Manaus, 4 de julho de 2024

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

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Continuação ….

Um poeta enigmático141

Quando o Eu de Augusto dos Anjos foi lançado, em 1912, dominava o ambiente literário brasileiro a tríade parnasiana constituída por Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia. Também consagrados estavam os simbolistas Cruz e Souza, com Broquéis, lançado em 1893, e Alphonsus de Guimaraens, com o Septenário das dores de Nossa Senhora, editado em 1899. Havia um bom convívio entre parnasianos e simbolistas, já pela aproximação do comportamento estético, já pela contemporaneidade na visão de mundo e na vivência social, num país ainda em fase de consolidação das instituições republicanas, pois se vivia a República Velha na segunda década.

Distinguiam-se apenas no modo de formular o seu canto.

Diz Bilac em sua “Profissão de Fé”:

Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto-relevo
Faz de uma flor.

Por seu turno Cruz e Souza proclama em “Arte”:

Enche de estranhas vibrações sonoras
a tua Estrofe, majestosamente…
Põe nela todo o
incêndio das auroras
para torná-la emocional e ardente.

Segundo bem se observa desses versos, se os parnasianos se amarravam no visual, os simbolistas anelavam pelo som, eles todos sonhando com a

transcendência da flor e do incêndio das auroras.

Nessa atmosfera de poesia solene e crivada de preciosismos, aparece como um corpo estranho Augusto dos Anjos. Ele elegeu na linguagem o tom coloquial da fala corrente, sem receio de resvalar no prosaico, até quando lançava mão de termos científicos. O tom cientificista se manifesta logo revelado no Monólogo de uma sombra, primeiro poema do livro:

Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras…
Pólipo de recônditas reentrâncias,

O prosaísmo aparente observa-se no soneto dedicado a seu pai, que começa assim:

Madrugada de Treze de Janeiro.
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.

II

O mundo das letras desabou sobre ele. Diziam os entendidos que aquilo poderia ser tudo, menos poesia. Estigma imposto pelo pensamento oficial da época, impedindo que Augusto dos Anjos tomasse o bonde da consagração crítica, em compensação permitindo que o povo o celebrasse e lhe conferisse a glória de um dos poetas brasileiros mais populares.

O povo, também, inventou muita coisa exótica em torno de sua vida. E foi por meio de um homem do povo, na cidade amazonense de Parintins, que tive o meu primeiro contacto com a sua poesia. Exatamente nas passagens dos Versos íntimos:

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
(…)

As lendas que contavam sobre Augusto dos Anjos, eram as mais escabrosas. Diziam que ele, o poeta da asa de corvos carniceiros, morrera tuberculoso e quando descia as escadas da casa editora que haveria de lançar o seu único livro, sofrera um ataque de hemoptise e, com o próprio sangue, expelido na crise, conseguira escrever apenas a palavra eu, que seria o nome do livro, expirando em seguida. Vejam que invenção tétrica. Mas tudo isso ficava bem e era até aceito a partir da imagem que se construiu, entre pessoas simples, do poeta da Ponte Buarque de Macedo, no Recife, indo em direção à casa do Agra, estabelecimento de um agente funerário. O certo é que Augusto dos Anjos era o jogral popular das palavras esquisitas, de tom cientificista, que o leitor não entendia, mas amava. Os peritos da arte poética não aceitavam porque não viam beleza em versos como este: Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra (…).

III

Enfim, a verdade biográfica do poeta, em síntese, é que ele nasceu no engenho Pau d’Arco, na Paraíba, a 20 de abril de 1884, com o nome de Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos; escreve em jornais, mostrando tendências para a polêmica e a sátira; compõe poesia desde muito jovem, e, por volta dos 16 anos, vê publicado o seu primeiro soneto na grande imprensa do seu Estado natal; faz o curso de Direito na Faculdade de Direito do Recife, com várias interrupções, começando em 1902 e bacharelando-se em 1907; exerce o magistério e a advocacia na Paraíba; casa-se, também na Paraíba, em 4 de junho de 1910, com a jovem Ester, educada nos moldes das sinhazinhas da época, de boas prendas, sem dispensar o indefectível domínio do piano; muda-se para o Rio de Janeiro em setembro desse mesmo ano; experimenta dificuldades financeiras na então capital da República; o magistério ajuda-o a resolver os problemas de subsistência, ensinando Geografia, Corografia e Cosmografia, no Ginásio Nacional, anteriormente, no tempo do Império, chamado de D. Pedro II, nome restaurado mais tarde; nasce-lhe uma filha que recebeu o nome de Glória dos Anjos, em 23 de novembro de 1911; com o crescimento da família o poeta é levado a aceitar alunos em aulas particulares, inclusive no ensino do Francês e do Latim, dando especial atenção aos preparatórios do curso de Direito; em 12 de julho de 1913, nasce-lhe o segundo filho que recebe o nome de Guilherme Augusto, em homenagem à sua antiga babá Guilhermina, celebrada em um dos seus sonetos; em julho de 1914 é nomeado Diretor do Grupo Escolar de Leopoldina, cidade mineira ligada ao Rio por via férrea; às 4 horas da madrugada, do dia 12 de novembro do mesmo ano, na cidade de Leopoldina, morre o poeta, aos 30 anos, de “uma congestão pulmonar, que degenerou em pneumonia”, segundo informa a viúva Ester, em carta à sua mãe.142

O escândalo que sucedeu ao lançamento de seu único livro trouxe-lhe de súbito a notoriedade. Mas não se pode afirmar que o livro tenha sido um sucesso de crítica. Os leitores da obra percebiam que aqueles versos possuíam um estranho conteúdo. Outros não lhe conseguiam alcançar o sentido mais real.

Quando o poeta foi para Leopoldina, levou na bagagem alguns exemplares do livro que distribuiu entre os professores da cidade. Havia um deles que reunia em casa os colegas, durante as noites modorrentas para ler os poemas do Eu e despregar-se em largas gargalhadas. Quando passavam pela casa e as pessoas se perguntavam sobre a algazarra que se ouvia dali, respondiam-lhes: é que estão lendo os poemas do professor Augusto dos Anjos.

IV

Mas o poeta, ao longo do tempo, na medida em que sumia das colunas literárias, cada vez mais se instalava no gosto e no repertório do povo. Primeiro com risos e depois com lágrimas, ao perceber naqueles versos os sofrimentos de um homem. Sabe-se, ainda, que, raramente, um sucesso de livraria possui o correspondente sucesso de crítica. Quando a crítica consagra o povo não lê; quando este aprecia, aquela torce o nariz como se ameaçada por matéria imprestável.

Possuo exemplar de uma vigésima edição do Eu e outras poesias, de uma tal editora Bedeschi, cujos responsáveis não tiveram o cuidado sequer de indicar o ano da tiragem. Mas se trata de uma edição antiga, pois a possuo há mais de 50 anos. O livreiro Carlos Ribeiro revelou, em um simpósio sobre editoração e literatura, que a sua casa, a Editora São José, lançava todo ano uma nova edição dos poemas de Augusto dos Anjos. Era, por assim dizer, o carro chefe da empresa. A que possuo traz um ensaio de Antônio Torres e um elogio do bardo subscrito por seu maior divulgador e biógrafo, Orris Soares. Possuo, ainda, do poeta, Toda a Poesia, com um estudo crítico de Ferreira Gullar e selo da Paz e Terra, que rompe, no meu entender, o crepe de silêncio que os intelectuais teceram sobre a obra do vaticinador de A árvore da serra. É a primeira vez que um estudioso de nível volta a se ocupar da poesia de Augusto dos Anjos, desde 1914, hoje que se vive o alvorecer de um novo século, quando o imbatível panfletário Antônio Torres dedicou-lhe um ensaio lúcido e sério. O poeta foi como que redescoberto, porque a nuvem de abandono a que fora relegado já se esvaía desde o embate, nove anos após seu desaparecimento, do movimento modernista que começou a perceber, no demiurgo de As cismas do destino, o precursor dos novos credos estéticos, defendidos então.

V

Augusto dos Anjos trouxe o cotidiano e o integrou ao poema, restaurou o mistério poético da palavra tida por prosaica, sublimou o feio. Tal postura, que determina a linha medular de sua obra, não o inibia em compor versos como os que não me contenho em transcrever, na totalidade do soneto, pelo sublime que encerram:

VANDALISMO

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,

Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas

Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais

Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos…
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,

No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos.

Apesar de tudo, valeu a redescoberta deste poeta obscuro, de existência infeliz e torturada, marcado pela falência da vida rural brasileira, esmagado pelas sombras dos preconceitos que comandavam o comportamento dos jovens aristocratas daquele país de senhores e escravos, de engenhos e casas-grandes, mas tudo em processo de decadência, lembrança de um tempo extinto, com seus fantasmas, suas angústias e sua revolta.

***

Morrendo aos trinta anos, não teve tempo o poeta de aparar as arestas de sua oficina permanentemente irritada. Todos os estudiosos de sua poesia são unânimes em afirmar esta verdade insofismável, mas também ele não carecia de mais idade para dizer o que ficou dito. Não teve tempo para treinar-se na escrita da boa prosa. Sua linguagem natural era o verso, a poesia, explodindo em estado primitivo, com a violência do instinto informado por bem fundamentada erudição, da natureza rude e áspera que o cercava e lhe alimentou a existência.

Na Língua Portuguesa Augusto dos Anjos não tem similar. Aproxima-se do português Cesário Verde, no tratamento do prosaico. Mas ninguém, no domínio de aparelhamento vocabular igual ao seu, conseguiu atingir o maravilhoso. Por essas e outras é que não se pode negar que em Augusto dos Anjos o Brasil possui um poeta de gênio.

________________________

141 Ensaio publicado na abertura da edição de Eu e outros poemas, de Augusto dos Anjos, feita pela

Valer Editora, em 2006.

142 Dados biográficos levantados do livro Poesia e Vida de Augusto dos Anjos, de R. Magalhães

Júnior, segunda edição da Editora Civilização Brasileira/MEC – 1978.

Continua na próxima edição….

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