Continuação ….
Educação
A escola do rio e da floresta
II
Sempre foi assim. A escola desejada é a escola comprometida com o destino do homem e do seu espaço vital, escola que o inspire preparando-o para a liberdade, imunizando-o contra todas as formas de paternalismos ou dirigismos esdrúxulos, que forme o cidadão responsável por seus atos e aberto ao espírito de iniciativa, na participação de melhoria da vida e das relações na sociedade. Escola formadora do homem solidário e em harmonia com os elementos da natureza.
Uma escola de conteúdo que, ao reunir em seu espaço físico o povo de uma comunidade, busque superar a todas as dificuldades que se ponham à sua frente, porque, enfim, o mais difícil é conseguir aglutinar as pessoas em torno de um objetivo. A partir daí, juntos, não há força que os detenha, que os impeça de encontrar solução para qualquer gênero de problemas. Tal como testemunhei numa visita feita a uma escola plantada às margens da estrada Manaus/Itacoatiara, por volta da década de 1980. Lá existia um modelo de semeadura dessa escola.
À época estavam asfaltando aquela via de comunicação aberta já há alguns anos, e ainda funcionando sobre piçarras. A casa da escola era construída de vigas e varas, colhidas no mato próximo e a cobertura, era feita com os tampos metálicos dos tambores vazios de asfalto. As carteiras e lousa resultavam de móveis imprestáveis, arrecadados de salas de aula da cidade de Itacoatiara, transportados por voluntários e assim recuperados na própria localidade da escola. O material didático formava-se de livros usados e sobras de cadernos também recolhidos entre os imprestáveis. O mais dos instrumentos didáticos era fabricado pelos próprios alunos, liderados pela professora, com folhas, sementes, cascas de árvores, flores e frutos silvestres colhidos na floresta em torno.
Cuidava-se de um estabelecimento de ensino patrocinado por iniciativa particular, produto da ação coletiva dos moradores das redondezas, pessoas de pouco poder aquisitivo naquele sítio, denominada Escola Monsenhor Pereira, e, mais tarde incorporada à rede escolar da administração municipal de Itacoatiara38.
Comandando esse espetáculo de alegria e boa vontade, estava a professora, que não era uma pessoa comum, porque o professor em essência jamais foi e nunca será uma pessoa vulgar; o professor é um inspirador e um guia, estimulador das pessoas nos caminhos do amor.
O professor que não consegue despertar entre os seus alunos a alegria de viver, o prazer do conhecimento, o entusiasmo pelos valores do espírito e do crescimento material do seu mundo, não consegue ensinar nem o b-a-bá da gramática, nem o 2 e 2 são 4 da aritmética.
À frente dos alunos estava Marina Penálber39, morena, olhos e cabelos negros e um largo sorriso a mostrar dentes fortes, corpo roliço e mãos ágeis, demonstrando em tudo, o poder de uma energia que parecia inesgotável
Essa era verdadeiramente uma escola, veja bem o leitor, não por estar alojada num ambiente precário e rude, mas por despertar nos alunos o interesse pela vida, tocada por uma autêntica professora, verdade que se podia perceber do brilho dos olhos e do sorriso maravilhoso daquelas crianças.
Instalada num palácio ou numa tapera, precisa-se é de uma escola assim, que envolva os alunos na atmosfera do conhecimento, responsabilizando-os pelos procedimentos de sua própria formação, incutindo-lhes o vírus da inquietação pelo saber, a despertar o homem novo que dormita em cada um de nós. Escola liberada dos moralismos cediços e jamais dirigida por monitores improvisados, fracassados em outras profissões.
O comum nos discursos dos administradores públicos, quando se referem às suas políticas, no setor educacional de governo é enfatizar, sobre o número de salas de aula implantadas, a adoção de equipamentos de ensino, alguns até sofisticados como os de audiovisuais, aparelhos de ar-condicionado, visando o conforto ambiental dos alunos, o processo de inclusão digital e o fornecimento de boa merenda escolar. Tudo o que é válido como esforço do Estado na oferta das excelências na melhoria do ensino. Mas, quase sempre, fica em segundo plano a formação da mão de obra, do treinamento do professor e do pessoal administrativo da escola, da melhoria de uma política salarial mais condizente com as responsabilidades dos mestres, posto tratar-se de valores subjetivos, distantes, portanto, dos olhos do eleitorado, e, por isso, inválidos à arregimentação de votos.
Vem-me à lembrança o comentário de um médico em resposta às minhas observações elogiosas em torno das instalações de uma clínica em Manaus. Depois de eu me demorar na descrição do décor, dos móveis, utensílios e equipamentos da clínica, esse profissional que era um verdadeiro humanista e autêntica vocação para a Medicina40, indagou-me, pondo na inflexão uma ponta de ironia:
– E o médico, existia um médico nessa clínica?
O mesmo se pode aplicar no exame de uma escola. Adiantam muito pouco as instalações e equipamentos de primeira linha se na sala de aula não se contar com um professor, no sentido largo do termo.
Antes de se construírem salas de aula, formem-se professores, com objetivos bem definidos, com projetos de construção de prédios escolares, sim, mas sem esquecer de todo um esforço, dirigido à formação e a melhoria de vida do professor e do pessoal administrativo da escola..
Uma escola que não se aliene da tradição, conquistada com muita luta, na linha das conquistas humanas.
Há o axioma de que a História é a mestra da vida.
Afonso Arinos de Melo Franco, em A Escalada41, segundo volume das suas memórias, citando Valéry, escreve que a História nada ensina e que “a História no fundo não é nada senão uma forma especial de arte”.
Paul Valéry42, essencialmente poeta, revestia o seu pensamento com evidente toque de radicalismo, porque a História, afinal, é as duas coisas. É mestra da vida, quando consultada na solução de crises recorrentes ao longo da experiência humana, no exame dos acontecimentos de outras épocas que inspirem providências na solução de problemas contemporâneos, visto serem cíclicos os eventos do cotidiano dos povos, igual como acontece no dia-a-dia das pessoas; e é também uma forma de arte ao conferir unidade aos fatos e ao tecer uma trama que faz esses fatos entrelaçarem-se, demonstrando que um episódio, consagrado pela tradição, passa a influir nas sucessões atualizadas de outros. Apresenta-se, ainda, como forma de arte no momento de exposição dos acontecimentos através do texto, visto que, em regra, todo historiador é também um bom escritor.
Quer seja mestra da vida ou forma de arte, acho necessário o exame de alguns fatos históricos da Educação Brasileira para apreciar as linhas de ação que conduzem o processo educacional no Amazonas. Haverá momentos em que o leitor verá similitude de providências adotadas em épocas diferentes.
Ainda porque, uma olhada na história da Educação no Brasil capacita-nos a melhor compreender o país, considerada a frase famosa de Araújo Lima43, usada no título de um dos seus trabalhos.
Afirmava esse notável pensador amazônida que “só a educação transforma os povos”.
O Senador Cristovam Buarque41, por sua vez, em pronunciamento feito da tribuna do Senado, na sessão ordinária realizada no dia 13 de outubro de 2008, chamava a atenção para o descaso com que as autoridades mundiais cuidam da educação, como se a educação não fosse um instrumento essencial à transformação dos povos.
Aquele nobre educador e político punha em realce, no seu comunicado, as providências adotadas para salvar os bancos na crise financeira que se abatia sobre a economia mundial naquele momento. Fazia referência a outras iniciativas das lideranças políticas do mundo, para proteger da destruição as calotas polares e assim evitar o aquecimento global. Mas chamava a atenção para a indiferença dessas mesmas lideranças, quanto aos problemas básicos da educação. Dizia ele que as mentes se estão desmoronando e ninguém se apercebe disso, ou, se se apercebe não se reúne para discutir a questão e tomar uma providência de impacto como foi tomada em relação à crise financeira.
Afirmava ele, com a autoridade de quem possui uma larga experiência, adquirida como educador, político e administrador público, que os problemas financeiros, o uso racional do dinheiro, como o acatamento aos elementos essenciais ao meio ambiente, só se conquista graças às mentes bem formadas e amadurecidas nos processos educacionais.
Por fim deixou no ar um sinal de esperança de que um dia as lideranças políticas mundiais poderiam reunir-se também para adotar medidas educacionais com investimentos maciços, porque é aí onde residem as bases de sustentação de um bom desempenho monetário e uma boa convivência com os ecossistemas, na proteção da natureza.
Estava implícita em seu discurso a ideia de que só a educação transforma os povos, conforme afirmara Araújo Lima.
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38 Informação concedida pelo historiador de Itacoatiara, Francisco Gomes da Silva. 39 Vide nota às ps. 12.
37 FRANCO DE SÁ, (José Raymundo) (Manaus/AM 1916 – 1999), médico, defensor do Tribunal de Contas do Estado
38 FRANCO, Afonso Arinos de Melo (Belo Horizonte/MG 1905 – Rio de Janeiro/RJ 1990), jurista, político, professor, historiador e ensaísta. – A Escalada (memórias) – Rio de Janeiro/RJ: José Olympio Editora, 1965.
39 VALÉRY, (Ambroise-) Paul (-Toussaint-Jules) (Sète/França 1871 – Paris 1945), filósofo, poeta e escritor.
40 LIMA, (José Francisco de) Araujo (Vila de Muaná/PA 1884 – Rio de Janeiro/RJ 1945), médico, escritor e ensaísta.
41 BUARQUE, Cristovam (Ricardo Cavalcanti) (Recife/PE 1944), político, educador e professor.
Continua na próxima edição…
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