Manaus, 18 de outubro de 2024

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

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Continuação ….

Cultura

III

A Amazônia Ocidental

Nos bens situa-se a ação civilizadora. Mas a ação civilizadora do colonizador teria sido um bem, é o caso de indagar face aos conflitos causados pelo choque das duas culturas nesse processo, saindo derrotado o homem da terra? Até nos períodos de convívio pacífico tem sido degradante o contato do colonizador com o nativo. Nesta linha de raciocínio é o caso de indagar se é um bem a Civilização Ocidental como se realizou e como está hoje. Não deve ter sido fácil conciliar, o ideal de vida contemplativa e livre do índio, com o pragmatismo cartesiano do europeu, incendiado pelo impulso mercantilista do ideal de riqueza e de conforto material.

Lembrando, ainda, um comentário do Edison Farias, o que se observa é que o cartesianismo deixou o homem ocidental humanamente mais pobre do que o índio.

Lembra-me do episódio observado numa visita feita a comunidades dos índios Saterê-Maué, no alto rio Andirá, em plena Mundurucânia, entre os municípios de Maués, Parintins e Barreirinha, no Estado do Amazonas. Ao entrar em contato com os moradores de uma daquelas vilas, três belas jovens trouxeram à minha esposa uma cuia com bonitas laranjas. No seu rosto brilhava um sorriso de extrema simpatia, demonstrando profunda sensibilidade. Roseli recebeu as laranjas e, emocionada, no esforço de agradecer as moças por aquele gesto de rara delicadeza, manifestou o desejo de remunerá-las pelas frutas recebidas. Levantou a bolsa para ver se encontrava alguma lembrança para agradecer as jovens, mas as moças disseram que não queriam dinheiro, isso de nada valia para elas. Se Roseli quisesse poderia presenteá-las com roupas ou qualquer adorno de uso pessoal. Isso lhes bastava.

Em pleno Século XX, após tantas investidas na mudança de hábitos, levando em conta a invasão dos meios de comunicação, pois naquela vila já havia chegado a TV, experimentava-se ainda, no comportamento daquele povo, o tradicional conflito da vivência do nativo com o colonizador…

Mas admitamos que a ação civilizadora tenha trazido o bem, que a teoria de prosperidade impulsionadora do colonizador tenha sido boa para a Região, tenha trazido os elementos de bem-estar e de conforto, neste caso temos de convir que o fenômeno se deu de forma fulminante. O processo formador do estilo de vida do amazônida, no laboratório genético gerador desses homens e mulheres, preparou o homem da Região para construir um mundo novo.

Na construção desse novo mundo foi-se pondo de lado, no limbo do esquecimento, os elementos da cultura nativa, de tal sorte que mais tarde ela se tornou objeto de estudos arqueológicos, desconsiderada no levantamento do acervo cultural da Amazônia, do ponto de vista da criação artística. A criação artística regional é considerada a partir da produção tocada pela ação do colonizador, ainda que se visualize em suas raízes a influência indígena.

Edison Farias observa que o antagonismo entre o amazônida e a Amazônia, é criado pelo choque dos mitos que fizeram o mundo ocidental e o meio ambiente amazônico que repele esses mitos. Ele afirma que o novo mundo amazônico será criado quando o amazônida se humilhar diante da natureza e confessar como Sócrates: uma coisa sei, que nada sei.

IV

Sabemos, no entanto, que, examinando os acontecimentos da ação civilizadora na Amazônia, dos primórdios da história pós-cabralina aos nossos dias, no ritmo veloz que acima referimos, os mandatários do poder público da Colônia, do Império ou da República, algumas vezes acalentaram, em seus ideais de estadistas, um projeto racional para a Região, movidos pela vã cobiça estigmatizada pelo Velho do Restelo no poema de Camões, ou pelo chamado espírito público no esforço de proteger o território e manter aqui o desejo de posse do colonizador e, depois, a soberania nacional.

Durante o período republicano, vários eventos históricos têm comprovado tal procedimento, como o que resultou das aspirações agitadas pela Revolução de 30. Com esse movimento o Brasil entrava numa fase que inaugurava o processo industrial do país. Em 1940, ao visitar a Região, no célebre Discurso do Rio Amazonas, proclamação histórica realizada em Manaus, o Presidente Getúlio Vargas anuncia o ingresso definitivo da Amazônia ao corpo econômico da nação, como fator de prosperidade e de energia criadora.

O Presidente Vargas simplesmente fazia repercutir, entre os seus contemporâneos, a doutrina de prosperidade que se vinha alimentando desde os primeiros passos da ação civilizadora na Região.

Conta o mestre Arthur Cézar Ferreira Reis, em sua vasta obra de amazonologia, que no Século XVIII, o Ministro Sebastião José de Carvalho e Mello, dos Assuntos Estrangeiros da Coroa Portuguesa, o temível Marques de Pombal, comandou política visando incentivar a prosperidade do interior da Amazônia, criando a Capitania de São José do Rio Negro. E mandou, para dirigi-la, na qualidade de seu primeiro governador e com instruções de buscar essa prosperidade, ninguém menos que o seu sobrinho Francisco de Mello e Póvoas. Para presidir a Província do Grão-Pará que abrangia a toda a imensa planície banhada pela bacia amazônica, mandou o próprio irmão. Assistiu-se, então, a um período de muito progresso na Amazônia.

Mais tarde, já no Século XX, o governo brasileiro instituiu a Zona Franca de Manaus. Viviam-se novos tempos. A Capitania fora criada por meio de um ato absolutista, naturalmente autoritário. A Zona Franca, fora criada por um ordenamento jurídico também autoritário, mas bafejado pelo espírito republicano, fruto de um Decreto-lei, sob o abrigo dos mesmos objetivos políticos.

A filosofia desenvolvimentista se expõe logo no primeiro artigo do Decreto-Lei 288, de 28 de fevereiro de 1967:

A Zona Franca de Manaus é uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância, a que se encontram os centros consumidores de seus produtos.

Como se vê, tanto a Coroa Portuguesa, no Século XVIII, como o Governo Brasileiro, no Século XX, idealizavam, para o interior da Amazônia, a busca incessante da prosperidade e do desenvolvimento que, enfim, são palavras sinônimas. Observa-se, consequentemente, que, nos primórdios da história pós-cabralina, nas origens da teoria e da prática política na Região, foi plantada a semente da prosperidade/ desenvolvimento da Amazônia interior, Amazônia Ocidental, que se espraiou nos procedimentos de hoje.

Nesse ritmo a identidade da Região se cumpre e se vai consolidando. No processo de crescimento vai sendo difícil assimilar as mudanças sofridas pela política de incentivos fiscais. São mudanças compreensíveis para responder aos desafios da dinâmica da vida, como diria o grande Governador José Lindoso8, “realizadas com o patriotismo dos homens de Governo, a disposição empreendedora do empresariado e o poder criador do povo”.

A visão nacional do problema, expendida por esse notável político, no entanto, possuía fundamento num ideário inspirado “pelas mesmas forças, pelos mesmos sentimentos de brasilidade, mas, consciente de uma identidade histórica, na busca de uma personalidade cultural”, conforme as palavras proferidas no discurso de lançamento do Hino do Amazonas, letra do inspirado poeta Jorge Tufic9 e música do genial compositor amazonense Cláudio Santoro9, em setembro de 1980, na solenidade pública realizada na Praça do Congresso em Manaus, na abertura da Semana da Pátria e Semana do Amazonas.

São diversos os exemplos da participação do poder criador do povo nesse processo.

Houve um momento em que se definiam, nas esferas administrativas da Suframa, critérios para a concessão dos incentivos, cabendo valores significativos aos índices de nacionalização a serem avaliados no procedimento industrial. Quanto maiores os índices de nacionalização adotados nos empreendimentos, maiores seriam os incentivos. Entre os elementos constitutivos dos índices de nacionalização ideais foi considerada a mão de obra, arregimentada na maioria entre os jovens, homens e mulheres da Região, que se mostravam ágeis e criativos nas linhas de montagem, tarefas geralmente executadas, diretamente, com as mãos.

Não tenho dúvida em afirmar que essas qualidades são virtudes herdadas do contingente ameríndio, traços da influência indígena que é mestra nos trabalhos manuais, nas artes plumárias, na cerâmica de nobres contornos, na confecção de arcos e flechas, azagaias e arpões, na textura dos cestos de palha. Tudo produto de rigoroso artesanato, com excepcional acabamento, constituindo um capital que não tem moeda que se lhe iguale. Capital que deveria ser aplicado, internalizado, na economia amazônica, e difundido num melhor sistema de distribuição da renda, no combate ao pauperismo, numa rotina que a fortalecesse em sua própria natureza, que é, afinal, o objetivo maior da política de incentivos fiscais, uma providência em verdade provisória, com tempo determinado de conclusão. Deveria ser ainda, uma oportunidade de resgatar as raízes da cultura amazônica, produto do homem da floresta.

A Zona Franca de Manaus, portanto, não é uma obra de aventureiros ou demagogos. É uma obra de quem conhecia a história e respeitava o mito. Os aventureiros chegaram depois, afinal, estas aves de arribação se concentram nas áreas de comedia. Houve comida é um bom lugar. Acabada a comida elas arribam em busca de outros lugares para comer. Não vigora nos seus planos prevenir os dias vindouros de comida. Onde brilha o dinheiro, lá estão os aventureiros. Mas, a Zona Franca de Manaus, ao ter as suas raízes sedimentadas nos segmentos políticos da nossa cultura, está longe de ter a máscara de uma simples aventura. Não é uma iniciativa alavancada por interesses divorciados dos ideais de busca da prosperidade/desenvolvimento da Amazônia interior, pensada com a inquietação dos amazônidas desde o Século XVIII, no mínimo.

Os pensadores da Amazônia, e não me perdoaria se deixasse de incluir, nesse rol, o notável ensaísta Cosme Ferreira Filho11, defendem para Manaus a condição de polo civilizador da América tropical, isso que a capital do Amazonas já começa a ser, abertura mais viável de aproximação com o Caribe e com os nossos irmãos ricos do Norte. Condição que se vem construindo no curso da história, desde a sua revelação ao mundo civilizado.

Assimilada esta circunstância, se possibilitaria o escoamento da produção brasileira, da indústria implantada na Zona Franca, tornando a nossa economia mais eficiente, e, também, mais estável e permanente, com a Zona Franca voltada não só para o Brasil, mas para o mundo.

O fortalecimento da economia, propiciado pela política de incentivos fiscais, possibilita a realização de um diálogo mais proveitoso, concretizando um autêntico intercâmbio econômico e cultural pan-americano, levando em conta, ainda, o seu excepcional mercado, que não é uma realidade divina capaz de determinar o destino das sociedades, mas uma concepção moderna, enfim uma realidade sociológica impossível de se desprezar no exame de tal fenômeno.

Para examinar aspectos do comportamento dos cidadãos da Amazônia Ocidental, podemos tomar como exemplo, mais uma vez, o episódio da Zona Franca de Manaus.

Sua criação foi objeto de um Decreto-lei, ato praticado de cima para baixo, sem interveniência popular. O povo não teve oportunidade de se manifestar num plebiscito, como é recomendável no modo republicano de ser, sobre a sua validade como instrumento de progresso da terra, até por estarem em jogo os tributos que constituem patrimônio inalienável, sangue do sangue do cidadão, do contribuinte, do povo, embora se saiba que houve ilustres amazônidas que trabalharam nesse projeto.

No entanto, ao serem definidas as áreas dos incentivos, a sociedade, a inteligência, a opinião pública, enfim, tomaram conta da ideia e do projeto, defendendo-o com unhas e dentes, sempre desconfiados de que outros grupos, plantados em outras regiões do país, a própria inteligência brasileira, totalmente desinformada em alguns segmentos sobre a história e a cultura da Amazônia Ocidental, conspirassem contra a Zona Franca de Manaus. Afinal a Zona Franca foi constituída com o sangue dos amazônidas.

Tem-se a impressão de que domina o medo a mentalidade das pessoas, expresso por suas lideranças empresariais, trabalhadoras e políticas. Medo da depressão, da falta de perspectivas como ocorreu com o fenômeno da hévea. Não poderia acontecer com a Zona Franca o mesmo que se dera com a economia da borracha. Manaus não poderia mais voltar a ser um porto de lenha…

Ora, mas a Zona Franca é um projeto brasileiro que interessa a todo o país. Não são apenas os amazônidas, muito menos só os amazonenses, os seus beneficiários. Ao contrário, os incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus se consolidaram graças aos tributos recolhidos ao tesouro público pelos amazônidas, ao longo da sua história. Fruto do seu trabalho e engenho criador. Iludem-se os que entendem, por ignorância ou má fé, carência de espírito patriótico ou má vontade, que o governo desviou recursos líquidos, que antes devessem ser aplicados na educação e na melhoria do conhecimento científico da Amazônia, para aplicar na Zona Franca. Nada disso. Com a política da Zona Franca o governo deixou e deixa apenas de recolher, enquanto vigorar, por um período determinado, parte dos tributos gerados pelo trabalho e o engenho criador dos amazônidas. A Zona Franca tem é contribuído com o fortalecimento da economia nacional. Num PIB gerado só no Estado do Amazonas, no valor de 10 bilhões de dólares anuais, cerca de 3 a 4 bilhões de dólares voltam como recursos líquidos para o Centro-Sul do país, segundo dados levantados pelo Economista Edison Farias, a partir de informações da Suframa e estudos publicados do Prof. Samuel Benchimol12.

Por isso a tendência do modelo é permanecer, criando raízes mais sedimentadas na medida em que a economia se interiorize, ainda no espírito que presidiu a sua concepção política. Na medida em que os capitais atraídos ou gerados no polo industrial de Manaus, envolvam-se com a política de desenvolvimento sustentável da Região. Aí mais sólido se manterá o modelo e ficará até onde pode alcançar a perenidade da vida humana. Tudo feito à luz do dia, em benefício sim da Humanidade, mas incluindo, nesse pensar, os brasileiros e os amazônidas, que, obviamente, também fazem parte da Humanidade…

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8LINDOSO, José (Manicoré, AM 1920 – Brasília 1993), professor e político.

9TUFIC, Jorge (Sena Madureira, AC 1930-São Paulo 2018), escritor e poeta.

10SANTORO, Cláudio (Franco de Sá), (Manaus 1919 – Brasília 1989), compositor e maestro.

11FERREIRA FILHO, Cosme (Fortaleza, CE 1893 – Manaus 1976), escritor e empresário.

12BENCHIMOL, Samuel (Isaac), (Manaus 1924 – 2002), escritor e empresário.

Continua na próxima edição…

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