Continuação ….
Educação
A escola do rio e da floresta
IX
As inquietações da sociedade geram os pensadores e líderes, que assumem o comando dos movimentos de transformação dessas mesmas sociedades. O professor que é essencialmente um líder, também é as duas coisas, objeto e agente do processo, num exemplo que bem sintetiza a coerência do contexto em que foi implantado o Proformar.
Ao assumir a tarefa legal de levar o ensino superior, aos professores das escolas oficiais da capital e do interior do Amazonas, a direção da Universidade do Estado do Amazonas, UEA, encarrega o professor Carlos Eduardo de Souza Gonçalves130, à época pró-reitor de Ensino de Graduação da Universidade, de formar a equipe que, sob a sua supervisão, deveria apresentar um desenho do Proformar.
O professor Carlos Eduardo arregaçou as mangas e partiu para a luta. Não era ele nenhum neófito na gerência de planejamentos educacionais.
Já tinha tido papel de destaque no grupo-cabeça dos idealizadores e gestores do rodízio escolar, como tem tido presença infalível na implantação de cursos em todos os níveis em escolas públicas e particulares, nas últimas décadas em Manaus. O mérito da ação, além do saber, da experiência e da vocação de professor que constituem o perfil de sua personalidade, revestiu-se do bom senso do Professor Carlos Eduardo em montar uma equipe de boa qualidade, arregimentada por ele entre professores da universidade para a realização do projeto, como em seguida concluem os seus apreciadores, enfocando as excelências obtidas com os resultados do Proformar:
Não é por vaidade, não é por vontade dos que o construíram, mas porque ele (o professor Carlos Eduardo) criou um espaço de instrução, de reflexão, de investigação sobre os processos educacionais.
Anuncia-se que nas próximas fases o Proformar se voltará para a formulação de uma nova metodologia, mais identificada com a realidade amazônica, talvez coincidindo com aquilo que, embora por caminhos diversos, era o ideal do Instituto de Educação Rural, sonhado pelo professor José Lindoso.131
Aí muito servirão os diagnósticos levantados pelos professores- -alunos do projeto, em suas monografias de conclusão de curso, para as discussões sobre um sistema de educação mais identificado com as necessidades amazônicas, vivenciadas e criticadas por esses professores.
Sem dúvida que jamais houve na história da educação e dos estudos sociais na Amazônia, um levantamento feito de modo tão amplo e vivencial. A substância deste trabalho, do texto a que me dedico agora, está baseada numa sintetização de alguns desses depoimentos. Esse esquema destas notas levou-me a me incorporar aos depoentes, também tomando carona para falar, como se vê, de minhas observações em torno da educação ao longo do texto.
Mas, achei necessário contextualizar os temas propostos com um breve resumo da história da educação no Brasil e no Amazonas, atendo-me, na parte do Amazonas, às providências tomadas a partir de 1852, data de instalação da Província, quando o Estado conquistou em verdade foros de autonomia, ganhando, assim, condições de legislar sobre o objeto do seu próprio destino.
O Proformar constituiu uma das mais eficientes respostas ao desafio da educação em nosso meio. Surgiu de uma necessidade premente.
Precisavam-se habilitar, por imperativo legal, com o grau de nível superior, todos os professores da rede de ensino estadual e municipal, no interior e na capital do Estado, em razão de a maioria possuir apenas os cursos de nível médio. Observe o leitor a semelhança dessa providência, na formação de professores, com as adotadas em 1857 pelas autoridades da então Província do Amazonas, referidas em tópicos anteriores destas notas.
Por força da lei esses professores estariam ameaçados de perder as vantagens dos seus cargos, ou de ir, os que pudessem, em busca de preparo em outras paragens, e deixar as salas de aula deficitárias quanto à qualificação do corpo docente. Era indispensável a adoção de providências imediatas na execução do programa, considerando-se, entre outros fatores, comuns numa obra de tal envergadura na Amazônia, as condições de distância e meios de comunicação, levando em conta a mobilização e transporte de pessoal, professores e material administrativo e didático, nos limites do Estado, uma área absoluta constituída de 1.570.745.680 km 2, com uma bacia hidrográfica de 6.217.220 km, coberta pela maior floresta equatorial do planeta.
Mobilizou-se, então, a recém-criada Universidade do Estado do Amazonas, convocando o seu campus avançado no interior do Estado para comandar as ações. Foram chamadas a participar do projeto as instituições municipais de ensino e se puseram em prática os sistemas de educação à distância, por meio da televisão, numa tarefa em verdade coletiva, levando, enfim, a bom termo a empreitada também comprometida com o conhecimento da educação, como o que brilha no depoimento de uma das professoras atingidas pelo programa, que tomou consciência de seu papel de professora, no decurso de suas atividades na escola e que, aos 40 anos de idade, conclui que precisa refletir diariamente sobre
sua práxis e deve trabalhar com afinco para formar sujeitos pensantes, críticos, responsáveis e conscientes, capazes de atuar e modificar o meio em que vivem.
Escola que precisa de mudanças, como as previstas por uma professora de Barcelos, que, também aos 40 anos, atingida pelo Proformar, observa que o projeto veio para mudar a vida de muitos professores que, por muito tempo, permaneceram esquecidos e não encontravam nenhum motivo para buscar mudanças em seu modo de ensinar e de aprender, agora, se sentindo, ela própria, apta a assumir novos horizontes sem abandonar a sua terra.
Uma escola condizente com a experiência e os conhecimentos de uma aluna de Tefé, 53 anos, que começou a dar aula em 1977 e, em sua trajetória trabalhou com crianças, jovens e adultos, revelando agora a gratidão aos professores do Proformar, preocupados em transmitir os conteúdos de forma criativa e inovadora, construindo no aluno a necessidade de agente multiplicador, levando a eles autenticidade e conhecimento de forma dinâmica e prazerosa.
Estes são apenas uns poucos dos depoimentos e diagnósticos da educação e da vida amazônica, revelados pelos professores-alunos do Proformar, colhidos em mais de 1.500 dissertações de conclusão de curso, escritas em média de 30 laudas cada uma, num total de 45.000 páginas.
Estes trabalhos chegaram às minhas mãos, vazados em volumosas páginas, embora já tenham sido sintetizados por acadêmicos estagiários dos cursos de letras, história e ciências sociais da UEA.
As dissertações, no entanto estão disponíveis na biblioteca da Universidade, na sua feição integral e constituem, em verdade, num levantamento jamais realizado, ao menos que se tenha notícia, da realidade social, política e econômica do interior amazônico, mais especificamente do Estado do Amazonas.
Assim é que tive acesso a esse material, permitindo-me que realizasse uma amostragem do pensamento desses professores-alunos, ao revelar a sua experiência de vida e a surpresa de experimentar o resultado do esforço de adquirir novos conhecimentos, e se preparar cada vez mais para a tarefa transformadora de que se reveste o processo da educação em todos os níveis.
É comovente verificar-se terem sido as situações de sobrevivência em famílias carentes de recursos pecuniários e de educação doméstica, as maiores dificuldades conhecidas por esses homens e mulheres, no esforço de realizar os seus projetos de vida e responder aos apelos de sua vocação. Nos relatos e memórias que se resumem nessas dissertações o leitor poderá confirmar essa verdade.
O Proformar atingiu os seus objetivos num ambiente em verdade pobre de recursos humanos, capacitados ao exercício do magistério.
Segundo parcela significativa dos depoimentos levantados, a maior carência da escola do rio e da floresta, está na improvisação do professor, um elemento geralmente não titulado, embora tocado da consciência de seu papel de peça importante na melhoria de vida na comunidade. Tal circunstância se comprova na observação do comportamento desses homens e mulheres dedicados ao ensino e seu esforço em oferecer o melhor de sua inteligência e de suas qualidades pessoais, na transmissão do saber aos seus concidadãos.
O maior contingente desses profissionais do ensino, no entanto, localiza-se nas famílias que não tiveram condições de mandar os filhos a centros urbanos mais desenvolvidos e se formar em profissões mais rentáveis de nível superior. A atividade educacional como que se reserva a uma alternativa sem saída. Coincidentemente, em alguns casos, na medida em que assumem a tarefa em sala de aula, essas pessoas vão descobrindo a vocação e se capacitando a exercê-la com dedicação e entusiasmo, demonstrando como exemplo a essa constatação o esforço emprestado ao processo seletivo do Proformar.
A situação do professor improvisado perdura, ainda, conforme se vê no depoimento de uma professora de 45 anos, moradora de uma comunidade do município de Fonte Boa. Começou a lecionar aos 16 anos sem ter concluído o 2.º Grau. Faltavam profissionais qualificados para trabalhar com jovens e adultos e ela teve de enfrentar o desafio.
Felizmente, no trabalho ela foi aperfeiçoando a sua técnica e se especializou nas disciplinas de artes, língua portuguesa e ensino religioso, para turmas de 5.ª e 6.ª séries.
A maioria dos alunos atendidos por essa escola era formada por filhos de pescadores, pequenos agricultores e trabalhadores urbanos como pedreiros e marceneiros. Existiam ainda os filhos de famílias indígenas que vivem da cultura de subsistência. Mas essa escola sofria do grande mal das metodologias adotadas na base de castigos físicos aplicados com frequência.
No entanto, algumas escolas do rio e da floresta assumiram papel relevante, situado acima de sua função linear do ensino do b-a-bá e do dois-e-dois-são-quatro, tal como se faz numa escola fundada em 1956, na cidade de Eirunepé, município banhado pelo rio Juruá.
Há, nessa escola, uma intensa movimentação dos professores no intuito de mobilizar todos os recursos possíveis na animação das atividades curriculares e extracurriculares. O objetivo maior é motivar uma participação mais ativa dos pais de alunos, meta necessária para alcançar um rendimento mais satisfatório no desenvolvimento das atividades didático-pedagógicas. A escola, enfim, foi criada para responder à demanda da população na faixa etária dos 7 aos 14 anos e devido à carência de salas de aula de ensino fundamental no bairro.
Os pais são analfabetos e desempregados, vivem com a ajuda dos programas sociais do governo federal como a então Bolsa Escola.
Faltam no bairro ações de saneamento básico, embora existam poços artesianos que abasteçam a população com água boa. A ocupação dos moradores é irregular, não possuem emprego formal e fixo e 30% sobrevivem dos trabalhos de carpinteiro, pedreiro, agricultura e serviço público estadual e municipal temporário, sem a garantia pessoal dos sistemas previdenciários.
A alimentação do povo baseia-se na carne de boi, de porco, de frango e galinha caipira. Muitos vivem da pesca e da caça de animais silvestres.
A professora que contou essa história afirma que as famílias de baixa renda alimentam-se de peixes devido ao custo mínimo do pescado de grande fartura e de muitas espécies nos lagos e rios do município.
Ela informa que a movimentação das famílias de uma localidade para outra em busca de emprego, leva-as a se fixarem na zona rural em busca de melhores condições de sobrevivência.
Um dado curioso, digno de comentário no depoimento dessa professora, é o fato de a comunidade dispor de alimentos fornecidos pela carne de peixes, que é abundante no local da escola.
A questão é colocada num nível de inferioridade, como se apenas os ricos tivessem condição de alimentar-se de carne de boi, situando em segundo plano o peixe, que seria comida de gente pobre. Sabe-se hoje que a carne de peixes constitui uma das fontes mais nobres de proteínas e, por isso, mais valorizadas em termos pecuniários nos centros desenvolvidos, onde é mais cara do que a carne de boi.
O que se precisa, no caso dessa comunidade, é que os seus moradores assumam a consciência dos valores da sua terra, ganhem status de cidadania ou florestania132, atributos de personalidade só construídos por meio dos processos de mudança de atitudes e de comportamento, propiciados pela educação. A riqueza em verdade está na produção de peixes de que são fartos os rios da Amazônia, onde está implantada essa escola.
Na medida em que os cidadãos tomem consciência dos valores de sua terra, do seu país, estado ou município, do seu rio e da sua floresta, irão ficando, sem dúvida, mais ricos…
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130 GONÇALVES, Carlos Eduardo de Souza (Manaus/AM 1936), educador, professor, foi Vice-Reitor da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
131 Nota de p.ps 9.
132 Florestania, vide nota de p.ps 8.
Continua na próxima edição…
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