Manaus, 27 de julho de 2024

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

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Continuação ….

Cultura

II

A Amazônia Ocidental

Depois é só pegar as cascudas viradas com jeito, peiar-lhes as patas com enviras, deixando-as imobilizadas, e carregá-las para dentro das canoas.

A nomeação de um comandante de praia, investido das funções de ordenador do movimento dos tabuleiros de tartaruga, constituía uma política preservacionista do governo mantida por algum tempo, antes dos estímulos aos criatórios de tartaruga hoje correntes na Região.

Nessas viagens, além dos nossos pareceiros caboclos e dos nossos parentes, meu pai desembarcava no porto de um espanhol e de um português. O espanhol era agricultor, plantava cacau; o português, comerciante. Na inocência dos meus cinco anos, nada me falava aquela realidade, afinal, minha preocupação maior era não ser perseguido pelos cachorros que dormiam enrolados nos buracos rasos, cavados nos terreiros daquelas casas. Os cachorros do interior gostam de correr atrás dos meninos, como se fossem dotados do humor dos implicantes, nem tanto para morder, mas no simples intuito de meter medo às crianças. Corri feito doido inúmeras vezes, perseguido por esses bichos dados a brincadeiras de mau gosto…

Sucede que ao ficar taludo, passei a me preocupar com as questões da expressão literária. Senti necessidade de interpretar aquela realidade, inquietando-me com reflexões sobre a vida daqueles homens. Suscitaram-me algumas perguntas. Por exemplo, que força poderosa teria impulsionado aquele espanhol e aquele português, a se instalarem às margens do Paraná de Serpa, um verdadeiro fim de mundo, consideradas as distâncias que os separavam das suas pátrias de origem no outro lado do Atlântico? A casa do espanhol guardava traços de uma arquitetura ancestral, construída de madeira, os esteios e os assoalhos lavrados a machado e a enxó, a cobertura de palha de babaçu. Nas paredes de taipa um relógio de pêndulo pendia marcando as horas, solenemente, sob a música dos carrilhões.

Mas nem todos eram solares sofisticados. Existiam moradias humildes que eram as habitações dos nossos pareceiros caboclos, com paredes e pisos de paxiúba, cobertas de palha de babaçu, cachorros magros que pareciam não ter ânimo nem de latir. Sovinavam alimentos a esses cães, não tanto por falta de comida, mas pelo entendimento dos seus donos de que cachorro magro é que é bom para a caça. Afirmavam eles que cachorro gordo é preguiçoso, não presta para caçar. Por isso não existiam, naqueles rincões das moradas humildes, nem cachorros gordos nem relógio na parede, nem em lugar algum. As horas eram medidas pela posição do sol, durante o dia, e, de noite, pela situação da lua e das estrelas, observadas a olho nu.

Para mim eram vastos aqueles estirões de viagem. Remavam-se horas seguidas vendo só água e floresta. Lá pelas tantas despontava, entre os galhos das árvores lavados pelo rio, uma casa com a marca da presença do homem. Ou do homem trazendo às costas a herança da Cultura Ocidental, com o seu relógio de pêndulo marcando as horas com o som dos carrilhões na parede, ou o homem de pés descalços com os seus cachorros magros, mas bons de caça…

Esses homens construíram o universo da nossa cultura, sem jamais se desvincularem da floresta e do rio, nem os nativos dos cachorros magros, nem os adventícios dos relógios de carrilhões.

E assim foram criando as imagens que brilham na poesia e na prosa, na música e na dança, nos ritmos do canto, na luz da pintura, enfim, no modo de ser da nossa gente, nas atitudes, no comportamento, na forma de se vestir, na hora de elaborar a deliciosa cozinha, os suculentos refrescos, nos momentos consagrados ao amor.

III

Mas, a individualidade política da Amazônia foi-se firmando com o impulso de um ajuste de contas, tantas vezes desigual, e, na maior parte sangrenta, do europeu com o índio, durante mais de quatro séculos. Desde o início da sua história aos nossos dias. Dos embates entre os primeiros conquistadores com os nativos que aqui já viviam há milênios. Num tempo que não se conseguiu ainda definir de forma completa, devido às dificuldades impostas aos pesquisadores pelas próprias características da Região, embora se alimente, entre outras, a hipótese de que o homem está nas Américas há cerca de 40 mil anos, tendo-lhes penetrado pelo Estreito de Bering, segundo informação da arqueóloga Betty Meggers. Há outras hipóteses de que o homem da Amazônia talvez tenha vindo da Polinésia, pelo Oceano Pacífico.

Fez-se nas lutas com os primeiros invasores. Do repúdio aos invasores que vieram depois. Fez-se nesses embates, até chegar à paz alcançada pelo bom entendimento entre os elementos da cultura da terra e dos que vieram de fora na idade moderna, sob a ação de guerreiros e sacerdotes e dos humanistas logo adaptados aos determinismos das circunstâncias geográficas.

Trouxeram bens e trouxeram males. A sífilis e a gripe chegaram com eles. Araújo Lima7 informa que o impaludismo, doença dos paludes, também conhecida por malária, sezão, maleita, veio na infecção das suas veias. Djalma Batista ensina que pelo menos a hanseníase e a tuberculose foram doenças trazidas pelo colonizador. Diz, textualmente, esse notável médico e pesquisador acreano, eminente amazonólogo:

O primeiro tuberculoso conhecido no país foi o padre Manoel da Nóbrega, que veio com o primeiro Governador Geral, Tomé de Souza, e entrou heroicamente para a história brasileira, apesar de ter disseminado a sua doença, consoante estudo de Alberto Silva, em 37 anos de evangelização, enquanto tossia, escarrava e apresentava surtos hemópticos. É claro que a Amazônia não podia faltar na disseminação do mal, e para ela foi trazida por padres, soldados e aventureiros.

Se o fato é ilustrativo em relação aos males do corpo trazidos pelo colonizador, quanto ao aspecto de sua ação missionária essa condição do grande jesuíta em nada o diminui, finalmente a tuberculose àquela altura da vida no mundo era de difícil ou quase desconhecido tratamento. E, nem por isso, debilitou no missionário o ardor com que cumpriu o ministério numa terra para ele selvagem e desconhecida.

O colonizador ao chegar à Amazônia trouxe, também, o preconceito da preguiça e da mentira em relação ao nativo. A partir daí toda gente apregoa que o caboclo amazonense é preguiçoso e mentiroso, como se esses vícios de personalidade não constituíssem marcas do comportamento humano arraigadas na história da humanidade como genuínos arquétipos.

Não existe povo preguiçoso, nem, tampouco, homem preguiçoso em consequência das suas origens étnicas. Da minha parte jamais concebi ideia tão absurda. Como pode ser preguiçoso um homem que executa operações de trabalho só reservado a criaturas excepcionais? Cansei de ver na minha infância a travessia do rio numa das partes onde o rio Amazonas é mais largo, tão largo que longe se divisa na outra margem a terra alta e a floresta como se fossem estreitas listas vermelhas e verdes no tempo das secas. No período das cheias as águas altas oferecem a impressão de que o rio é mais largo ainda.

Pois então, da Costa do Tabocal para a margem esquerda do Paraná de Serpa, numa distância por volta de 10 km, sem contar com o peso das águas barrentas e correntes do Amazonas, o caboclo atravessava o rio sozinho à vela e, quando faltava o vento, no punho do remo, num tempo em que o motor de popa ainda não era tão popular nas nossas largas avenidas de água. Onde a preguiça desse homem? E os roçados feitos a muque, após a derrubada de árvores volumosas na base do machado, na época em que ainda não existiam por ali os famigerados motosserras? E a pescaria do pirarucu e do peixe-boi, executada por meio do arpão, que exige força e disposição do pescador para lidar com esses possantes animais da água em sua captura? Fosse o caboclo um preguiçoso, ele não se lançaria jamais a essas façanhas. Enfim, a todos os atos destinados a lidar com a floresta monumental e os rios oceânicos, é preciso que o homem tenha coragem e disposição, duas forças da natureza humana que não admitem ao mesmo tempo a preguiça.

Ao contrário, a preguiça, conforme tenho observado, nasceu na humanidade junto com a ideia de trabalho. Pelo menos na formação da Cultura Ocidental. Os gregos, nos tempos áureos, alimentavam desprezo pelo trabalho. Só aos escravos era permitido trabalhar. O homem livre dedicava-se aos exercícios físicos e os jogos de inteligência. Mais tarde os romanos acrescentaram a estes a prática das armas e as emulações da política, índole afinal herdada pelo colonizador europeu.

Aqui chegando ele tentou aplicar esse hábito ao homem da terra, mal sabendo que o índio se concebe também um homem livre. Ele sabe quando está bom para caçar, pescar, plantar e colher, e não se deixa submeter nem a qualquer forma de medida do tempo. Não cultiva obrigações, não almeja amealhar ou acumular valores pecuniários. Seu maior objetivo é viver. Segundo as observações do Edison Farias, o índio, dentro de seu povo, era considerado e se considerava parte importante da comunidade. Não havia, nem há, no mundo do índio, o nobre e a malta, como no mundo europeu.

O colonizador, de sua parte, trazia outra visão de mundo, vinha movido pela vã cobiça. O que o atraia eram os sonhos de riqueza propiciada pelas especiarias de fabuloso valor no mundo civilizado. Por ser um greco-romano de alta classe, habituado a não cultivar a boa prática do trabalho e acostumado a dedicar-se, apenas, aos exercícios físicos e o cultivo das armas e aos jogos de inteligência – aqui tentou, então, escravizar o índio.

Mas o índio não entrou nessa. Ele era um homem livre, também, quem sabe tal como os gregos dos tempos áureos, e não se deixava escravizar…

Daí o colonizador não ter outra saída senão a de impingir-lhe a pecha de preguiçoso. E preguiçoso ficou, num estigma que enodoa o jeito de ser do caboclo amazonense até os nossos dias. O que nos cabe é apagar essa mancha da lousa da história.

É outro erro de abordagem chamar o amazônida de mentiroso. Informa o educador e religioso Vanderlei Gabrício que a conclusão a que chegaram filósofos, cientistas políticos e psicólogos, ao estudar a matéria, é que a

(…) mentira e engano estão nos nossos genes, foram e são o motor da evolução. Os biólogos presumem que o desenvolvimento do cérebro humano só foi possível por ter que lidar com enganos.

Mas existem os mentirosos patológicos, estudados por psicólogos e psicanalistas em vários centros acadêmicos do mundo, os que mentem de maneira compulsiva. Mentem-se a ponto de se construírem uma imagem falsa de si mesmos.

Não é, portanto, a mentira vício característico de um povo. A não ser que se queira confundir o conceito de mentira, tal como acima está exposto, com o comportamento mítico em relação ao mundo, esta sim uma condição dos povos primitivos e dos ameríndios como tais…

O colonizador trouxe, portanto, males do corpo e males do espírito. E quais foram os bens trazidos pelo colonizador?

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7 ARAUJO LIMA, José Francisco de (Vila de Muaná, PA 1884 – Rio de Janeiro 1945), médico e

escritor, in Amazônia, a terra e o homem.

 

*Poeta e ensaísta. Membro da União Brasileira de Escritores do Amazonas da Academia Amazonense de Letras do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas

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