Manaus, 27 de julho de 2024

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

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Continuação….

Cultura

I

A Amazônia Ocidental

O poeta, então, comenta que esse fato histórico no mínimo transfigurou-se, após a descoberta da eletricidade mais tarde e na idade moderna com a invenção da lâmpada elétrica.

Os exemplos de mito comprovado em verdade, entre os povos primitivos, são inúmeros. A arqueóloga americana Betty Meggers4 conta que os povos primitivos consideram-se parte da natureza, nem superiores nem inferiores às outras criaturas, se bem que sejam, frequentemente, superiores a outros grupos humanos. Acreditam que as almas dos seres humanos sejam capazes de penetrar nos corpos de animais e vice-versa e que os espíritos de animais possam exercer um importante controle sobre o destino dos homens.

Examinando o acervo da infinidade de lendas recolhidas entre os povos nativos da Amazônia, que é a legítima expressão do seu universo mítico, observa-se a presença nas histórias de bichos que falam e homens que se transformam em animais. Isto desde as origens desses povos, porque, em verdade, eles interpretam o mundo e a vida, dominam o meio-ambiente, informados pelo mito.

No entanto, essa comunhão dos homens com o meio-ambiente e com todos os seres que constituem a maravilha da biodiversidade referida pelos povos primitivos através dos seus mitos, está comprovada hoje pelos estudos recentes de cientistas consagrados.

Vejamos o que diz Frank Fraser Darling5, citado por Djalma Batista6, sobre o funcionamento de um ecossistema:

A energia penetra sob a forma de radiação solar, sendo captada pelos organismos produtores, geralmente as plantas verdes, que a armazenam como energia química (alimento). Esta energia-alimento fica então disponível aos organismos consumidores, incluindo os animais que comem as plantas verdes. A energia-alimento pode passar por mais de um elo de consumidores, através de herbívoros, que comem as plantas, de carnívoros que comem os animais menores, segundo uma série chamada “cadeia alimentar…” O ecossistema age como um reservatório de energia depositada no corpo de animais e nas plantas, e atua no sentido de deter o processo de degradação da energia.

Entre os seres vivos, herbívoros e carnívoros, encontra-se também o homem, na comunhão já interpretada pelo mito. Dá a impressão, à primeira vista, de que a energia talvez seja o verdadeiro nome da alma, não fosse o fato de ser a alma um ente e, por ser um ente, devesse a energia ser a virtude que no ente se origina, segundo observa Edison Farias, em seus estudos sobre a matéria.

Em face dessa visão da realidade, cabe especular sobre o sentido de mistério que envolve a vida na Amazônia. Os seus intérpretes no mundo das ciências e das artes são férteis em salientar o lado fantástico e mágico e até sobrenatural dos fenômenos observados na Região. É o caso de indagar se não haveria uma relação cósmica entre a floresta e os rios, as aves, os animais da terra, os peixes e os homens. Sobre os homens a floresta exerce verdadeiro magnetismo. Quem sabe não foram aquelas forças subjetivas as responsáveis pela manutenção dos povos primitivos e, depois, do colonizador e das populações que vieram para implantar os princípios da Cultura Ocidental na Amazônia? Abstraído o aspecto eminentemente econômico do desenvolvimento social, deverá ter havido outros ingredientes, agindo no âmbito do espírito, ou, como queiram os incrédulos, nos ângulos da realidade psicológica, para explicar as razões que levaram o homem a se fixar numa região considerada pelos pessimistas, tão inóspita…

Não gostaria de encerrar esta parte sem referir a um exemplo de comportamento mítico nos hábitos alimentares dos amazônidas.

As parturientes na Amazônia, nos dias de resguardo, só se alimentam de carne de galinha. Os pais, nas providências adotadas na espera do nascimento dos filhos, preparam-se também mantendo no quintal no mínimo quarenta galinhas. Nos quarenta dias de resguardo a mãe só se alimentava dessas aves, uma por dia, sempre frescas. Qualquer outra comida era considerada reimosa. As parteiras da beira do rio assim recomendavam.

E estavam certas segundo a conclusão a que chegou uma equipe de pesquisadores do University of Nebraska Medical Center. Esses pesquisadores apuraram que a carne de galinha contém propriedades anti-inflamatórias. O Dr. Stephen Rennard, da secção de Pneumologia e Terapia Intensiva dessa Universidade, observou que a canja, sopa de galinha, melhora a garganta inflamada e alivia o mal-estar causado pela gripe.

Levando em conta essas razões é que neste ensaio concentrei atenção no mito e na fantasia, requisito que o aproxima dos ramos da arte literária, em cujas águas possuo alguma prática de viagem, muito mais do que nos complexos e encapelados mares dos estudos sociais.

Por me ter motivado a este empreendimento e como preito de gratidão, ofereço este trabalho à memória do ilustre amigo Armando Dias Mendes. Dedico-o, ainda, ao meu irmão Edison Farias, que me socorreu inúmeras vezes, lendo os originais com o lápis na mão, emitindo observações pertinentes logo incorporadas ao texto e alimentando-me de dados estatísticos essenciais ao longo da sua elaboração, e com quem nunca deixei de conversar sobre tais assuntos, tão influentes em nossas vidas. Reservo de outra forma, um bom sentido de agradecimento ao meu nobre amigo Francisco Gomes da Silva, o historiador de Itacoatiara e, então Presidente do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, que se esforçou em prover condições financeiras para a edição de uma separata do texto por conta do Instituto, coisa que, enfim, não aconteceu, mesmo ante o esforço desse nobre amazônida.

Deixo registrado o estímulo de minha esposa Roseli e a sua colaboração no preparo e acabamento da escrita, a atenciosa leitura dos originais com a revisão ortográfica e até com sugestões quanto a aspectos estilísticos da obra.

II

Aqui vai o testemunho referido no tópico anterior. Nasci e passei a primeira infância na beira do rio, à margem esquerda do Paraná de Serpa, onde meu pai era comerciante, vizinho à cidade amazonense de Itacoatiara. Quando viajava para visitar os seus fregueses e amigos, de canoa a remo ou à vela, algumas vezes eu ia com ele. Não eram viagens longas porque não saíamos do paraná. Não era, também, aquele paraná, um lugar assim tão selvagem que metesse medo nas pessoas. Ali ele flui, alimentando e servindo de estrada, às comunidades vizinhas à mui nobre e sereníssima cidade de Itacoatiara, antiga Serpa, nome emprestado à portuguesa Vila de Serpa, província do Alentejo que visitei quando estive em Portugal por volta dos anos 1980. A cidade de Itacoatiara fica perto da entrada de cima desse paraná.

Esse nome foi legado, também, a um lago e é uma palavra popular por aquela redondeza. O velho paraná é geralmente muito habitado na margem esquerda. Do outro lado, na margem direita, fica a Ilha do Risco, nesga de várzea baixa que forma o Paraná de Serpa, pois os paranás são uns acidentes geográficos típicos da Amazônia, braços de rios que nascem e deságuam no mesmo rio, formando uma ilha, geralmente de várzea baixa, sujeita a alagações periódicas. A Ilha do Risco, por ser muito baixa, é invadida pelas águas todos os anos, quer sejam grandes, quer sejam pequenas as enchentes do rio.

A Ilha do Risco demorou a ser habitado como está hoje, porque além das enchentes anuais, as suas barrancas sofrem, no fim das secas, quando as águas já estão subindo, o fenômeno das terras caídas. As terras caídas acontecem com estrondos assustadores e levam, em roldão, árvores, casas e benfeitorias, alagando no porto as pequenas embarcações. De noite, seu terror é maior. Os alincornes que são aves diurnas acordam e soltam o canto metálico e muito mais lúgubre na solidão das noites, assustados com o barulho do desmoronamento das ribanceiras.

Saíamos do Paraná de Serpa, nos tempos da seca, para ir à praia que se exibia na calha central do rio Amazonas, do outro lado da ilha, formando um tabuleiro de tartarugas que o comerciante Elesbão Farias, meu pai, administrou durante alguns anos, nomeado pelo Ministério da Agricultura, função definida como serviços relevantes, isto é, sem remuneração de qualquer espécie.

As tartarugas são diferentes dos outros quelônios, dos iaçás ou pitius ou tracajás. Estes bichos de casco desovam em qualquer beirada de rio, no barro ou na areia. Ali eles cavam os buracos e lhes depositam os ovos com a maior displicência do mundo. As tartarugas, não. Estas só desovam nos tabuleiros.

Conta o povo, na sua inefável sabedoria, que, ao saírem as praias, o macho da tartaruga, chamado capitari, escolhe a mais bonita e larga, e ali faz a demarcação do tabuleiro, geralmente nas pontas de areia. Sobe d’água e sai riscando com o rabo os limites da praia onde as suas companheiras devem desovar. O capitari é menor que as tartarugas, mas possui o rabo mais longo, para permitir-lhe desde o exercício eficiente da função de agente reprodutor, até a execução a contento do serviço de demarcador de tabuleiros…

Os comandantes de praia eram nomeados para proteger e fiscalizar os tabuleiros, impedindo que se colhessem os ovos das tartarugas ou se praticassem os atos de viração, quando elas subissem do rio ainda para desovar. Era-se tolerante com a viração na hora da descida às águas, quando já estavam devidamente desovadas.

Na viração precisa-se ter experiência. Após desovar, a tartaruga fecha a cova, alisa com o peito a areia em cima e sai correndo para dentro d’água. Se o caçador tentar agarrá-la à unha, fica sujeito a ganhar golpes profundos nas mãos, porque são afiadas as abas das carapaças que os amazônidas chamamos de cascos. Como proceder, então, para capturar uma tartaruga? Se pega uma tábua e se lhe coloca franchada na frente para atropelar a tartaruga. O ideal é que esta operação seja realizada por duas pessoas. A tartaruga tropeça e vira de peito para cima. Aí o caboclo corre para pegar outra. Mas enquanto se ocupa com uma, as outras muitas já alcançaram a beira da praia e mergulharam no rio. Nessas horas elas são muito velozes.

__________________

4MEGGERS, Betty Jane (Washington 1921 – 2012), arqueóloga americana.

5DARLING, Frank Fraser (Inglaterra 1903-1979), ecologista.

6BATISTA, Djalma da Cunha (Tarauacá AC 1916 – Manaus 1979), médico, escritor, in O complexo da Amazônia.

Continua na próxima edição…

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