Manaus, 19 de junho de 2025

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

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Continuação ….

Poesia e prosa 145

Caros amigos:

Estou aqui para conversar com vocês sobre poesia e prosa. É também um depoimento sobre a minha aventura nos domínios da arte literária. Corro o risco, portanto, ao falar de mim mesmo, de parecer imodesto. Posso fazer soar nos ouvidos de vocês uma confissão que ameaça as normas do discurso corrente nas salas de aula. Confesso-lhes, por isso, meu temor em escorregar nos embaraços da autolatria, do auto-elogio, da radicalização de minhas supostas virtudes, consciente de que o artista é, qualquer que seja a sua forma de arte, vulnerável às mazelas da vaidade. Mas, se de todo não nos despirmos dessas tentações, com o desempeno de quem precisa revelar o lado oculto do autor em relação à linguagem artística, sempre sai perdendo o consumidor da obra de arte. E vocês, que estão a lidar com os estudos universitários, melhor do que ninguém saberão compreender a atitude de quem lhes fala.

No tempo de estudante, na sala de aula, eu atribuía nota dez aos depoimentos. Exultava quando o professor saia do âmbito da matéria de sua preleção e passava a falar das suas vivências. Junto com os fatos narrados vinham as lições da experiência, conquistadas pelos acontecimentos de sua biografia, o aperfeiçoamento espiritual e a análise da realidade. Assim assimilei muito do lado prático da existência.

E, desde muito moço, alertado por minha mãe, descobri que não poderia viver só de literatura. Teria de trabalhar em outras atividades de que tirasse o meu sustento. Dediquei-me, então, ao serviço público. Dividi o meu tempo entre esses dois afazeres, esforçando-me para não prejudicar nem uma nem outra dessas obrigações, mas encarando como profissão o ofício de escritor. Hoje considero a literatura um trabalho sistemático. Lido com ela todos os dias, depois da inatividade do serviço público. A rotina de minha vida agora se desenrola com os deveres de casa, da manutenção da minha família, esposa, filhos, e, presentemente, netos, reservando um bom tempo a encontros com amigos e companheiros, colegas nos afazeres da criação artística, destacando maior parte do tempo com a atividade das letras, lendo e escrevendo.

Espero que este encontro seja proveitoso para mim e para vocês e que saiamos daqui enriquecidos. A tarefa de escrever é tão árdua quando a de estudar. Nas suas compensações, no entanto, ambas deixam em nós um ponto de alegria; para mim, quando vejo acabado o texto, para vocês, sem dúvida, quando vêem cumprida mais uma etapa em suas obrigações acadêmicas, até a alegria suprema da colação de grau, porque, em verdade, a colação de grau provoca genuína mudança de estado, mudança tão profunda que chega a alterar o comportamento, dotando de um vigor novo a personalidade.

Hão de perguntar entre si sobre o motivo da minha euforia ao participar deste encontro e qualquer explicação poderia converter-se em divagação frívola porque despida de um real interesse para ambas as partes. Sucede, por fim, que reconheço fundamental para o desenvolvimento da sociedade a formação acadêmica regular, tanto que estímulo os meus filhos e netos a se formarem bem. A atuação de bons profissionais muda a face do mundo. E porque respeito e valorizo a cultura universitária, faço votos que vocês tirem desta conversa algum proveito, na direção dos seus interesses intelectuais.

Meu primeiro contacto efetivo com a Literatura deu-se por meio da poesia. E da poesia romântica. Depois, passei a ler tudo o de poesia que me caía às mãos, poesia brasileira e de Língua Portuguesa em geral, abrangendo todos os períodos, desde os provençais e os renascentistas, porque, afinal, foi nessa época, rica em acontecimentos históricos na Civilização Ocidental, que nasceu a poesia moderna. Muito aprendi nessas leituras.

Depois passei a consumir a poesia castelhana e a poesia de outras línguas vertidas para o vernáculo.

Pouco lia de prosa naqueles tempos. Eu achava que a poesia era a mais alta expressão da sensibilidade humana e a coisa mais bela que existia no mundo. De prosa lia, apenas, ensaios de interpretação ou de teoria estética, sem nenhum fascínio pela magia do gênero, mas sob a aguda curiosidade de melhor compreender a poesia.

Indaguei sobre a diferença existente entre poesia e prosa, além da aparente, configurada no verso, porque nem sempre o verso traz poesia, há muito verso prosaico, e, de outro modo, há muita prosa poética. A diferença que eu buscava está na forma. Enquanto a prosa emite raciocínios a poesia fixa emoções. Raciocínios e emoções que nos revelam a verdade do mundo e da vida, a nossa consciência sobre nós mesmos e a consciência social, que, em última análise, é o objetivo de toda literatura adulta.

Do verso prosaico já se sabe que existe, não precisando de muito esforço para identificá-lo. Enquanto que a prosa poética é encontrada no chamado poema em prosa ou em determinados passos da prosa de ficção, romances, novelas, contos. Encontra-se poesia até na prosa de ensaios de interpretação ou de registros do cotidiano, ou de divulgação e debates de idéias. Muitas vezes, quando o escritor não encontra o modo de como emitir um raciocínio para expressar uma idéia ou descrever uma paisagem, ele lança mão da linguagem poética, com que, enfim, consegue dizer aquilo que não pode ser enunciado de outro jeito.

Na vida moderna a poesia e a prosa se confundem. Nas próprias relações sociais, nos diálogos do dia a dia, realiza-se prosa e poesia ao mesmo tempo e de forma entrelaçada. Mas, eu gostaria de afirmar que a raiz da literatura está na poesia, na criação poética. Sobre este ponto bem que poderíamos parafrasear o evangelista dizendo que no princípio era a poesia…

Para que haja poesia, vista a questão do ângulo da arte literária, é necessário que haja o poema, uma estrutura verbal com características singulares. Já nos referimos à poesia em prosa, mas eu gostaria de me ater agora à poesia em verso, de verso medido e de verso livre.

A poesia nasceu junto com a música, no berço do ritmo, no mesmo momento em que nascia também a rima, uma das qualidades mais permanentes do poema. O poema é o corpo da poesia. Quando o homem percebeu que podia dançar a partir do ritmo produzido com a batida dos pés combinada com o som das palmas das mãos, proferindo palavras que completassem o que desejavam expressar, ele inventava a um só tempo a dança, a música e a poesia. Por isso a poesia veio guardando, na sua prática, ao longo da história, qualidades de música e de dança, a sonoridade, a harmonia e, também, a plasticidade ao mostrar aspectos da paisagem vivida pelo poeta, no seu tempo.

O poema é, portanto, uma organização estética, construída com os elementos adquiridos ao longo das idades.

Assim vejo a questão poética e me esforço em atingir esse ideal, de tal sorte que em determinados momentos o meu poema pode parecer hermético, de difícil comunicação. É preciso, no entanto, e tenho consciência disso, que o uso de tais elementos de linguagem sirva à poesia e não provoque o contrário, obscurecendo-a, fato que viria contribuir para o seu desamor.

Sempre vi o ideal da poesia como o esforço de fixar com a palavra a emoção em si mesma, na palavra. Na poesia a palavra é mais fim do que meio, como na pintura e na música a cor e o som concentram a emoção do pintor e do músico.

Procurei usar no corpo do poema os ritmos do verso em língua portuguesa, buscando na poesia renascentista a maior aprendizagem. Pareceu-me que a poesia dos cancioneiros medievais, por constituir o berço da nossa cultura, muito poderia ensinar ao poeta moderno, em termos de simplicidade e de objetividade no cantar. A poesia dos cancioneiros traz uma riqueza rítmica e rímica tão ampla que consegue infundir ao texto, aparentemente simples, invulgar profundidade semântica.

A rima não funciona apenas no final de cada verso, mas também entre as palavras que o compõem. As palavras no verso vivem em harmonia, como se existissem de mãos dadas, sob o som das vogais em conexão com as consoantes, produzindo assim novas tonalidades. Tanto faz no verso medido quanto no verso livre. O verso livre oferece maior liberdade ao poeta, permitindo-lhe criar o seu próprio ritmo. Mas o verso livre também pode lançar o noviço nos redemoinhos confusos do palavreado inócuo, onde tantas vocações se têm naufragado.

Os meus temas e a paisagem dos meus poemas estão comprometidos com a nossa terra. E não poderia ser de outro modo se considerarmos que sempre vivi aqui, aqui nasci e daqui jamais saí, senão para viagens de trabalho e de estudos, poucas de lazer, pois não há instrumento mais persuasivo de tirocínio cultural do que as viagens. Mas nunca residi fora da Amazônia. Na primeira viagem que fiz para fora da região eu já contava os meus vinte e poucos anos e, para o Exterior, cinquenta. Minha vivência é a vivência do homem da Amazônia; não o mar, mas o rio; não as montanhas, mas a floresta da planície. Eu não poderia ser diferente do que sou e a minha poesia, também.

Procurei fazer uma poesia erudita, sim, com as marcas formais de toda poesia, porque a poesia, é bom que se afirme com todas as letras, é matéria de consumo do homem civilizado, mas informada, como no meu caso, com os elementos da nossa cultura, a cultura amazônica.

Procurei realizar uma poesia de estrutura clássica, orientada com os elementos essenciais da prosódia do vernáculo, mas acrescida de palavras geradas no nosso mundo, o mundo amazônico, os neologismos de origem indígena e de origem cabocla, inserindo-os na argamassa do poema.

O jeito de ver a vida e o mundo, a maneira de sentir as aflições, o comportamento ante os fenômenos da natureza, isto eu procurei expressar nos meus versos.

Outro assunto que eu gostaria de tratar com vocês fala dos limites fixados entre o fato épico e o elemento lírico. Há o entendimento de que o lírico ocorre no momento em que o poeta cuida de si e dos seus sentimentos; e o épico se manifesta quando o poeta trabalha com os acontecimentos da sociedade e da história.

Assim pensando poderíamos crer que o lírico é um poeta menor em ralação ao épico, levantando aqui uma questão antiga. Maior seria Homero e menor Safo, porque Homero, ao celebrar as aventuras da viagem de Ulisses, as surtidas enfrentadas em defesa do seu povo, e as peripécias no lidar com as paixões humanas, estabeleceu os fundamentos da Civilização Ocidental, enquanto Safo empunhava a lira para gemer a sua precária condição humana e a paisagem do mar Jônio.

No entanto, é bom esclarecer que nem por isso ambos estão isentos de atingir níveis de grandeza, o poeta lírico e o poeta épico, desde que alcancem postura de grandeza. O eu do poeta lírico é um eu dramático, eu que se transmuda para o coração do leitor. Não só o épico, por ocupar-se com os temas gerados pela sociedade, poderia exercer ação transformadora, mas o poeta lírico, ao inquietar-se com o mundo que o cerca, também pode fazer a sua parte no processo de mudança e melhoria das coisas, da solidariedade entre os povos e do bem estar da raça humana.

Historicamente, o poema épico era aquele que se ocupava dos acontecimentos heróicos da vida de um povo, de uma etnia, de uma nação, conhecido também como epopéia e sempre a serviço de um fato grandioso. Mas, modernamente, o termo diluiu-se na significação do poema que extrapole os sentimentos íntimos do poeta. O íntimo e pessoal era o lírico, o coletivo era o épico. Hoje, vemos que as duas formas se confundem, convertendo-se em água da mesma fonte.

Dante com a Divina Comédia realiza um poema ao mesmo tempo lírico e épico, posto cuidar ao longo dos três grandes livros que o constituem de uma caminhada por dentro da alma humana, agitada pela emoção e as paixões do poeta e pelos conflitos observados na relação das personalidades do seu tempo. Segundo os mais autorizados exegetas dessa obra imortal, o sentido do Inferno é a dor, do Purgatório, a esperança, e do Paraíso, a glória. Mas, de logo se percebe que se cuida de um poema político e teologal, com que o grande florentino analisa a sociedade do seu tempo, os homens e os seus atos, julgando-os de acordo com a conduta de cada um nos acontecimentos da vida. Move o poeta o amor, tema eterno da poesia lírica e também da poesia épica, porque foi o amor que incendiou a ira no coração de Ulisses e o manteve íntegro enquanto os seus soldados eram transformados em porcos pelas artimanhas de Circe. Na Divina Comédia, no entanto, o amor transcende os espaços da sensualidade e invade as graças do eterno, infundindo à Comédia um sopro de epopéia transcendental que por fim transformou-a em divina.

Outro exemplo, mais perto de nós, porque escrito em nossa língua, são os Lusíadas. Nesse poema Camões canta a aventura de Vasco da Gama na viagem de descoberta dos caminhos marítimos para as Índias, contando a história de Portugal. Encontram-se, no entanto, no texto, momentos de alto lirismo, em passos como os do episódio de Inês de Castro que transcorre a partir da estrofe 120 do Canto Terceiro e que começa com o belo verso Estavas, linda Inês, posta em sossego, e do episódio da Ilha dos Amores, no Canto Nono, a partir da estrofe 52 e do verso De longe a Ilha viram, fresca e bela. Mas ao longo de todo o poema despontam ante os nossos olhos, aqui e acolá, versos que pulsam sob a atmosfera da mais elevada inspiração lírica. A Ilha dos Amores é, em verdade, o seu instante mais belo, e, talvez, um dos momentos mais elevados da lírica universal. Camões descreve a paisagem geográfica sob as luzes de olhos que sabem ver o mundo. Revela extrema sabedoria ao apreciar os labirintos da psicologia feminina e o encantamento dos jovens marinheiros ante a maravilha daquela festa do espírito e da carne, bolindo, ainda, com a cupidez do leitor. A Ilha dos Amores, sem dúvida, repitamos a afirmativa, constitui uma das páginas mais altas da criação poética em qualquer língua, antiga ou moderna.

No Brasil de hoje, o maior exemplo de poesia ao mesmo tempo lírica e épica, está na obra de Carlos Drummond de Andrade. Grande parte de sua poesia é lírica, diálogo do poeta com o seu eu interior, expressão do conflito dos seus íntimos sentimentos, apesar do tom bem humorado com que o poeta cuida das suas dores. Nos seus livros Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo, encontra-se o que de mais expressivo já se escreveu em nossa língua em termos de interpretação das aspirações da sociedade, numa visão política exemplar, da relação entre os homens, com uma enorme simpatia pelo bem estar dos seus irmãos.

Toda a poesia de João Cabral de Melo Neto, por sua vez, é uma poesia de tonalidade épica. Não obstante o uso do verso curto, as redondilhas, sua obra possui a virtude de ocupar-se com o destino de homens e seres que cercam o poeta, inspirado, formalmente, na literatura de cordel, muito usada no Nordeste brasileiro, de onde o nosso bardo é originário, pois é pernambucano do Recife. A poesia de João Cabral canta a grande aventura do homem a caminho da realização social e política, retrato de corpo inteiro do peregrino de Morte e Vida Severina.

Thiago de Mello, do nosso lado, construiu uma obra, e todo dia trabalha nela, regada com as águas dos rios do lírico e do épico, porque o seu cantar é feito das dores do homem e das suas alegrias, no sentido de sua realização social. Nos primeiros livros, o poeta dos Estatutos do Homem, voltado estava para dentro do seu próprio universo, e, depois, a vida vivida e a experiência política porque passara, converteram-no ao canto em defesa dos seus irmãos. É lírico e épico.

Sempre considerei que de nada serviria aos outros a minha dor de cotovelo. Os meus sentimentos íntimos pouco poderiam contribuir para o proveito dos meus concidadãos. O que eu precisava, portanto, era falar da situação do homem amazônico da beira do rio, esse mundo que eu conheci porque nele vivi até aos dezoito anos de idade, meu pai comerciante e comprador de produtos agrícolas e extrativistas, financiando trabalhadores da floresta. Em nossa casa não havia energia elétrica e o nosso meio de transporte era a canoa a remo ou à vela. Vivíamos as noites do rio com todos os sons dos seus mistérios, os ruídos da floresta e os barulhos do rio, dos navegadores da noite ou dos bichos aquáticos, os botos e as piraíbas. Não existiam naquele mundo nem o rádio nem a televisão.

A vida do homem e essa paisagem é que deveriam ser o tema e aí está a minha experiência com a poesia. Mais tarde é que começaram a surgir no que faço aspectos da vida urbana de Manaus, onde já estou há mais de cinquenta anos. Mas a vida urbana jamais se despoja dos traços da natureza do rio e da floresta, elementos que marcaram fundamente a minha formação.

Aprendi, também, que é o homem que inventa o mundo. Um caboclo, aparentemente perdido em sua montaria a enfiar o remo n’água, pelos paranás, igarapés e lagos, é que enriquece de humanidade a paisagem e imprime a dimensão universal dos seus elementos. O poeta é parecido com esse caboclo, que será tanto maior na medida em que se aproxime do destino desse homem.

Preocupo-me com a poesia da criança. Tenho vários poemas escritos e, na sua maioria, ainda inéditos, cuidando do universo e da linguagem da infância, linguagem rica e altamente poética. Um dia o meu filho Zezé, então com oito anos, perguntou-me:

-Papai, você sabe o que é a chuva?

Ante o meu silêncio, ele mesmo respondeu:

– A chuva é a lágrima das nuvens. As nuvens choram porque o seu pai não deixa que elas saiam para passear.

Todos nós, sem dúvida, temos um depoimento a oferecer sobre a manifestação poética da infância, porque a poesia é a linguagem essencial da infância, as crianças se manifestam e fazem as suas reivindicações por meio da expressão poética, no uso corrente e espontâneo da metáfora.

Meu neto Robertinho de dois anos estava com uma bandeirinha brasileira na mão e a avó Lili perguntou-lhe:

– Meu dengo, o que é isso que você tem nas mãos?

E ele, em cima da bucha, respondeu:

– Pátria amada.

Talvez por isso, por ser a poesia a linguagem primordial da infância, a primeira manifestação falada ou escrita de qualquer literatura acontece com a poesia, muito antes da prosa.

Talvez por isso eu também tenha começado pela poesia.

A prática da prosa é considerada a maturidade da literatura. A prosa de ficção, a crônica, o ensaio. Mas a crônica antecedeu as outras formas da obra em prosa, tal como as narrativas dos primeiros descobridores a exemplo, entre nós, da Carta de Pero Vaz de Caminha, e, depois, a crônica transformada em gênero literário nas páginas dos jornais.

Por isso, quem sabe, no Brasil, antes do advento das Faculdades de Comunicação Social e de Letras, o jornalismo tenha sido considerado a escola do escritor. Em determinados momentos, em sua atividade, o jornalista usa a linguagem literária e produz a crônica. Exerci o jornalismo durante um bom tempo de minha vida. Produzi textos para o jornal impresso, o rádio e a televisão. Cheguei a usar a entrevista, técnica do jornalismo, para escrever um livro.

O ensaio exige uma prosa mais bem cuidada, com os temas expostos com clareza e simplicidade de linguagem, facilitando ao máximo o entendimento do leitor. Ensaio hermético é uma contrafação do gênero. Tenho escrito livros de ensaios.

A história curta é o conto, que se realiza com um menor volume de palavras, restringindo-se a um universo de poucos personagens, quase sempre de um ou dois coadjuvantes, contando passagens que atingem parcelas mínimas de suas vidas.

Na linha da narrativa curta, o conto, tenho escrito uma série que ainda está inédita, abrangendo aspectos da vida urbana de Manaus.

A novela avança um pouco mais, pois envolve um universo mais amplo, em torno de um personagem principal, a dominar o destino dos outros seres da ficção. Assim realizei a minha novela O Comandante, história que se desenvolve numa comunidade do interior amazônico e a capital do Estado, por volta da década de quarenta. O personagem central, um comandante da Marinha de Guerra, em missão burocrática em terra, ocupa o seu tempo de folga em conversar com os jovens de uma cidadezinha do interior onde trabalhava. Como possui expediente curto no escritório da Capitania, a maior parte do tempo ele dedica aos seus encontros com os jovens na praça da cidadezinha, em frente à igreja. Homem cultivado, conhecedor do mundo, viajado, falando vários idiomas, os temas das conversas transcorrem em torno da história da civilização. Entram em debate as questões de nossa formação humana e social, os contingentes europeus, africanos e indígenas formadores de nossa história. A música, a arquitetura, a religião, entram em pauta nessas conversas. É o assunto de que se ocupa a novela O Comandante.

O romance alcança um espaço maior, envolvendo vários personagens, às vezes distintos em suas características. Considero o romance a mais alta forma de expressão literária, a mais complexa e a mais abrangente, herdeira da antiga epopéia. Nesta fase de minha vida, quando disponho de todo o tempo necessário à atividade literária, aventurei-me a escrever o romance O adeus de Diana. A sua trama acontece numa pequena comunidade do interior amazônico, também, como em O Comandante, com a diferença de que as ações deste livro jamais saem do âmbito da sua geografia. Tentei situar no corpo do livro os personagens da beira do rio, pescadores, trabalhadores da floresta, comerciantes, políticos, religiosos, etc. Diana morre na primeira página do romance, mas, por sua beleza e por sua simpatia, pelo sentido de sua liderança no lugar, todos vivem, ao longo da narrativa, sob a influência de sua memória. O tempo transcorre no espaço de vinte e quatro horas, que vai da morte de Diana ao seu enterro, contado nas últimas páginas do livro. Não há, portanto, suspense, mistérios que levem o leitor a se ocupar em descobrir isto ou aquilo ao longo do texto, porque o seu interesse maior se houver, pelo menos foi esta a minha intenção, é mostrar a vida numa comunidade da beira do rio. Não deixa de encerrar um paradoxo, porque acabo por mostrar a vida através da morte. Em síntese cuida-se de um romance de costumes.

Mas é preciso dizer que o meu trabalho com a prosa de ficção começou com o romance O adeus de Diana. Ao concluí-lo tive a idéia de compor uma trilogia. Como este romance aborda a questão dos costumes, pensei em escrever um outro livro sobre a história, a história do nosso povo, que acabou sendo a novela O Comandante, de que já lhes falei linhas acima. Precisava escrever, portanto, o terceiro livro da trilogia que abordaria o aspecto lendário de nossa gente. Dei ao trabalho o nome de Trilogia Amazônica: o homem e o rio, e o terceiro livro dediquei à lenda, com o título de Tauacuéra, a cidade desaparecida, que chamei de rapsódia.

O livro Tauacuéra tem por módulo principal o confronto do Jurupari com a Iara, ambas as lendas oriundas do rio Negro, com a participação do Boto, da Cobra-Grande, dos animais que falam, quadrúpedes e aves e de todos os bichos da floresta. Entram os peixes e os insetos. Tentei envolver na narrativa a biodiversidade amazônica, ao mesmo tempo em que trago ao debate as velhíssimas questões do bem e do mal, movido pela natureza do Jurupari que, segundo a lenda, é uma entidade composta de Profeta e Satanás, espírito que não se corporifica, ao contrário de outras entidades da floresta que podemos descrever como o Curupira, o Mapinguari e a própria Iara. A narrativa é, também, uma reflexão sobre o sentido do masculino e do feminino presente na conformação de nossa personalidade. Este fato foi inspirado na origem da Iara que, segundo a lenda, era um jovem índio valente e belo que se insurgiu contra o governo dos velhos, confrontando-se com o próprio pai e, por isso, condenado a morrer afogado no meio do rio. Foi lançado n’água preso a uma pedra enorme. Aí vieram os peixes e não deixaram que aquele jovem morresse afogado e o mantiveram boiando a tona do rio. Espantados, os carrascos voltaram rapidamente para a beira, tremendo de medo. Na medida em que a noite avançava o índio ia-se transformando em mulher, mulher bela, morena e de cabelos longos e negros como as águas do rio.

Movido por estas duas lendas básicas, busquei um aprofundamento psicológico no conflito entre o bem e o mal, e do feminino e do masculino, repito. As ações acontecem com muito teatro, dança e canto. E muita música. Por isso batizei o texto de rapsódia, que é uma forma de arte musical, geralmente inspirada nos patrimônios lendários de um povo.

Minha experiência com a prosa despertou-me a consciência de que se não dispusesse de tempo eu não teria tido condições de realizar o trabalho. A poesia a gente escreve em toda parte e em qualquer lugar. Lembra-me o episódio do Pe. Anchieta que escreveu nas areias da praia o seu famoso poema à Virgem. Mas a prosa requer maior concentração no trabalho braçal de escrever, e tempo para pesquisa e realização do texto.

Somos tentados a pensar que os personagens da ficção constituem o retrato deste ou daquele elemento da vida real. Na minha experiência o personagem da prosa de ficção é uma composição elaborada a partir de aspectos semelhantes da personalidade de várias pessoas, de várias figuras da vida real. Tal como toda obra de arte, tudo no romance, no conto, na novela, é composição, sobretudo os personagens. De repente o personagem é o próprio autor, como aconteceu no célebre episódio de Flaubert que, indagado, no processo rumoroso sobre a moralidade de Madame Bovary, na questão de quem era o modelo de sua personagem, ele responde: Bovary sou eu.

A prosa de ficção, em si mesma, hoje se beneficia de muitas vantagens das técnicas modernas de ver o mundo. Balzac, ele que foi o pai do romance moderno, gastou muita tinta e papel para descrever os pormenores dos ambientes e das características dos seus personagens, no grande painel que é a sua monumental Comédia Humana, que reúne 90 romances, escritos a partir de 1842. Já no século XX, Proust escreveu o ciclo de romances intitulado Em busca do tempo perdido, composto de 6 livros e abordando um universo semelhante ao de Balzac. A diferença é que Marcel Proust beneficiara-se já, na sua técnica de escritor, das conquistas do cinema, por exemplo, que é a arte do tempo, do corte no tempo. Desde aí a arte do romance deu um salto em termos de conquista do tempo e passou a ter um menor volume de palavras na sua realização.

Nessa linha procurei realizar o meu trabalho, deixando ao leitor oportunidade para que imagine a complementação daquilo que está demonstrado no corpo do texto. Com o aspecto poético da concepção e da realização da obra. Afinal, a prosa de ficção nasceu da poesia. Os primeiros romances no mundo ocidental foram escritos em versos, em poesia. A Odisséia de Homero era um romance, tanto é que James Joyce, modernamente, concebeu o seu famoso Ulisses, que é marco na prosa de ficção atual, a partir de Homero. Mais próximo de nós existe o Cantar de Mio Cid, poema do renascimento espanhol, que é também um romance. Em Português temos os poemas do Romanceiro, reunidos por Almeida Garret, onde se encontram obras-primas como a Donzela que vai à guerra e A nau catarineta.

Os primeiros romances em prosa, marcados ainda com a atmosfera do fantástico dos romanceiros, guardaram no conteúdo traços de fantasia que só vieram a desaparecer com a presença de Balzac, ocupando-se em por em relevo a vida parisiense, a sociedade parisiense escravizada pelo dinheiro. Ele mesmo foi um escravo do dinheiro, pois trabalhava e editava os seus livros, por isso às vezes eivados de falhas técnicas, para ganhar o dinheiro com que pagava as dívidas cada vez mais volumosas. Diga-se de passagem, que Balzac foi um dos primeiros profissionais da pena, a viver do seu trabalho literário, e o primeiro grande sucesso de livraria, também.

Estou chegando ao fim de nossa conversa. Mas não gostaria de encerrar sem antes me referir aos contos que agora escrevo dirigidos ao mundo da infância. Reporto-me a uma série de dez estórias de um menino e sua aventura na floresta amazônica.

Acho que as nossas crianças precisam ocupar-se com as nossas questões, dando asas à imaginação como é necessário ao processo educativo, mas tomando consciência de nossa realidade humana. As crianças nas escolas lêem os clássicos da literatura infantil, que se impõem necessárias à imaginação dos pequenos. Ocorre que, na atualidade, há textos produzidos por autores de outras regiões, abordando temas que nada têm a ver com a nossa terra. Há necessidade de se escrever mostrando a vida na Amazônia, e é atendendo a esta preocupação que me dedico, também, a esta experiência de literatura infantil.

Peço perdão se me estendi demais sobre os temas deste encontro. Devo desculpar-me também por me ter ocupado de mim mesmo nos minutos desta palestra. Espero não ter perdido tempo em conversa fiada. Enfim, o que tentei foi colaborar com os estudos de vocês sobre a experiência com a poesia e a prosa, no esforço de realizar a arte literária. A literatura trabalha a realidade. Realidade humana, social e geográfica, criticando, interpretando, transformando.

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145 Palestra dirigida a universitários de Cursos de Letras em Manaus.

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