Continuação ….
Educação
A escola do rio e da floresta
XI
O nosso processo educacional começou com os Jesuítas desde o descobrimento do Brasil no século XVI, sob o sistema de ideias do humanismo clássico, em mais de dois séculos de metodologia comandada sob a unidade da Ratio Studiorum, com que se fundaram os alicerces da Civilização Brasileira, e, segundo Villaça136 implantando-se no Brasil, nesse período, uma autêntica Idade Média. Mas os Jesuítas já se tinham preocupado com a metodologia de uma educação comprometida com a realidade brasileira, no uso do idioma dos nativos e no respeito às suas crenças, defendendo-lhes os direitos até às últimas consequências.
O Pe. Antônio Vieira, ainda no século XVII, por suas atitudes em defesa desses princípios, sofreu os rescaldos dos preconceitos sobre o homem brasileiro. Movido pelo espírito libertário com que assumiu, em todos os sentidos, os seus atos, foi preso, processado e condenado pelo Tribunal do Santo Ofício, situação gerada, em grande parte, por injunção dos inimigos políticos que se diziam em desacordo, com as ideias abraçadas pelo grande pregador, em defesa das minorias, como
a liberdade do índio brasileiro que se desejava escravizar no Norte, a defesa da causa dos judeus proscritos e o posicionamento contrário à escravidão negra.137
Com a expulsão dos Jesuítas que eram acusados de realizar metodologias educacionais com objetivos na fé, e, em consequência disso ainda conspirarem contra os interesses do reino português, segundo Pombal, carente de uma educação voltada para as necessidades do Estado, implantou-se o sistema feudal das famigeradas aulas régias.
Na idade contemporânea, já no século XX, sob a atmosfera de euforia vivida com o pluralismo ideológico, os debates e práticas educacionais ganharam substancial contribuição, por um sistema que abriu a todos o direito à educação, defendendo o ensino público estatal gratuito, único meio de controlar as desigualdades sociais, movimento de educadores brasileiros conhecido como Escola Nova, liderado pelo professor Anísio Teixeira.
Outro movimento fundamental aos métodos de mudança na educação brasileira sucedeu com o pensamento e a ação do professor Paulo Freire, conhecido mundialmente com o nome de pedagogia crítica, voltado para a educação popular, com que promoveu a escolarização por meio da conscientização política. Afirma ele em uma de suas obras que
estávamos convencidos, e estamos, de que a contribuição a ser trazida pelo educador brasileiro à sua sociedade em “partejamento”, ao lado dos economistas, dos sociólogos, como de todos os especialistas voltados para a melhoria dos seus padrões, haveria de ser a de uma educação crítica e criticizadora (sic).
E prossegue:
De uma educação que tentasse a passagem da transitividade ingênua à transitividade crítica, somente como pode ríamos, ampliando e alargando a capacidade de captar os desafios do tempo, colocar o homem brasileiro em condições de resistir aos poderes da emocionalidade da própria transição.
E conclui:
Armá-lo contra a força dos irracionalismos, de que era presa fácil, na emersão que fazia, em posição transitivante (sic) ingênua.138
Desde à implantação do humanismo clássico dos Jesuítas, essas ideias influíram na formação do pensamento brasileiro sobre a educação e estão latentes nas atitudes intelectuais dos professores-alunos do Proformar. É dessas ideias, sem dúvida, que pode estar nascendo uma visão nova para a educação na Amazônia, circunstância que me faz lembrar a elaboração das diretrizes reunidas na Ratio Studiorum dos Jesuítas. O documento, proposto em 1552 só foi publicado em 1599, no intervalo de 47 anos, período em que foi submetido a uma ampla discussão entre os educadores da Companhia, já ilustrados com a experiência do contato com os povos do novo mundo, inclusive o Brasil, segundo se cuida em capítulo próprio deste livro. Não foi, portanto um documento imposto de cima para baixo pelas poderosas mãos de Santo Inácio, como se poderia imaginar.
O debate por novas diretrizes à educação na Amazônia, como se vê, já começou no seio da jovem UEA – Universidade do Estado do Ama zonas, entre os professores de posse do acervo de experiências adquirido ao longo da transmissão das aulas, e dos professores-alunos do Proformar, por meio da memória e dos diagnósticos levantados e expressos, não sem uma postura crítica, em suas dissertações de conclusão de curso. Enfim será essa uma oportunidade singular para a elaboração de uma política de ensino verdadeiramente comprometida com a realidade amazônica, numa visão nova como a manifestada por uma professora-aluna de 40 anos que concluiu sobre a necessidade de um trabalho diário, em busca de uma educação que forme sujeitos pensantes, críticos, responsáveis e conscientes, capazes de atuar e modificar o meio em que vivem.
Na abordagem de outra professora que idealiza uma educação construída no processo de abertura de novos horizontes, mas sem levar o homem a abandonar a sua terra, ao contrário daquele processo expulsivo diagnosticado pelo governador José Lindoso, numa escola plantada às margens do rio Juruá e referido também às páginas tantas deste livro.
Em grande parte das vezes, no interior da Amazônia, a profissão de professor é abraçada por falta de alternativa de outra coisa a fazer na vida.
Sem saída a outro meio de sobrevivência, as pessoas aceitam lecionar, antes mesmo de se encontrarem preparadas para o ofício. O curioso é que muitos desses professores vão descobrindo, no exercício do magistério, a própria vocação. É que os apelos da realidade são irresistíveis como se nota na mais constante observação dos professores-alunos na prática do seu ministério. As populações amazônicas em regra vivem de atividades informais de pedreiros, carpinteiros e agricultores, numa situação às vezes de extrema pobreza, pendurados na ajuda dos programas assistenciais do governo como a Bolsa Escola, Bolsa Família, Vale Gás, Peti, etc..
A missão do professor, no entanto, ao lado das tarefas de trans missão do conhecimento é agitar a consciência de que esses programas não são permanentes, e se o fossem correriam o risco de se converte rem em cediço paternalismo, posto constituírem em verdade subsídios apenas de apoio à conquista de uma autonomia financeira necessária ao bem-estar da família e da sociedade. O professor se transforma, então, ao assumir esse jeito de ser, num líder, numa perspectiva de realização pessoal que não há dinheiro algum que pague.
Observa-se, ainda, no levantamento feito pelos professores-alunos do Proformar, a existência de uma escola eivada do preconceito contra os valores da terra, como a precedência da carne de boi sobre a carne de peixe como fonte de conteúdo alimentar nobre, o ensino acadêmico ultrapassado e conservador, ministrado por personalidades sem compromisso com a realidade da terra. A crítica a esse quadro despertou os professores à conquista de mudança em seu modo de ensinar e aprender, o anseio de assumir novos horizontes sem abandonar a terra. A assumir o conceito de que o Proformar não representa a cura, mas o início de um tratamento, e a maneira como se recebe esse tratamento é que pode fazer a diferença.
Nos depoimentos os professores-alunos observaram que o Pro formar apresentou conteúdos de forma criativa e inovadora, construindo no aluno a necessidade de ser multiplicador, num ambiente de prazer, sem a rabugice da velha escola. Foi observado que o ensino anterior não se comprometia com o dia a dia da coletividade. Diferente de uma nova postura didática, quando se percebe que a vocação é despertada durante a prática do magistério, em contato com a carência dos alunos.
Quem poderia afirmar que o homem primitivo da Amazônia, com uma experiência de vida e uma crença conquistada há milênios na floresta e nos rios, era inferior à também multissecular cultura europeia então – 150 ELSON FARIAS sacralizada pelo Cristianismo? Não era inferior nem superior, eram duas formas de vida análogas, consideradas as diferenças culturais, uns ensimesmados e seguros de seus valores espirituais permanentes, e outros voltados para fora e abertos à paisagem exterior. A língua e a fala eram diferentes. O europeu já tinha aprendido a escrita e inventado o livro, popularizado a partir do século XV com a descoberta da imprensa. Já tinha aprendido a grafar sinais com que expressava as suas indagações matemáticas e as notas musicais para dizer de sua emoção por meio da música escrita. O homem primitivo da Amazônia não conhecia nada disso. A língua, o pensamento matemático e a música preexistiam-lhe na prática e na memória e eram transmitidos através dos livros vivos encarnados por seus avôs, aqueles velhos que exerciam, nas esferas de poder desses povos, a autoridade de autênticos luminares.
Havia, no entanto, dois fatores fundamentais que os aproximavam fortemente: o selo indelével da identidade humana e a concepção de um Deus único. Ambos os povos, os daqui e os de lá, já eram monoteístas e com uma intensa vida interior. A diferença estava em que, enquanto o Cristianismo, no processo de expansão no Ocidente, foi-se comprometendo com a espada dos reis aliada à cruz, embora algumas vezes tenha o império tentado castigar a fé, a vida espiritual do amazônida não se misturava com os ingredientes do poder temporal, voltado integralmente para a vida contemplativa na conquista do eterno, num animismo que sofre, ainda hoje, alterações em seus ritos de acordo com o comportamento e as atitudes das diversas etnias, mas na essência obedecendo a princípios que se irmanam. Nos seus fundamentos, enfim, eram iguais entre si o europeu e o ameríndio.139
Mas ao chegar à Amazônia, tocado pela vã cobiça do mercantilismo, o europeu, empunhando arcabuzes e espadas, contra o arco e a flecha e os espetos de pau dos ameríndios, foi demolindo tudo, depredando a vida do primeiro homem da região. Precisou-se de algum tempo, no mínimo de quatro séculos para firmar o armistício entre esses dois povos. Tudo aconteceu como num temporal, o europeu a demolir as casas do ameríndio, o vestuário, os costumes e as crenças, no esforço de lhe impor a sua arquitetura, as suas vestimentas e a sua fé.
Nesse processo de aproximação alguns sábios e abnegados etnólogos realizaram o levantamento da cultura ameríndia, com elementos que passaram a exercer profunda influência no pensamento criador dos escritores e artistas brasileiros, desde o Romantismo com a poesia de Gonçalves Dias e o romance de José de Alencar, e a música de Carlos Gomes; ao Modernismo com a prosa de ficção de Mário de Andrade, a poesia de Raul Bopp e a música de Villa-Lobos.
De outra parte os jovens índios se decidiram ingressar na Universidade, de onde eles estão saindo pedagogos, antropólogos, filósofos, políticos, escritores, mas sem renunciar às origens e o sinal de sua cultura, num processo que finalmente estará inaugurando uma nova metodologia educacional, já observada nos atos do Proformar com sistemas dirigidos a clientela oriunda das diversas etnias.
Submetida a questão a um crivo crítico todos poderão beneficiar–se, os moradores do asfalto e os habitantes da floresta. A soma das experiências de vida, do pragmatismo cartesiano aplicado nas tecnologias e o desígnio contemplativo, enriquecerão o conceito de mundo e a melhoria vivencial de todos, numa escola prazerosa e agradável, tal como é aprender conversando com os velhos à sombra das árvores na floresta…
Um jovem aluno do Proformar vindo da etnia Baré estava em busca de promoção humana e melhoria de vida, mas tinha medo da es cola. Sua ideia é de que aquele era um lugar de tortura e ele desejava um ambiente alegre, talvez movido pela memória profunda herdada dos seus ancestrais, que transmitiam o conhecimento às crianças e jovens, no diálogo fraterno, à sombra das árvores, nos belos dias de sol. Pois havia testemunhado a uma cena desagradável ao assistir a uma criança sendo obrigada a ficar na escola onde não desejava entrar. Vendo aquilo ele também chorou. É certo que na sua cultura, na casa dos índios, as crianças aprendem sem ser obrigadas a nada. Estudar não é uma obrigação, mas uma alegria, uma atitude prazerosa oferecida pela simpatia dos velhos que lhes falam dos fenômenos da natureza, das chuvas, dos ventos, da escuridão das noites, e da história do seu povo.
Os professores-aluno do Proformar estão aí mesmo para com provar de que em verdade os mestres amazônicos são bem a encarnação das sumaumeiras das várzeas com suas largas e amplas sapopemas. Os educadores são os guias e sinaleiros dos navegadores dos rios e dos caminhantes da floresta.
___________________
136 Op. cit. pg. 31.
137 MOISÉS, Massaud (…) e José Paulo Paes (…), Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, Editora
ultrix, 3.ª Edição. São Paulo 1987.
138 Idem pg. 35, às páginas 86..
139 LÉVI-STRAUSS, Claude (Bruxelas 1908 – Paris 2009), ideias retomadas pelo célebre antropólogo
francês que esteve no Brasil entre 1935 a 1939, quando empreendeu viagem de estudo pelo interior
do país, resultando-lhe no livro clássico Tristes Trópicos, em que se ocupa, entre outros assuntos, da
organização dos povos indígenas do Brasil central.
Continua na próxima edição….
Views: 3