Continuação ….
Dois poetas da paixão
I
Tomo de empréstimo ao jornalista e escritor José Castello o título do livro que escreveu sobre o autor do Dia da criação, para dar nome a este trabalho, em que procuro identificar aproximações entre Olavo Bilac e Vinícius de Moraes. Afinal, no exame de aspectos essenciais de sua poesia, verifica-se que Olavo Bilac também foi um poeta da paixão, o primeiro acostamento que faço entre esses dois grandes bardos brasileiros.
Esclarecido esse ponto, vamos ver que o sentido de poesia leva os homens a melhor se conhecer, em suas aspirações de crescimento e grandeza, e se identificar até quando vivendo em épocas diferentes. A impressão que se tem é que o primeiro homem, ao abrir os olhos para o mundo, manifestou-se por meio da linguagem poética, imprimindo nome aos elementos da natureza e às suas criaturas. Desde aí se individualizou o exercício da poesia. Até porque, sendo uma atividade artística, a poesia, ao se corporificar no poema, ganha características próprias infundidas pelo autor, pelo poeta e suas heranças individuais e circunstâncias políticas. O poeta que é a expressão do seu tempo e do seu povo, dos conflitos individuais que não se concluem, integralmente, sem o comprometimento com o destino da sociedade onde vive. Assim é a poesia de Vinícius de Moraes e de Olavo Bilac, dois dos mais expressivos poetas brasileiros, matéria de que me irei ocupar neste momento.
Em nossas letras, talvez só Castro Alves tenha conquistado um grau de popularidade nos níveis observados em Vinícius e Bilac. O Poeta dos Escravos, por ter exercido a poesia como instrumento a serviço de uma causa nacional, dizia os seus poemas em praça pública, nos teatros e nos salões literários do seu tempo, com o carisma e o magnetismo de sua juventude e de sua beleza física. Por isso foi Castro Alves naqueles dias, um astro incontestável, ainda pela generosidade da causa que abraçara, ainda pelo amor que ele cantou como poucos na história da poesia em Língua Portuguesa.
A popularidade de Vinícius de Moraes veio também do seu engajamento político, mas, especialmente, do seu envolvimento com a música popular, embora, desde os verdes anos, tenha-se identificado como um homem de elite. Assumira tal imagem pela formação escolar adquirida no Colégio Santo Inácio, um centro de educação frequentado pela fina flor da juventude carioca. Sua figura de homem de elite consolidara-se, ainda, pela carreira que abraçara na vida prática, nas atividades diplomáticas, uma ocupação reservada à nata da intelectualidade brasileira, desde a era dominada no setor pelo velho Barão do Rio Branco. Como compositor de música popular viveu o poeta um dos momentos mais altos e maduros de sua poesia. Convertera-se em uma das figuras mais conhecidas e respeitadas da MPB, consagrando-se como um dos corifeus do movimento conhecido por Bossa Nova, ao lado de companheiros de escol como o Maestro Antônio Carlos Jobim, o Tom Jobim do Garota de Ipanema.
Vinícius de Moraes na juventude aproximou-se ainda dos intelectuais católicos aglutinados no Centro Dom Vital. São desse período os seus primeiros livros, desde O caminho para a distância (1933), mais tarde recolhido das livrarias e rejeitado pelo autor; Forma e Exegese (1935) e Ariana, a Mulher (1936), que constituem a expressão da primeira fase de sua poesia, marcada pela espiritualidade católica, transcendental e mística, tão representativo desse grupo influente nos movimentos mentais do Rio de Janeiro, então capital da República. A segunda fase inaugura-se com os Novos Poemas (1938), e, depois, se consolida com as Cinco Elegias (1943), Poemas, Sonetos e Baladas (1946) e Pátria Minha (1949), que, segundo depoimento do próprio poeta, traz a marca da aproximação com o mundo material. No período de maior engajamento com a música popular, Vinícius publicou a peça de teatro Orfeu da Conceição (1956), Livro de Sonetos (1957), Antologia Poética (1960), Para viver um grande amor, poemas e crônicas (1962), Para uma menina com uma flor, crônicas (1966) e Obra Poética (1968). Dedicou-se à poesia dirigida ao universo infanto-juvenil, de que ficou a coletânea Arca de Noé, depois toda musicada em parceria com Antônio Pecci Filho, o notável compositor de MPB conhecido por Toquinho.
Na primeira fase sua poesia traz características de contemplação da realidade, com inquietação espiritual em refletir os fenômenos da vida numa dimensão transcendental. Na segunda, o seu olhar se volta para a terra e é quando se observa o seu engajamento político e a sua entrega aos conflitos do amor como experiência de vida. Foi cognominado o poeta da paixão, teve nove casamentos e a mulher sempre foi o seu tema preferido. Na política perfilou-se ao lado das lideranças jovens que defendiam para o país uma linha progressista. É dessa época o poema O operário em construção, escrito em redondilha maior, nos moldes do cancioneiro de cordel nordestino.
Do ponto de vista formal Vinícius de Moraes usou o verso largo e diluvial predominante nos livros da primeira fase e o verso medido na segunda, prevalecendo a redondilha maior, o decassílabo e o alexandrino. Converteu-se, assim, num dos mais hábeis cultores do soneto, cuja obra, realizada nessa forma, faz paralelo aos mestres do gênero entre os seus contemporâneos, a exemplo de um Jorge de Lima, um Tasso da Silveira, uma Cecília Meireles.
Mas vejamos uma pequena amostra comparativa do Vinícius de Moraes da primeira fase com o da segunda, considerando a mulher que, enfim, constitui o motivo recorrente em toda a sua obra. Prestemos atenção para o seguinte poema da primeira fase:
A BRUSCA POESIA DA MULHER AMADA
Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente…
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor – oh, a mulher amada é como a fonte!
A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente?
Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados…
Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias
Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.
Vemos nesse poema que a mulher amada é uma figura um tanto abstrata, ela é como a fonte, é como o pensamento de um filósofo sofrendo, é como o lago dormindo no cerro perdido, enfim ela é uma estrela que está mais além.
Vejamos agora a sua visão da mulher da segunda fase:
SONETO DE DEVOÇÃO
Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.
Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez… – mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela.
Vemos a diferença de visão como se fosse da água para o vinho. No poema anterior a mulher é uma estrela que está mais além, neste a mulher é um mundo, uma cadela talvez. Mas não posso furtar-me a compartilhar com o leitor de mais um momento da poesia de Vinícius de Moraes, com que ele fixa uma paisagem bucólica, em que reserva ao homem um lugar ao lado de outros elementos e criaturas do mundo, em belos e perfeitos alexandrinos:
SONETO DE INTIMIDADE
Nas tardes da fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.
Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.
Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve
Seguida de um olhar sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.
O processo criador do poeta, no período em que se dedicou à música popular, realizava-se intensamente com a produção do texto em paralelo à notação musical na partitura, ao lado do piano ou apoiado no violão. Houve momentos em que o compositor pôs música em poemas publicados, como é o caso do Soneto de Separação, musicado por Tom Jobim. Mas na maioria de suas canções o trabalho criador era fruto do encontro do poeta e do músico, numa fatura artesanal exemplar e de um excelente entendimento entre os dois.
Em 1955 Vinícius de Moraes encontrou-se em Paris com o maestro e compositor amazonense Claudio Santoro. Santoro trazia na bagagem as famosas 12 Canções de Amor, compostas sob a atmosfera de uma crise amorosa que fizera o músico deixar a União Soviética. As canções estavam sem palavras. Foi então que o poeta de O dia da criação entrou em cena e escreveu os versos para aquelas melodias. Foi um trabalho curioso porque a experiência do poeta era bem diferente. Muito de suas canções nasceram primeiro com o poema e depois a música. Houve casos em que palavras e sons nasceram juntos. No caso das canções de Claudio Santoro deu-se o contrário, veio primeiro a música e depois os poemas. Vinícius de Moraes aprendeu muito do requinte da fatura musical nesse processo em parceria com Claudio Santoro, costurando as palavras no contexto melódico.
Realizaram, juntos, o músico e o poeta, uma obra de minuciosa técnica, bem ao gosto do ilustre maestro amazonense. Mais do que nunca as palavras nasceram soltas, em versos livres, embora nos moldes da redondilha maior, ao ritmo da respiração do artista.
Moraes no período que ele classificou de Depois do Modernismo, período situado a partir da década de 1930, quando surgiram teriam de flutuar no metro das frases musicais, com naturalidade. E com a nobre simplicidade de versos como estes do Acalanto da Rosa:
Dorme a estrela no céu,
Dorme a rosa em seu jardim
Dorme a lua no mar,
Dorme o amor dentro de mim.
É preciso pisar leve
Ai é preciso não falar.
Meu amor se adormee
Que suave é o seu perfume
Dorme em paz rosa pura
O teu sono não tem fim.
Otto Maria Carpeaux144, num lúcido estudo bibliográfico, situa Vinícius de poetas e prosadores de ficção que impuseram novos rumos às letras nacionais e que, mais tarde, foram aglutinados na chamada geração de 45.
Num breve retrospecto, visando melhor entender a poesia de Vinicius de Moraes, lembremos que o modernismo brasileiro começou em 1922, com a célebre Semana de Arte Moderna de São Paulo. O fazer literário de então se esgotava na prática decadente do parnasianismo e do simbolismo. Mário de Andrade145, um dos mais ativos líderes da nova literatura, considerava mestres do passado as mais altas figuras da poesia de então. Houve uma guerra contra o verso medido, o decassílabo, o alexandrino, a redondilha. Inaugurou-se o império do verso livre, refugou-se a medida do soneto.
Depois, nas gerações seguintes, o ambiente acalmou-se e voltou à prática do verso medido, embora fundamentado em novo conteúdo, com uma visão de mundo mais condizente com a vida que se vivia nos grandes centros urbanos de então. Mas, o verso livre já estava consagrado e praticado por grandes poetas brasileiros contemporâneos.
Vinícius de Moraes, do ponto de vista formal, é um dos mais autênticos herdeiros desse modo de ser da poesia brasileira. Cultivou o verso livre bem realizado como em Receita de Mulher:
As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental (…)
ou o verso medido como o decassílabo no Soneto de Contrição:
Eu te amo, Maria, te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença (…).
Mas em toda a sua poesia imperou um motivo recorrente e essencial, como se observa nas citações que fiz ao longo deste ensaio, a mulher que também constituiu o tema primordial do seu cancioneiro, desde o momento em que ele cantou, em Eu não existo sem você, de parceria com Tom Jobim os seguintes versos:
Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim (…)
Ele foi, e continua sendo, por determinação de sua obra, o poeta da paixão e o cantor de uma das mais belas formas de expressão poética da Literatura Brasileira, praticada com simplicidade e entusiasmo, numa linguagem aberta e acessível, de fácil consumo do leitor da boa poesia, da boa poesia de Vinícius de Moraes.
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144 CARPEAUX, Otto Maria (Viena 1900 – Rio de Janeiro 1978), crítico literário, musical e ensaísta.
145 ANDRADE, Mário (Raul) de (Moraes) (São Paulo 1893 – 1945), poeta, musicólogo, ensaísta e prosador brasileiro.
Continua na próxima edição….
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