos seus moradores, com a adoção de livros e outros instrumentos didáticos que levassem a esse conhecimento.
Indignado e num rápido diagnóstico, porque era coincidentemente também professor, o governador José Lindoso declarou que aquela era uma escola exemplo de como o sistema precisava ser mudado. Aquela era uma escola desgraçadamente “expulsiva” porque acendia, no coração das crianças e jovens, o sonho de ir embora, migrar de sua terra, despertando-lhes os devaneios de andar nos ônibus das cidades grandes como o Rio de Janeiro, na direção de bairros tal como o da Penha, e lá marginalizar-se cada vez mais, sem condições de um dia voltar ao berço de sua origem e da sua própria cidadania.
Precisava-se de uma escola como a pensada por uma aluna do Proformar, da cidade de Silves que, aos 30 anos, afirma que o Proformar não representa a cura, mas o início de um tratamento, e a maneira como recebem este tratamento é que faz a diferença. De que adianta receber medicamentos e não desejar ser saudável? Ou, de outro modo, ter o seu diagnóstico em mãos e recusar-se a suportar a recuperação? Assim é estar perto da educação e não querer recebê-la, – especula essa professora.
O ideal é a educação transmitida por meio das técnicas de ensino, complementar aos hábitos adquiridos no seio da família, comprometida com a tradição da própria coletividade do educando, assimilada através de um processo de amadurecimento intelectual que o habilite a se adaptar a qualquer ambiente, desde que não repudie o seu berço natal.
Se os métodos educacionais não impedirem de o educando estar num lugar e o seu sonho viver noutro, e sem poder plantá-lo na plenitude dos dois lugares, porque tal fenômeno é impossível de se realizar no mundo dos mortais, ou, ao contrário estimularem para que tal anomalia ganhe curso, tornam-se necessário e urgente que se reformulem esses métodos de ensino. Mesmo porque depois de bem formado o homem jamais deixa de estudar e se readaptar a novas situações e a novas geografias, numa permanente atitude autodidata.
__________________
32 ANTUNES, Alexandre (José), (Itacoatiara/AM 1892 – Manaus/AM 1967), pecuarista, bancário e político.
33 A lógica da educação (tradução de Edmund Jorge), Zahar Editores. Rio de Janeiro 1972.
34 Livraria Martins Editora, 19ª. Edição, 1968.
35 Florestania é uma palavra formada pela fusão dos termos floresta e cidadania, criada e definida pelo jornalista acreano Antônio Alves, em palestra proferida no encerramento do 1.º Encontro Internacional de Jornalismo Ambiental da Amazônia, como tentativa de chamar a atenção para o fato de que a humanidade não é o centro, mas sim parte integrante e dependente da natureza.
Continua na próxima edição…
Views: 7