Continuação ….
Literatura e
Meio Ambiente
Contemplação e
Compromisso
Devo começar minha participação neste simpósio formulando um conceito de literatura, embora traçado numa síntese perigosa, face o tempo de 20 minutos que me foi reservado para falar neste encontro. Em princípio literatura é o resultado de todo trabalho exercido no terreno das letras. A literatura, portanto, pode ser considerada como a reunião dos compêndios de orientação técnica e científica, os relatórios e diários de viagens, os textos de dissertações e teses acadêmicas, enfim, tudo o que é objeto de indagação intelectual e, de uma forma ou de outra, produto da atividade criadora. Daí ser comum ouvirem-se referências, entre os profissionais em suas várias categorias, a literatura médica, literatura filosófica, literatura forense.
Mas, o de que vamos tratar neste momento é da literatura como obra de arte, a literatura que se manifesta na prosa e no verso como instrumento de expressão e que se fundamenta nos mistérios da poesia. E o que é poesia? A poesia é uma forma de conhecimento do mundo buscada através das emoções, as emoções dos produtores de arte, as emoções dos consumidores de arte. A poesia está, deste modo, presente nas origens de todas as configurações artísticas, na música, na dança, nas artes plásticas, etc. e, também, na literatura. Para melhor conhecimento da matéria os teóricos dividiram a questão em dois amplos setores, a literatura em prosa e a literatura em verso. No gênero prosa, em Língua Portuguesa, foram definindo-se as formas consagradas da prosa de ficção, o conto, a novela, o romance e, no gênero verso, sedimentaram-se as diversas formas de poemas, como a balada, a canção, o soneto, etc.
Eis a síntese pretendida no conceito de literatura que apresento ao exame dos senhores.
Quanto às responsabilidades na proteção do meio ambiente, foi preciso que o homem realizasse um exame retrospectivo de sua árdua caminhada ao longo da história para tomar consciência da sua participação no processo de defesa da vida na terra. Que tomasse consciência de que foi a ação predatória das atividades humanas que provocou a desertificação de ecossistemas frágeis, daí surgindo grandes desertos na África, na Austrália, na Ásia, na América do Norte, entre os quais os mais famosos são o Saara e o deserto Australiano.
Para examinarmos o assunto num contexto histórico mais próximo de nós, nos dois mil anos da Era Cristã, durante o período de formação da Cultura Ocidental, observam-se duas posturas do homem em relação ao meio ambiente, embora informado pela mesma ideologia, a ideologia fundamentada na mensagem dos Evangelhos. Nos países do Sul da Europa houve como que um desleixo quanto à proteção do meio ambiente, visto os homens aí estarem mais preocupados em salvar a alma, pondo em segundo plano os valores materiais, desenvolvendo verdadeira nostalgia pela vida eterna. Enquanto que no Norte, principalmente a partir da Reforma Luterana, a idéia vigente foi a de que para se ganhar o céu era preciso que antes se ganhasse a terra. Por isso os cidadãos se preocuparam com as melhores condições da casa do homem, conservando e protegendo o meio ambiente.
Embora produto da mesma fonte de conduta, estes são dois comportamentos distintos e que nos fornecem um claro exemplo de outro objetivo da intervenção a que fui chamado fazer neste encontro: os temas da contemplação e do compromisso.
Exemplo de contemplação é a atitude de São Francisco. Já no século XIII ele intuía sobre a comunhão do homem com o conjunto dos seres vivos na terra. E saiu cantando pelos caminhos a conversar com os pássaros e os peixes, convertendo-se amigo do coelho selvagem e apaziguando a sanha do lobo faminto que ameaçava a tranquilidade dos habitantes de Gubbio, na Itália. Virtudes que elevaram o Santo de Assis à condição de Padroeiro do Meio Ambiente.
Exemplo de compromisso foram as atitudes do povo do Norte europeu onde primeiro se cogitou da necessidade de se implantar sistemas de proteção da natureza, elegendo como prioridade essencial o bem estar do meio ambiente. Inquietação que não resultou somente em teoria, mas em providências que se concretizaram na montagem de indústria pesada no processamento dos detritos resultantes das atividades humanas.
Esses dois exemplos mostram modos de ser que enfim se completam, porque o conceito de compromisso repousa nas atitudes de contemplação.
Os compromissos da literatura com o meio ambiente estão nas origens da história da cultura do ponto de vista da civilização ocidental. Virgílio, que é considerado o Pai do Ocidente, numa obra ao mesmo tempo lírica e didática, as Geórgicas, celebrou os benefícios da vida no campo, detendo-se em descrever o funcionamento de uma colméia, perfeitamente integrado nos princípios de proteção da natureza.
Olhando a questão do ângulo da história do Amazonas, vamos verificar que não foi nada positivo o recontro do homem civilizado com o índio, o índio que era como que um elemento profundamente comprometido com o destino do meio ambiente. Nos procedimentos de colonização esse homem, o índio, que já vivia na região há mais de 40 mil anos, na hipótese levantada pela arqueóloga americana Betty Meggers, foi dizimado com fervorosa iniquidade. É um fato da nossa história que ao mesmo tempo demonstra o primeiro exemplo da falta de sensibilidade do colonizador europeu, por sinal oriundo do Sul da Europa, com a proteção do meio ambiente.
Depois veio a atividade extrativista que atingiu o seu auge nas últimas décadas do Século XIX, resultando no surto de progresso alcançado com a economia da borracha, ciclo de que se beneficiou a cidade de Manaus.
A literatura praticada no Amazonas, deste modo, não ficou desligada nem da paisagem, nem do homem da região. Conjuntura manifestada muitas vezes numa postura contemplativa, sem um compromisso explícito com o destino do mundo, como se observa na poesia de Tenreiro Aranha, o primeiro poeta amazonense que, em suas odes e idílios canta os rios como se fossem acidentes geográficos da Hélade clássica; Paulino de Brito que celebra o Rio Negro e o flagra Sob o dossel daquele céu ridente/ dos climas do equador; de Raimundo Monteiro do Canto Real do Madeira, em que o poeta canta o rio que banha Humaitá, a cidade do seu nascimento; e Álvaro Maia que no soneto Sumaumeira revela como que uma verdadeira comunhão com a paisagem, como se vê em seguida:
Venho adorar-te à sombra da folhagem, olhando o nascente, ao vento ondeando a fronde… E soltas o farfalho, que responde à voz das coisas, num bramir selvagem…
Teu verde-branco, verde-azul, aonde a passarada canta em vassalagem, vem procurar ventura na estiagem, que doura as copas e a fartura esconde.
Ó sumaumeira patrícia! Infiltra-me na fronte, quando o corpo volver ao transformismo, as riquezas do ar, as bênção do horizonte.
Leva minha alma ao céu, que bem resume, e espalha-me, em piedoso romantismo, na luz, no pendão e no perfume…
Na prosa encontram-se obras como os clássicos À Margem da História, de Euclides da Cunha, o Inferno Verde, de Alberto Rangel e Terra Imatura, de Alfredo Ladislau. Todos eles situados formalmente nas fronteiras do ensaio e do poema em prosa, mas todos voltados para os temas do meio ambiente, muitas vezes numa atitude contemplativa, ainda.
Nesse panorama faço questão de salientar a presença do romance Coronel de Barranco, do médico e escritor amazonense Cláudio de Araújo Lima. É uma obra realizada com os ingredientes de extrema consciência da questão social, despojada, portanto, o quanto possível, do comportamento contemplativo em regra adotado pelos nossos escritores. No livro, Cláudio de Araújo Lima traça o perfil de dois tipos de seringalistas, o empreendedor educado e o selvagem predador. O primeiro construía no seringal uma bela casa, confortável e equipada com utensílios como o piano importado, porque suas filhas em geral sabiam lidar com esse nobre instrumento, geralmente educadas em centros urbanos desenvolvidos e com viagens a Europa. O outro, nem casa construía, armava um enorme barracão onde armazenava o estoque de mantimentos com que explorava os seringueiros e ali mesmo ia amontoando as pélas de borracha produto do trabalho daqueles homens. Este seringalista, terminado o fábrico dos seringais, vinha para Manaus negociar o produto e gastar o dinheiro em farras homéricas nas movimentadas casas noturnas da cidade. Era o proverbial personagem tantas vezes lembrado até com alguns indícios de lenda, aquele homem cheio de dinheiro ganho com tanta facilidade que se dava ao luxo de acender o charuto com notas de alto valor. Um autêntico predador, portanto.
O Coronel de Barranco é um romance bem escrito e marcado pelo compromisso de transformar a realidade para melhor. Mas este desempenho se observa mais assiduamente entre os autores contemporâneos. Na poesia, para citar apenas um caso, temos o exemplo claro de Alcides Werck, um poeta que se despojou da linguagem hermética tão do agrado de determinadas correntes do modernismo, e praticou um discurso direto e límpido em defesa do meio ambiente. Ele elabora uma linguagem simples e emocionada como nos seguintes versos Da noite do rio:
Preciso acordar o rio
que está cansado de viagens
para ver se me alivio
da morte que trago em mim (…)
É uma tomada de consciência que se observa no trabalho dos novíssimos poetas de Manaus, como tive a oportunidade de assistir num encontro deles no bairro da Alvorada, aqui em Manaus, onde revelavam a preocupação da sociedade com a qualidade da água servida ao nosso povo, os peixes adquiridos nas feiras, os legumes e as frutas.
Para encerrar desejo deixar aqui duas visões sobre o destino do homem como elemento da natureza, da paisagem, do cosmos.
Primeiro é a visão da arqueóloga americana Betty Meggers que diz o seguinte:
(…) os povos primitivos consideram-se parte da natureza, nem superiores nem inferiores às ostras criaturas, se bem que sejam, frequentemente, superiores a outros grupos humanos. Acreditam que as almas dos seres humanos sejam capazes de penetrar nos corpos de animais e vice-versa e que os espíritos de animais possam exercer um importante controle sobre o destino dos homens.
Outra é a visão dos ecologistas Frank Darling e Raymond F. Desmond, citados por Djalma Batista em seu livro fundamental O Complexo da Amazônia, sobre o funcionamento de um ecossistema, como segue:
A energia penetra sob a forma de radiação solar, sendo captada pelos organismos produtores, geralmente as plantas verdes, que a armazenam como energia química (alimento). Esta energia-alimento fica então disponível aos organismos consumidores, incluindo os animais que comem as plantas verdes. A energia-alimento pode passar por mais de um elo de consumidores, através de herbívoros, que comem as plantas, de carnívoros que comem os animais menores, segundo uma série chamada “cadeia alimentar…” O ecossistema age como um reservatório de energia depositada no corpo de animais e nas plantas, e atua no sentido de deter o processo de degradação da energia.
Não esquecer que o homem participa desse processo.
Por estas duas razões, uma vista sob os olhos misteriosos da lenda, e outra, sob as lentes de largo alcance do cartesianismo científico, pode-se afirmar que somos irmãos dos pássaros, das árvores, dos peixes. E que por isso, se não houvesse outra razão de natureza política que impulsionasse os nossos atos e os nossos gestos, bastaria essa condição para que tomássemos consciência do compromisso como responsabilidade no processo de defesa e conservação do meio ambiente.
Continua na próxima edição….
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