Nascimento de Itacoatiara
A ação dos jesuítas na Amazônia, sobretudo no século XVII, resultou na criação de aldeias ou missões que originaram a maioria dos núcleos urbanos regionais. A sede municipal de Itacoatiara teve por berço o rio Madeira, apelidado pelos índios de Caiari. Foi “descoberto” por Francisco de Orellana em 10 de junho de 1542 e o nome Madeira foi-lhe conferido em razão de que, no período chuvoso, seu nível sobe inundando grandes porções de floresta fazendo descer muitos troncos de madeira. Pela sua foz passaram quase todos os sertanistas e missionários que iam e vinham ao Alto Amazonas, desde a viagem de Pedro Teixeira, em 1637-1639. O escrivão da frota do sertanista português, padre Cristóbal de Acuña, foi o primeiro a dar etnônimos aos grupos humanos da região do Madeira.
O processo de implantação de missões jesuíticas nesse gigante fluvial foi iniciado pelos padres Manuel Pires e Manuel de Souza, os quais em 1660 criaram a missão de Tupinambarana. Com a expulsão dos jesuítas em 1661, a povoação foi esvaziada e só se firmaria a partir de 1669 quando seus habitantes aceitaram ser evangelizados por João Felipe Bettendorff, o qual se fez acompanhar do padre Pedro Luiz Glui e do irmão Domingos da Costa. Reclamando do local que era infestado com focos de mosquitos, os moradores foram convencidos por Bettendorff a mudar o povoado para um sítio mais adentro, próximo de um lago entre o os rios Amazonas e Andirá.
Bettendorff atestou a capacidade dos grupos indígenas do rio Madeira de manterem-se abastecidos durante todas as estações do ano. Em sua crônica histórica, apresenta informações sobre a subsistência das comunidades locais, detalhando os alimentos mais consumidos e obtidos em maior quantidade naqueles idos. Ele opina sobre o rio nestes termos:
“[…] É este rio da Madeira um dos mais famosos que há pelo Estado, por grande e espaçoso, porém demorado pela caldeiras que tem, e quase somem as canoas com tudo o que levam, havendo descuido dos guias ou pilotos, e tem várias castas de peixes, até peixe-boi, piraíbas, mas os índios não os comem, sustentando-se de uma casta de peixe que chamam tambaquis mui gostosos; suas águas são as mesmas como as do rio das Amazonas, pois é braço dele, que muitas jornadas para cima se reparte, fazendo uma ilha grande em que moram os Irurizes, os Jaquezes e muitas outras nações. […] Tem ares e águas bastantes boas, terras fortes para mandiocas, matas abundantes em caça, fontes e rios fecundos em peixes, nem faltam tartarugas a umas jornadas de lá, porque são tantas que o Padre tinha aquele ano umas mil por sua parte, em um curral”.
Referências à população numerosa já estavam presentes desde a descida do rio Madeira, realizada em 1650 pelo explorador Antônio Raposo Tavares (1598 – c.1659) com sua bandeira composta por mamelucos paulistas e indígenas. Ressalvada a chamada área intermediária Tapajós-Madeira – onde se destacavam os Tupinambarana –, as cinco etnias mais ao centro do Médio rio Madeira compostas pelo grupo linguístico Iruri, contavam-se em grande número.
Os Iruri eram uma população privilegiada pelo padre Bettendorff. Dominavam um grande sítio que apresentava caça e pesca abundantes, “[…] os pássaros eram suas presas preferidas e, devido a seus tabus alimentares, excluíam da dieta os porcos do mato, os peixesboi e a piraíba. Mantinham a poliginia e temiam que suas mulheres sofressem ataques dos Jaquezes, aos quais acusam de canibalismo”. Eram vizinhos, porém, inimigos: os Jaquezes tinham especial predileção pela carne das mulheres Iruri: “achando-as, as trespassam com umas lanças que chamam zagaias, e apanhadas, lhes quebram o espinhaço, repartindo-as em quartos e as levam, deixando a zagaia com suas penas em o lugar da matança, como pagamento de sua presa”.
A Mitologia está associada à História de Itacoatiara. Bettendorff e outros historiógrafos seiscentistas atribuem a origem dos Iruri a uma Deusa que veio grávida do céu e, na floresta, deu à luz cinco filhos. O primeiro se chamava Iruri, o segundo Unicoré, o terceiro Aripuanã, o quarto Torori e o quinto Paranapixâna. Desgostosa por ter sido flagrada pelos filhos comendo tambaqui moqueado, um dia a Deusa Iruri voltou para o céu, nunca mais aparecendo na terra. Os cinco meninos permaneceram na floresta e deram origem a cinco aldeias.
Os Iruri, sobre os quais havia argumentos de que não fizessem parte do tronco linguístico Tupi, Bettendorff os define como “[…] nação afamada sobre todas as mais […] índios de linhagem nobre; tinham vassalos em seu próprio território. Grupo de língua isolada, dóceis coletores e ao mesmo tempo agricultores, eram peritos em torrar farinha e conservar peixes”. Governados pelo cacique Mamorini, cujo nome lembrava a mamorana-grande, irmã da sumaumeira, foi “[…] escolhido em função de suas qualidades e de seu prestígio e, em caso de sua morte, o mais capaz entre eles assumia o cargo”.
A fundação do núcleo originário de Itacoatiara foi respaldada nas cartas régias portuguesas de 1º de abril de 1680 e 7 de março de 1681, baixadas pelo regente Pedro II: tratavam sobre criação, regulação e mantença das missões (residências) jesuíticas na América Portuguesa. Tais dispositivos foram inspirados pelo padre Antônio Vieira que, em 2 de abril de 1680, enviou de Lisboa correspondência ao então Superior regional em Belém, padre Pedro Luís Gonçalves (1629-1683), alertando-o sobre “a enorme população de índios mansos” existente no Madeira e incentivando-o a instalar ali uma nova missão ou residência jesuítica.
Quando se preparava para ir ao rio Madeira, em dezembro de 1682, o Padre Superior Pedro Gonçalves enfermou gravemente e em seguida morreu. Nomeado substituto, o padre suíço Jódoco Perez (1633-1707) partiu em missão de catequese tomando a direção do Alto Amazonas e fez-se acompanhar do irmão leigo Antônio Ribeiro. O novo Padre Superior deixou Belém no início de 1683 e, segundo Bettendorff, “[…] navegou pelo Madeira [e] depois de uma viagem de nove dias, alcançou os Iruri”.
Os “nove dias” de viagem citados por João Felipe Bettendorff correspondem ao trecho ‘foz do Madeira-Mataurá’, numa distância próxima dos 350 km, representando talvez um quinto da viagem total entre ‘Belém e Mataurá’, avaliada em mais de 1.500 km. No percurso houve dezenas de paradas, a maioria delas para consertar a canoa, descansar, dizer missa e se municiar de víveres. Segundo apuramos, em pesquisa séria, demorada, a viagem de Jódoco Perez, até o local onde foi instalada a nova missão, durou 89 ou 90 dias! O próprio Bettendorff confirma o fato, embora noutra circunstância, narrando: “[…] Para fazer nova missão na aldeia Iruri gastaram [-se] três meses de viagem sem perigo”.
Realmente: Jódoco Perez e seus companheiros, embarcados numa canoa grande movida a remo e à vela, deixaram Belém no dia 9 de junho e à tardinha de 7 de setembro alcançaram o sítio-sede da nação Iruri, instante em que houve, entre indígenas e equipe do líder jesuíta, a costumeira troca de presentes. No outro dia, dedicado à Natividade de Nossa Senhora – comemorado à época como Dia de Nossa Senhora da Luz – Jódoco Perez mandou erguer uma Cruz no centro da aldeia e rezou a Primeira Missa. Era 8 de setembro de 1683 e ali nascia a futura Itacoatiara.
Depois de uns 15 dias entre os Iruri celebrando missas, catequese e batismos, Jódoco Perez baixou levando consigo o filho do cacique Mamorini, que mais tarde retornaria aos seus parentes como intermediário nas negociações com os jesuítas. Mas, antes de partir, comprometeu-se com os nativos em mandar padres para assisti-los e continuar os trabalhos missionários. Serafim Leite disserta a respeito: “Jódoco Perez deixou bem dispostos os Iruri, e baixou com um filho do Principal que no Colégio do Pará aprendeu além do português a língua tupí”.
A História de Itacoatiara é vasta e complexa, e a análise de seus fundamentos não é para amadores e tampouco para negacionistas. O bom senso aconselha: em História nada é definitivo, mas o historiador deve insistir em cismar, deter o pensamento em busca da verdade. Quaisquer objeções a respeito da data e do local de nascimento de Itacoatiara não me parecem importantes. A quase unanimidade dos historiadores regionais tem se manifestado favorável aos fatos, conforme demonstraremos em seguida.
O etnógrafo Lourenço da Silva Araújo e Amazonas (1803-1864), refere: “Itaquatiara (Nossa Senhora do Rosário de): Freguesia na margem setentrional do Amazonas […] Provem-lhe o nome de umas pedras que a vazante descobre em seu porto. […] Também já teve o de Abacaxis, da terceira situação que teve nas margens deste rio, tendo sido a primeira, no rio Mataurá, confluente do Madeira, fundada pelos jesuítas”.
O vigário-geral da Capitania de São José do Rio Negro, padre José Monteiro de Noronha, afirma: “Vencidas duas léguas se chega à vila de Serpa, situada na paragem chamada das pedras pintadas; e no idioma geral dos índios: Itacoatiara. Esta vila foi a primeira vez fundada no rio Mataurá, que faz barra na margem oriental do rio da Madeira. […] De Mataurá se mudou para o rio Canumã. Deste, para o rio Abacaxis. Deste, para a margem oriental do rio da Madeira pouco abaixo do furo, de que se faz menção no parágrafo 68. E desta paragem, para a em que presentemente está. Os seus primeiros povoadores foram os índios da nação Iruriz, aos quais se agregaram os da nação Abacaxis, e de outras muitas”.
O historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, ensina: “Os padres da Companhia de Jesus tomaram a seu cargo os índios do Madeira. […] Dependendo de esforços inauditos, conseguiram reunir índios na foz do Maturá, de onde passaram para o Canumã. Ainda daí, tiveram de mudar-se levando os catecúmenos para a boca do Abacaxis. […] Em 1757, o nascente povoado foi transladado para a margem esquerda do Amazonas, a um sítio de pedras pintadas conhecido por Itacoatiara. É a cidade desse nome”.
O historiador e ex-juiz de Direito da Comarca de Itacoatiara, Manoel Anísio Jobim, diz: “[…]: Levanta-se a cidade de Itacoatiara em belo platô cenolítico à margem esquerda do rio Amazonas sendo para aí transladada em 1759. […] Este local não foi o primeiro a ocupar a antiga povoação que lhe deu origem. […] É assim que nasceu na foz do Maturá”.
O historiador Francisco Jorge dos Santos, professor aposentado da Universidade Federal do Amazonas, comenta: “No Madeira os jesuítas fundaram uma missão entre os índios Iruri (1683) na boca do Maturá. No ano seguinte passaram a assistir os Parapixãna, Aripuanã, Torerizes e Onikoré, provavelmente a partir dessa missão-sede. Em 1691, essa missão é transladada para a aldeia dos Abacaxis, na confluência Madeira-Canumã, mais tarde (1757) foi mudada para a margem esquerda do rio Madeira, recebendo a denominação de Serpa e, finalmente – com nova mudança para a margem esquerda do Amazonas –, a de
Itacoatiara”.
Consequentemente, o núcleo originário de Itacoatiara data de 1683. Nasceu no rio Mataurá, foi transferido para Canumã, daí para Abacaxis (afluentes do rio Madeira) e, finalmente, para o local onde está assentada a cidade (na margem esquerda do rio Amazonas). Cópias dos mapas cartográficos de 1690 e 1729, colhidas dos originais depositados na Biblioteca Nacional da França – que anexamos à página 105 ao final do presente Capítulo – ratificam os depoimentos acima.
O emérito historiador Pedro Calmon (1902-1985), ao prefaciar em 1942 o livro de Arthur Reis, “A Conquista Espiritual da Amazônia”, além de atestar o valor da obra e decantar o “gênio obstinado” do agora saudoso historiador amazonense, brindou com palavras incentivadoras aos que se ocupam em pesquisar e revelar fatos históricos: o autor [todo autor] não deve exagerar, não se exceder em panegíricos fáceis, não se extraviar em considerações vagas; deve aliar datas, recoser fatos, disciplinar topônimos… descobrir e revelar a verdade. Dar a Deus o que é de Deus e aos homens e mulheres o que lhes pertence.
Finalizando a descrição dos fatos… No retorno de sua viagem ao Madeira, o padre Jódoco Perez alcançou Belém em outubro de 1683 e em fevereiro do ano seguinte estoura a revolta de Beckman, motivada pela insatisfação dos homens de negócio com as medidas tomadas pela administração colonial na questão do comércio e na obtenção de trabalhadores escravos. A insurreição resultou na segunda expulsão dos jesuítas da Amazônia – acontecimento que também concorreria para atrasar os planos de desenvolvimento da missão dos Iruri.
Jódoco Perez passou dois anos em Portugal. Retomaria o cargo de Superior dos jesuítas, em 1687, e só no ano seguinte mandaria amiudar as entradas missionárias nos sertões do Madeira. Para reativar a missão dos Iruri, Jódoco enviou de Belém os padres João Ângelo Bonomi (1656-c.1711) e José Barreiros que, nas festas de Natal, levaram de volta o filho do tuxaua Mamorini, já batizado e conhecedor da Língua Geral. Eles alcançam a aldeia em março de 1689 e são surpreendidos com a presença de colonos de Belém explorando cacau, cravo e outras ‘drogas do sertão’ e apresando indígenas.
Nos primeiros instantes da sua estada no Madeira, os missionários pensaram até em desistir da missão, quase perderam a cooperação do cacique Mamorini. Segundo Bettendorff, crédulo das ameaças que os padres representavam ao seu modo de vida, o líder Iruri partiu para uma roça sua enquanto os missionários seguiram para a aldeia. “[…] Somente após tratativas, nas quais foi avisado de que, caso não retornasse, os padres voltariam a Belém, Mamorini regressou e enviou mensagens avisando a todas as aldeias pertencentes aos Iruri para que viessem visitá-los. Vieram eles com seus costumados presentes e, diante da boa vontade e dos pedidos para que também fossem às suas aldeias, os missionários recomendaram que cada grupo construísse igreja e casa que pudesse abrigá-los em suas visitas”.
Durante um ano, os padres João Ângelo e José Barreiros trabalharam junto aos Iruri e, antes de adoecerem e partirem, em fevereiro de 1690, já haviam iniciado a catequese e a construção da residência paroquial, do depósito e outras dependências necessárias ao progresso da missão. Em pouco tempo ela estava aparelhada com casas e igreja, sendo esta servida de uma imagem de Nossa Senhora do Rosário trazida do Maranhão. Inobstante, faltavam castiçais e um vaso para comunhão; rareavam as toalhas do altar pobre; enfim, a igreja de madeira e palha precisava de um sino.
Apesar dos progressos na implantação de Mataurá, ambos os missionários adoeceram e foram obrigados a retornar a Belém. Somente padre João Ângelo tornou à missão, no início de 1691, mas não ficou muito tempo, pois enfermado novamente afastou-se dali. Na ausência de João Ângelo, os Iruri, devido ao fato de “serem estas terras mui doentias”, foram deslocados para a aldeia de Canumã, à margem direita do rio homônimo, quase na sua confluência com o paraná do Urariá, distando uns 280 km do pouco original. Por outro lado, há o ingrediente apontado por Serafim Leite segundo o qual, durante a ausência dos missionários, vieram
“[…] os brancos e cativaram grande número de índios com grande escândalo dos mesmos índios, e protesto dos padres; não poderiam pensar os índios que eles o tinham ajuntado para serem mais facilmente cativos?”.
Do lamentável acontecido se queixaram efetivamente os índios, e os padres ainda mais que eles. E, assim, os jesuítas, desgostosos, se escusaram de permanecer trabalhando em Mataurá. Em junho de 1691 transferiram a missão para a ribeira de Canumã.
* Capítulo Sétimo do livro As Pedras do Rosario do Autor.
Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/
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