
*Éder de Castro Gama
Continuação…
CAPÍTULO 4
Devoção e Folclore na Amazônia
Este ensaio46 pretende abordar aspectos e motivos de devoção presente nas festividades folclóricas do Estado do Amazonas. Levantam-se três questões para balizar nossa reflexão. Primeiro, na Amazônia ou mais precisamente no Estado do Amazonas, as festividades folclóricas assumem uma dimensão religiosa? Segundo, existe uma associação entre o Santo e a brincadeira folclórica? E terceiro, como ocorre a manifestação religiosa no momento festivo?
É importante esclarecer que, neste momento, não pretendo entrar em discussões sobre folclore e folcloristas, ou teorizar sobre constituições de grupos folclóricos, mas demostrar que, entre outros motivos, há uma dimensão religiosa para aqueles que tomam parte nas “brincadeiras” ou na constituição de grupos folclóricos no Amazonas.
Devoção aos santos Brasileiros
Para responder o primeiro questionamento, pode-se fazer referência à época junina, em que a Igreja Católica na Amazônia e seus adeptos comemoram de maneira festiva as festas de Santo Antônio no dia 13 de junho, São João Batista no dia 24 de junho, e o dia de São Pedro no dia 29 de junho. Estas festividades fazem alusão ao dia de morte dos santos, com exceção de São João Batista, que é marcada ao momento de seu nascimento, que coincide com o solstício de verão na região Amazônica, e o nascimento do menino Jesus, marcado no calendário da igreja Católica no dia 25 de dezembro, dando início ao ciclo de reis, porém muito difundido em outras regiões do Brasil.
Na cidade de Itacoatiara, no Estado do Amazonas, registra-se no ano de 1928, na época das festas juninas, a importância que a sociedade local dava para estas manifestações.
“Festas Joanninas”. Têm se cercado de grande animação as festas joanninas levadas a efeito nesta Cidade. Todas as noites se veem grandes fogueiras em torno das quaes se formam os compadrios e outros parentescos tradicionaes. Foguetinhos, bombas, busca-pés e outros fogos são queimados para gaudio da garotada, que assim, dá vasão ao seu espírito irrequieto e bulhento.
Um bem-organizado e ensaiado boi-bumbá tem sahido em visita às casas de diversas famílias, onde executam seus cantos e danças característico com todo sucesso (Jornal Itacoatiara. Semanário Independente de Noticiário e Propaganda Ano II, Nº XXX. 1928).
Observa-se que as famílias se reuniam ao redor das fogueiras de São João, com seus parentes e amigos, estabelecendo compadrios e casamentos à luz do fogo da fogueira, além da animação das crianças com os fogos de artifícios. O auto do boi-bumbá era encenado na frente das casas, estabelecendo uma rota de apresentações do início ao fim da noite em época de festas juninas.
Cabe lembrar que o verão Amazônico é a estação mais favorável à vida do homem interiorano, considerando possibilidades de exploração socioeconômica, com culturas agropecuárias voltadas para o cultivo das várzeas que são fertilizadas durante as cheias de inverno. As baixas dos rios formam lagos que possibilitam a pesca, o manejo dos rebanhos bovinos entre outras práticas.
É importante deixar claro que as devoções aos santos da Igreja Católica assumem um caráter nacional, tradição que advêm desde o período colonial. Gilberto Freyre (2003) comenta que existem Santos Católicos que assumem um caráter nacional na mentalidade e imaginação do “povo brasileiro”. Dado à atribuição das milagrosas intervenções em aproximar os sexos (casamentos entre homens e mulheres), em fecundar mulheres e proteger a maternidade, os santos mais famosos são: Santo Antônio, São João, São Gonçalo, São Pedro, o Menino Deus, entre outros.
Esta é a importância simbólica que o catolicismo assumiu na formação do hibridismo da cultura brasileira, fruto da tradição colonial entre o branco lusitano, do negro como escravo e do indígena catequizado. Gilberto Freyre (2003) comenta que os santos e os mortos eram partes da família onde, por exemplo, na cantiga de acalento das mães portuguesas e brasileiras não hesitaram nunca em fazer dos seus filhos como irmãos moços de Jesus, com os mesmos direitos e cuidados de Maria, mãe do menino Jesus.
Os Santos eram invocados para proteção e socorro cotidiano, “quando se perdia um dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse conta do objeto perdido”. Nunca deixou de haver no que Freyre (2003) considera como “patriarcalismo brasileiro” ou português a perfeita intimidade com os Santos. “O menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa, lambuzar-se na geleia de araçá ou goiabada; de brincar com os moleques” (FREYRE, 2003, p. 39).
O autor comenta que, no processo de mestiçagem entre o negro e índios, os Jesuítas utilizaram-se de todos os cantos indígenas para atraírem e converterem as populações indígenas à fé católica. Freyre (2003) faz referência a Couto de Magalhães dizendo que “os jesuítas não coligiram literatura dos aborígenes, mas se serviram de suas músicas e de suas danças; foram adaptadas com profundo conhecimento que tinham para o coração humano, para as festas do Divino Espírito Santo, São Gonçalo, Santa Cruz, São João e Senhora da Conceição.
Gilberto Freyre (2003) refere-se às crônicas coloniais do Brasil para mostrar que algumas festividades ganharam motivos ligadas às coisas sagradas e profanas, como por exemplo, a festa de São João Batista, que tem a tradição de ascender, pular e dançar ao redor da fogueira. Estas festas assumem um caráter afrodisíaco e o seu culto ligam até as práticas e cantigas sensuais. Santo Antônio é tido como casamenteiro por excelência, sem falar das inúmeras práticas mágicas, como simpatias feitas durante noites e madrugadas de festejos de São João, festejados à luz dos foguetes, busca-pés e vivas!
Tanto no Brasil como nas cidades Portuguesas, as simpatias visam à união de pessoas, sobretudo, aquelas que almejam um casamento. Por exemplo, pode-se destacar que, na noite de São João, faz-se para adquiri a sorte com a clara de ovo dentro do copo d’água; coloca-se uma espiga de milho debaixo do travesseiro para ver em sonho quem vem comê-la; enterra-se uma faca até o cabo na bananeira na noite de festejo para de manhã cedo decifrar-se sofregamente a mancha ou na nódoa na lamina; e outros interesses em busca da pessoa amada, pede-se a proteção de Santo Antônio, considerado o Santo das afeições perdidas, dos noivos e maridos desaparecidos. Ele é considerado o Santo do Brasil, está associado às práticas de feitiçaria afrodisíaca. É a sua imagem que é colocada de cabeça para baixo, dentro de uma jarra com água, no sentido de ter as preces atendidas de forma rápida (FREYRE, 2003, p. 327).
Para destacar o caráter mais intimista da devoção aos Santos, Sérgio Buarque de Holanda (1995) em “Raízes do Brasil”, fala a respeito aos “Santos de casa”, também advinda da tradição colonial. Segundo o autor, “no velho catolicismo, tão característico, permite tratar os santos com uma intimidade quase que desrespeitosa e que deve aparecer estranho às almas verdadeiramente religiosas dos mesmos motivos”. Neste sentido, o que surge é um sentimento mais humano e singelo, “cada casa quer ter sua capela própria, onde os moradores se ajoelham ante o padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os santos já não aparecem como antes, privilegiados e eximidos de qualquer sentimento humano” (HOLANDA, 1995, p. 149).
O autor afirma que a crença e a fé colocam fidalgos e plebeus sob o mesmo aspecto de intimidade com as sagradas escrituras, onde o próprio Deus torna-se um amigo familiar, doméstico e próximo, muito diferente do Deus “palaciano” a quem o cavalheiro de joelho vai prestar sua homenagem como um senhor feudal.
Para o professor e pesquisador Sergio Ivan Gil Braga (2007), em seus estudos sobre festas populares e religiosas na Amazônia, sobre o termo “festas amazônicas”, tenta estabelecer aspectos comuns e prováveis peculiaridades existentes nestas manifestações por meio
das práticas culturais de populações urbana e mestiças ou caboclas, com suposta influência cultural indígena, de afrodescendentes e da colonização europeia.
Ele identifica que estas festas amazônicas têm forte influência do catolicismo, embora marcada pela cultura popular da época,
urbana e mestiça, tributária de herança indígenas e negras. Pode-se fixar,
os diferentes significados simbólicos assumidos por diferentes categorias de pessoas em festas amazônicas, onde o suposto homem caboclo e a imagem percebida da região amazônica constituem a linguagem referência (mítica) na celebração das origens primitivas dos povos indígenas e da prodigalidade da mãe natureza, ou na denúncia da destruição dos seres humanos, criaturas e riquezas por uma sociedade que clama por mudança e a criação de uma outra consciência de solidariedade global (BRAGA, 2007, p.70).
O autor finaliza sua análise considerando que, sob o signo da mestiçagem, constitui a dimensão de permanência nas festas religiosas e populares, de sujeitos retratados sob o signo identitário do índio ou proto-identidade indígena, do negro ou afrodescendentes no contexto das festas amazônicas.
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46 Apresentado inicialmente em formato de comunicação oral no dia 18/06/2007 no seminário Folclore e Cultura Popular, “Histórias, povos e saberes”. Mesa: Cultura Popular e Patrimônio Imaterial em Manifestações Folclóricas de Manaus: festas, músicas, devoção e trabalho. No contexto do 51o Festival Folclórico do Amazonas na Arena do Centro Cultural dos Povos da Amazônia. Realização da Secretaria de Estado da Cultura – SEC/ Am. E para esta publicação foi revisado e ampliado.
Continua na próxima edição…
*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor do livro “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022). É Assessor Jurídico e vem prestando assessoria ao patrimônio imaterial etnohistória da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.
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