Manaus, 7 de setembro de 2024

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

Compartilhe nas redes:

Continuação ….

Luiz Bacellar

Nada mais intenso para mim oferecer um depoimento em memória do nobre amigo Luiz Bacellar, visto ter convivido com o mestre de Quatro Movimentos desde meados dos anos cinquenta do século passado, quando ao chegar do interior da Amazônia a Manaus, integrei-me ao ambiente intelectual da cidade. Foi ele a ponte que me conduziu ao movimento de renovação das letras aglutinado no Clube da Madrugada. Percebi que no grupo ele era uma espécie de orientador, líder de ideias, um veiculador de novas descobertas formais e práticas artísticas. Conhecia tudo. Não só poesia e literatura. Era versado na história da cultura e suas tendências. Falava de arte e de artistas, escolas e convergências estéticas, na música, nas artes plásticas, na dramaturga, na dança e no cinema. Indagava sobre diversas áreas da ciência, em especial das ciências sociais, a antropologia da qual realizara curso orientado por Darcy Ribeiro, a sociologia e a política. Leitor incansável passou os seus 84 anos de vida lendo, da Enciclopédia Britânica, no original em inglês, às histórias em quadrinhos das páginas dos jornais diários. Nada lhe passava impune ao crivo do espírito. Nem nos interesses do dia a dia e da boa convivência entre os amigos. Ao se cuidar de comida, lá vinha ele com uma receita original, logo aceita e elogiada por quem a experimentasse. Algumas de suas invenções culinárias constam de cardápios de casas de repasto da cidade. Conhecia vinhos como gente grande e como gente grande os degustava. Sua atividade essencial concentrava-se na poesia. Enfarava-o a vida prática. Confessou-me várias vezes ter exercido o magistério de segundo grau no Colégio Estadual do Amazonas e a profissão de revisor de texto em diversas oficinas de jornais de Manaus e na Imprensa Oficial do Estado.

Mas poucas vezes testemunhei o poeta no exercício de outros afazeres que não a literatura. Sua vida era a poesia, a profissão de poeta, numa atitude temerária face à rudeza do mundo que o cercava. Mesmo assim não lhe é numerosa a produção, reunida toda ela num volume de 280 páginas (Quarteto, Valer, Manaus, 1998), completada com a relevante fortuna crítica levantada e enxertada no volume. Lançadas, cedo suas coletâneas de poemas se esgotavam no mercado. Logo promovia novas edições. No preparo do texto dessas novas tiragens mexia num verso aqui e ali, na titulagem das séries de poemas e na distribuição das estrofes. Refugava peças antigas e mais tarde as recuperava, caçava dedicatórias e inaugurava novas, de acordo com a tendência de suas relações de amizade ao longo do convívio. Tanto movimentava os seus textos que, certa vez reclamei-lhe do trabalho que haveria de dar aos seus exegetas no futuro. Ele então me lançava um olhar ao mesmo tempo sardônico e maroto. Mas o que o tirava do sério era o desrespeito à sua obra. Não foram raras as vezes que se rebelou contra o uso não autorizado de seus poemas. Certa feita reclamou na justiça a recuperação de seus direitos autorais e foi reembolsado pelos valores reclamados. Tinha profunda consciência profissional da atividade literária. Enorme conceito pela designação de poeta. Só parecia áspero aos desconhecidos e néscios. Para algum desavisado que o chamasse de poeta, em tom pilhérico, ele expedia um cartão tipo de visita, já impresso com humor desaforado para esse fim, e o entregava ao peralvilho com um palavrão daquele tamanho… Levou vida simples, austera e proba. Quando mais jovem gostava de ficar com amigos pela madrugada a fora a bom conversar sobre as coisas que mais apreciava, literatura e arte. Dormia pela manhã. Mais maduro recolhia-se em casa à noite para descansar e dormir. Cedo estava na rua, nas livrarias, na casa e nos escritórios de amigos, ou nos bem acolhedores lugares de comida onde almoçava. Assistia a todos os filmes em circuito nos cinemas. Era assíduo frequentador de shoppings onde se encontrava com amigos dedicados. Ingressou na Academia por insistência dos companheiros do Clube da Madrugada já assumidos no Silogeu amazonense. Percebi que se sentia honrado com a condição de membro efetivo da Casa de Péricles Moraes, mas não gostava de sentar-se nas poltronas reservadas aos Acadêmicos. Tinha dessas idiossincrasias que incomodavam o bom vezo dos seus pares. Do ponto de vista formal arrisco-me a dizer que sua poesia herdara a luz e o som do simbolismo, embora vivido com os pés e os olhos plantados no mundo de hoje. É uma poesia beneficiada pelas virtudes desse belo período das letras universais. Habitavam-lhe o universo interior, entre figuras exponenciais em todas as áreas do pensamento e da criação artística, poetas da mesma família espiritual de um Dante, Hoelderlin, William Blake, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud, Antônio Nobre, Eugênio de Castro, Fernando Pessoa, Camilo Peçanha, Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Souza, Garcia Lorca, Jorge de Lima, Jonas da Silva, Maranhão Sobrinho e Américo Antony. Nos domínios da linguagem sobrepujou a todas as formas e os metros do verso em Língua Portuguesa. No meio literário de Manaus foi o introdutor do haicai, forma de tradição japonesa. Escreveu poemas em francês e inglês. Embora cioso da obrigação de divulgar o seu trabalho, só viu editado Frauta de Barro, seu livro de estréia, aos 35 anos de idade. É que essa coletânea de poemas, já consagrada por premiação nacional, esperou 4 anos para vir a luz com o selo da Livraria São José, do Rio de Janeiro, em 1963.

Em Frauta de Barro, prêmio de poesia Olavo Bilac, conferido pela então Prefeitura do Distrito Federal, ainda no Rio, em 1959, se ascendem os temas essenciais e mais constantes de sua poética, aspectos críticos sobre a vida urbana de Manaus e questões de ordem existencial e de conquistas do espírito. Conta, logo de início, que em menino achei um dia/ bem no fundo de um surrão/ um frio tubo de argila/ e fui feliz desde então. Em Sol de Feira, de 1973, seu segundo livro, também laureado, agora com o Prêmio de Poesia do Estado do Amazonas, em 1968, realiza a dissecação lírica de frutos da Amazônia, numa obra exemplar pela unidade estética e o equilíbrio de fatura formal. Lê-se o livro com todos os sentidos a flor da pele, o paladar, o tato, a visão e os ouvidos. Não faltam ao longo desse primor de construção verbal miríades de metáforas espontâneas, como se fosse assim tão simples engendrar tais figuras de linguagem. O leitor vai, nesse texto, de surpresa em surpresa, sem jamais correr o risco de tropeçar num verso banal ou prosaico, ou que revele o vício de uma forçada de mão. As frutas se convertem em pomos femininos. O poeta faz vibrar todas as escalas da metáfora dos pomos. Do ardo mamilo/ de cunhantã (sapoti) e teta amorosa/ de adolescente (abiu), ao qual mama fria/ de bugra avó (jenipapo). Como se vê, no livro predomina, ao lado de uns poucos versos como os da introdução, vazados em redondilhas maiores, o verso tetrassilábico, curto e de ritmo sincopado, cadência popular, mas convertidos em peças de raro requinte lírico. São rondeis constituídos por duas estrofes, uma oitava e uma sextilha. Mostram-se como autênticas miniaturas muito ao gosto de Luiz Bacellar, como enfim realizou em seus haicais reunidos em Pétalas do Crisântemo, mínimos poemas de três versos concentradores da subjetividade de um surto de sugestões, geralmente provocado pelos elementos da natureza, as mutações do tempo, a renovação da vida e a contemplação dos seus meios. Em português o haicai fixou-se expressado nos três versos compostos de dois pentassílabos ou redondilhas menores, entremeado de um heptassílabo ou redondilha maior, que Luiz Bacellar mostra neste exemplar intitulado O poeta. Diz ele: Sempre perseguido/ o grilo fica tranquilo/ cantando escondido. Vejam como o poeta se via. Pois bem, mas em determinados momentos o poeta se lança a expedições mais ousadas. Realiza um grande poema não só pela extensão do texto, como pela carnadura subjetiva de sua bela realização íntima. É uma obra de toda a vida porque já se anuncia nos poemas finais de Frauta de Barro. É o Quarteto, de 1990, lançado originalmente em 1975 sob o título de Quatro Movimentos. Conservou, no entanto a indicação ao possível uso do texto a uma composição musical. Diz ele que esse poema é uma sonata em si bemol para quarteto de sopro. Em verdade a música exercia em Luiz Bacellar o fascínio só dominado pela poesia. A música residia em segundo lugar em seus interesses artísticos. Amiúde fazia referência a isso. Na abertura do Sol de Feira lança na epígrafe os primeiros compassos de uma sonata para flauta e piano de Mozart, se não me engano catalogada entre as miniaturas desse gênio da humanidade. Luiz Bacellar construiu seu Quarteto com 33 sonetos que ele dispôs como estrofes assim distribuídas: Carta Sazonal – allegro, 4 estrofes, Carta Pastoral – andante 13 estrofes, Carta Lunar – adágio 4 estrofes e Carta Náutica – largo 12 estrofes. São sonetos decassilábicos, isto é, peças formadas por 14 versos de 10 sílabas, sob um sistema rímico por vezes eclético. Há momentos em que o poeta livra-se dos esquemas rímicos rígidos e se deixa envolver dos laços da inspiração como na primeira quadra do primeiro soneto da Carta Pastoral – andante, a seguir: O inútil canto escoa-se no tempo/ e os bens do amor em sulcos se dispersam./ A morte há de chegar, seu frio beijo/ de lábio em lábio pousará. Silente. Não exagero, mas suspeito de que no Quarteto de Luiz Bacellar, encontram-se alguns dos mais belos versos em Língua Portuguesa. Nada mais tivesse escrito e o Quarteto bastaria para consagrar-lhe o nome como um dos mais altos cultores do idioma de Camões. Mas o poeta, vez por outra, recolhia-se das alturas a que o levavam os temas do Quarteto, pousava no cotidiano de sua cidade natal e Manaus aparecia em suas ruas e casas, e no jeito de ser do seu povo, em saborosos versos como se encontra na série Romanceiro Suburbano, encartada em Frauta de Barro. Aí está a Balada da Rua da Conceição, rua onde acontece um montão de fatos junto com uma enxurrada de mitos, encerrada pelo poeta com a seguinte interrogação: Mas será mesmo que existe/ essa rua na cidade?/ ou é rua da concepção/ no velho Cais da Saudade?

O cais da saudade leva-me à lembrança da noiva eterna do poeta. Seu nome é Joana de Lima Teixeira, que ele chamava carinhosamente de Ninita. Foi Ninita que, residindo já no Rio, passou a limpo os poemas de Luiz Bacellar de Frauta de Barro, e o inscreveu no concurso que viria consagrar o livro com o prêmio Olavo Bilac. Na última edição desse livro, a nona, ainda administrada pelo poeta em 2011, saída das oficinas da editora meses antes de sua partida, o poeta deixou escrita, na página reservada a isso, a seguinte dedicatória: Este livro pertence a Joana de Lima Teixeira, Dame imperienne de mon coeur enflamme (D’apres François Corbier alias Villon). E prossegue o poeta em sua dedicatória: Nesta edição corrijo uma injustiça por mim cometida nas edições anteriores deste livro e de todos os outros de minha autoria. Assim era o poeta do sossegado vento no livre azul. Ninita reside no Rio de Janeiro, jamais voltou a Manaus e também não se casou.

Continua na próxima edição….

Views: 2

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques