
*Vinícius Alves da Rosa
Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am
Continuação…
3.2 A construção da identidade quilombola forjada em meio aos conflitos políticos estabelecidos
Membros da comunidade do ʹBarrancoʹ, na Praça 14, se viram ameaçados de expulsão da área onde vivem há mais de 60 anos devido ao preconceito social e à especulação imobiliária.45
O bairro Praça 14 de Janeiro, em Manaus, possui marcos territoriais e fronteiras com características geográficas específicas, no autodenominado quilombo do Barranco. Assim entendido, porque, no início das construções e arruamentos para o planejamento das estradas, a topografia natural dos terrenos foi alterada, deixando uma parte da Avenida Japurá, onde está situado o quilombo, no formato de um barranco. Na unidade social, os quilombolas mantêm vínculos históricos com o território urbano ocupado, nas novas formas de se apropriar e de se reproduzir socialmente ao longo dos anos, e na construção da identidade étnica por seis gerações.
A família Fonseca – constituída pelos descendentes da senhora Lúcia do Nascimento Fonseca, fundadora do quilombo –, ainda reside na comunidade, e acompanhou o crescimento demográfico de Manaus. Neste sentido, a referência da memória quilombola está associada à própria história do bairro. Na ocasião da ocupação das terras do quilombo, que se deu no final do século XIX, havia nesta localidade matas e igarapés, cujas mudanças ocasionadas no bairro impactaram diretamente os modos de vida dos agentes sociais que perderam espaços importantes e tradicionais da comunidade como, por exemplo, a Associação Recreativa e Beneficente Jaqueirão.
Os quilombolas apresentam características culturais na sua territorialidade específica, afirmadas através das práticas religiosas e fazeres cotidianos, na resistência frente aos atos discriminatórios, à invisibilidade social, e a expansão do perímetro urbano em virtude o crescimento da cidade. Ao longo dos anos, os processos urbanísticos causaram mudanças no lugar habitado, o que tornou a localidade assim como as propriedades imobiliariamente valorizadas, em decorrência das melhorias da infraestrutura, das novas construções residenciais e consolidação dos prédios comerciais na localidade.
A comunidade do Barranco de São Benedito ocupa dois quarteirões do bairro Praça 14, cujos bairros mais próximos são Cachoeirinha e o Centro de Manaus. Nas imediações das residências dos quilombolas, há três escolas públicas estaduais, Luizinha Nascimento, Plácido Serrano e a Primeiro de Maio. Os membros da comunidade estudaram nestas escolas localizadas nas adjacências do quilombo, tendo alguns quilombolas e seus filhos conquistado a formação de nível superior, com o ingresso em universidades públicas e privadas e nos cursos de graduação e pós-graduação em diferentes áreas do conhecimento.
Ao analisar a realidade da vivência nesta região de Manaus, identifica-se a oferta de serviços públicos disponibilizados pelo Estado, como a Delegacia de Polícia, a Procuradoria Geral do Estado (PGE), a Maternidade Estadual Balbina Mestrinho, Unidade Básica de Saúde Vicente Pallotti e a Escola Superior de Artes e Turismo-ESAT/UEA. No entorno da comunidade quilombola há uma agência bancária, o Mercado Municipal Maximino Corrêa, um amplo comércio alimentar. Somado a isso, o bairro também é referência do setor automotivo de autopeças e acessórios.
Nesta localização urbana, os remanescentes quilombolas desenvolvem interações sociais e guardam a memória familiar dos seus antepassados. Isto permite entender que os membros da comunidade quilombola residem no território etnicamente delimitado e reivindicam direitos étnicos. Pertencentes a esse grupo social, grande parte das pessoas trabalha ao longo do dia e lutam por melhores condições de vida, dignidade e respeito. Todavia, as políticas governamentais relacionadas à qualidade de vida em benefício dos quilombolas têm sido ineficazes, fato que impõe aos remanescentes de quilombo enfrentarem problemas com a falta de saneamento básico, sobretudo no que diz respeito a esgoto sanitário.
Na área central da Praça 14 está o Santuário Nossa Senhora de Fátima, que desde a sua fundação na década de 1930 contou com a participação, ajuda e doações dos voluntários e devotos de Nossa Senhora de Fátima, ao longo dos anos de construção da igreja cujas obras foram concluídas em 1975. Situada à Rua Jonatas Pedrosa, a igreja é um símbolo do bairro. As missas reúnem a comunidade católica e a festa em devoção à Nossa Senhora de Fátima e a procissão acontecem durante o mês de maio. Na arquitetura do prédio, podemos destacar cúpula do templo configurada no estilo renascentista, como pode ser observada na figura 19 (em anexo) aérea.
Os quilombolas do Barranco de São Benedito buscam autonomia enquanto organização social; têm convivências estabelecidas de parentesco e vizinhança nas suas residências próximas e a territorialidade da comunidade inserida na área urbana se opõe à ideia do exotismo atribuído aos quilombos. Contrário a buscar vestígios arqueológicos para corroborar a concepção de quilombo vinculada ao passado, a realidade empírica observada evidencia a comunidade quilombola ressignificada no presente.
E nesta perspectiva, Almeida entende que:
O quilombo, em verdade, desencarnou-se dos geografismos, tonando-se, tornando-se uma situação social de autonomia, que se afirmou ou fora ou dentro da grande propriedade. Isso muda um pouco aquele parâmetro histórico, arqueológico, de ficar imaginando que o quilombo consiste naquela escavação arqueológica onde há indícios materiais e onde estão as marcas ruiniformes da ancianidade da ocupação. Este procedimento tem que ser revisto e as evidências reinterpretadas. Se porventura houver uma escavação para identificar quilombo, neste contexto, ela resultará tanto na reconstituição dos alicerces da casa-grande, o que poderá parecer contraditório e extremamente paradoxal para os “operadores do direito”. O teste de arqueologia de superfície e o seu poder comprobatório devem ser relativizados, como devem ser relativizadas certas provas documentais e arquivísticas (Almeida, 2011, p. 69).A comunidade do Barranco de São Benedito é um território tradicionalmente ocupado, apesar do estigma, ou da exclusão social a que fora submetida ao longo das décadas, os agentes sociais continuam a afirmar o caráter dinâmico da identidade étnica dos seus membros. O que configura a mudança de um lugar social com a presença de negros, reafirmando a existência político-social de uma comunidade quilombola. A invisibilidade do grupo não resultou em subalternidade cultural, ao contrário, os processos organizativos construídos nas dinâmicas culturais dos quilombolas suscitaram lutas protagonizadas na busca da visibilidade, pela reivindicação e consciência da identidade coletiva.
A autodefinição dos quilombolas não nasceu nas mobilizações assembleísticas dos sindicatos, tampouco nas comunidades eclesiais de base – CEBS, mas da consciência identitária; reafirmando novas ações políticas, que possibilitaram efetivar as mudanças de um lugar com a presença de negros, cujo local social está concebido sob a designação de comunidade quilombola. Nesse contexto, foi necessário defini-la sob o prisma de uma nova categoria emergente, por todos identificada como comunidade do Barranco de São Benedito.
Constituída por negros, não pela atribuição genérica e/ou traços biológicos, o significado de quilombo está identificado pelos agentes sociais como componente de autodefinição, historicamente construída, segundo a memória social do grupo organizado enquanto comunidade quilombola.
Para Farias Júnior (2013):
A autodefinição de um grupo, a reivindicação de uma identidade étnica, converge para uma territorialidade, que se materializa concretamente. Dessa forma, a compreensão que um determinado grupo tem do seu território, resulta de processos sociais dinâmicos, tais como disputas e/ou acordos conciliatórios, entre outros processos diferenciados de territorialização. Dessa forma, podemos delimitar empiricamente o grupo étnico (Farias Júnior, 2013, p.169).
Compreender as configurações da comunidade do Barranco implica em reconhecer uma área delimitada de terras secularmente ocupada por famílias de ascendência negra residentes numa localidade hoje considerada oficialmente um quilombo, com a dinâmica daqueles que continuam a lutar pela afirmação dos seus direitos sociais como remanescentes quilombolas.
Conforme testemunhou Jamily Souza da Silva:
Depois da nossa certificação […] nós passamos a ter mais visibilidade e até mais respeito. Nós deixamos de ser ‘barranco da negada’ para sermos reconhecidos como um quilombo […]. Agora temos visitas todos os sábados, mais movimentação, para apreciar nosso artesanato, culinária… E nosso pagode virou tradição. Fazia tempo que aqui na Praça 14, nós não tínhamos um pagode de raíz. Mas agora as pessoas dizem “o samba voltou ao seu lugar”46.
As relações e novas interações mediante a autodefinição dos quilombolas reafirmou a indissociabilidade territorial das famílias estabelecidas com o lugar em que os relatos testemunham as mudanças ocorridas na estrutura da existência coletiva, ao conquistarem respeito público e visibilidade social. Os quilombolas da comunidade do Barranco de São Benedito reivindicaram a prerrogativa constitucional, com novas formas organizativas e processos de autonomia, segundo as suas demandas, o que proporcionou um lugar de relação perante os órgãos do Estado, e diante da sociedade envolvente.
Os agentes sociais garantiram a reprodução física, social, econômica e cultural, com modos de vida próprios no território quilombola do Barranco de São Benedito; na dinâmica capaz de traçar caminhos, não apenas como objetos, mas na condição de sujeitos reflexivos determinados em consolidar lutas reivindicatórias para o desenvolvimento da comunidade quilombola onde vivem.
Contudo, a análise acerca do que se entende por “quilombo urbano”, vem sendo uma discussão da atualidade. Ao ambiente acadêmico compete trazer à tona discussões concernentes às comunidades remanescentes de quilombos, cujas reflexões devam trazer um novo olhar visto sob o prisma de discussões políticas, tanto para as próprias comunidades interessadas quanto para o público em geral, o que diferencia investigar situações no caso aqui referidas à comunidade do Barranco.
Os estudos dos “quilombos urbanos” estão presentes nas instituições de pesquisas, inclusive, com debates estabelecidos nas próprias unidades sociais designadas “quilombos urbanos”’. Assim, investigar a categoria “quilombo urbano”, a partir da minha “relação de pesquisa” construída na comunidade em estudo, cuja localização da unidade social está ocupada desde 1890, garante levar em conta os relatos dos quilombolas conforme o exercício da reflexividade.
A antropóloga Ana Paula Comin de Carvalho desenvolve pesquisas sobre os “quilombos urbanos”, e produziu o Laudo Antropológico e Histórico em conjunto com o historiador Rodrigo Azevedo Weimer sobre o Quilombo da Família Silva, situado em uma área urbana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Trata-se de estudos etnográficos realizados a partir de 2003, sobre a comunidade quilombola Chácara das Rosas, um território quilombola urbano localizado no município de Canoas, no Estado do Rio Grande do Sul.
A pesquisadora destaca que:
As demandas das comunidades negras rurais e urbanas na atualidade demonstram que estes grupos não são poucos, suas formas de resistência não ficaram restritas às fugas e que suas lutas por liberdade, dignidade e respeito perduram até os dias de hoje. Quilombo passa de uma denominação utilizada por aqueles que queriam reprimir esta forma de organização social à categoria que vai abarcar uma diversidade de experiências negras de busca de autonomia que se territorializaram, ou seja, que se projetaram sobre espaços físicos e a eles agregaram um conjunto de sentidos e significados (Carvalho, In: Almeida, 2010, p. 242).
Já, por sua vez, o Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais vinculado ao departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, realizou, em 2008, por solicitação do INCRA-MG, os Relatórios Antropológicos de Caracterização, Histórica, Econômica e Sociocultural de duas comunidades quilombolas urbanos, situadas em Belo Horizonte: a dos Luízes e Mangueiras47.
Cabe referir sobre a pesquisa feita por Souza e Ferina (2012), intitulado “Família Sacopã: identidade quilombola e resistência ao racismo e à especulação imobiliária na Lagoa, Rio de Janeiro”, sobre o quilombo urbano Sacopã, localizado numa área nobre da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho evidencia os aspectos da organização social, o processo histórico de ocupação territorial, e as fugas dos negros na região da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Assim como o Relatório Histórico-Antropológico sobre o quilombo da Pedra do Sal: “Em torno do samba, do santo e do porto”, elaborado pelas autoras Mattos e Abreu (2006), cujo documento apresenta os conflitos históricos e a presença histórica dos agentes sociais no quilombo urbano Pedra do Sal, situado na zona portuária do município do Rio de Janeiro.
No caso concreto do quilombo do Barranco de São Benedito, em Manaus, os quilombolas construíram relações sociais, estabelecendo conexões nos âmbitos comercial, econômico, e na sociabilidade e religiosidade que resultaram em vinculações afetivas com o território onde reproduzem os modos de vida característicos da comunidade. Os quilombolas constituem um grupo social representado historicamente por práticas de resistências culturais, nas interações com a sociedade que o cerca, inseridos contemporaneamente no contexto da dinâmica urbana da cidade.
As narrativas dos moradores antigos relatam a trajetória da comunidade ao longo dos anos, bem como identificam situações envolvendo preconceito e discriminação racial. Todavia, a presença dos negros nesta área de Manaus foi historicamente ignorada, seja por autoridades eclesiásticas seja pelos órgãos de Governo. Quanto a isso, faz-se necessário enfatizar como os quilombolas ressignificaram suas condições históricas de existência que, apesar dos estigmas atribuídos ao grupo social, perseveraram com os aspectos culturais e usos dos espaços afirmados para legitimar a pertença étnica dos seus membros. Sendo assim, a comunidade do Barranco de São Benedito é um território coletivo situado em meio à cidade, do qual os quilombolas se utilizam com o entendimento de que se trata de um lugar social, que o conquistaram com e a partir do reconhecimento formal, por todos identificado e oficialmente reconhecido pelo Governo Federal como um atributo de lutas ensejadas e conquistadas pelos remanescentes de quilombo.
Neste sentido, é fundamental a efetivação dos direitos constitucionais por parte do Estado em relação às identidades culturais dos grupos étnicos, com vistas ao reconhecimento de suas territorialidades e trajetórias históricas das comunidades quilombolas em suas unidades político-organizativas.
Tal perspectiva coloca em evidência que a comunidade do Barranco de São Benedito, assentada na Praça 14 de Janeiro em Manaus, resiste secularmente nas afirmações das tradições que demarcam uma identidade própria, não obstante aos desafios vividos em virtude do crescimento e urbanização do lugar social ocupado, conforme se verificou nas análises empíricas observadas.
Faz-se necessário referir a representação formulada junto ao Ministério Público Federal do Amazonas pelo Sr. Alvatir Carolino da Silva, professor do Instituto Federal do Amazonas, doutor em antropologia social e pesquisador que atualmente se encontra em atividades de pesquisa bibliográfica e de campo para elaboração de laudo pericial antropológico da territorialidade do mencionado quilombo urbano. Laudo esse que fora solicitado em dezembro de 2022 ao Projeto Nova Cartografia Social na Amazônia (PNCSAM) e tem como um dos elementos de reivindicação de territorialidade ancestral do quilombo o terreno situado na avenida Japurá, número 1505, esquina com a rua Visconde de Porto Alegre, bairro Praça 14 de Janeiro, região do Centro de Manaus. Ocorre que o grupo de Escoteiros do Brasil – Amazonas, que faz uso do terreno desde o início dos anos de 1980, a partir de 2023 proibiu quaisquer ações da comunidade quilombola naquelas dependências, e também demoliu a estrutura predial existente para transformar o espaço em estacionamento rotativo com fins lucrativos.
A pesquisa desenvolvida pelo autor deste trabalho, em decorrência da relação construída com o coletivo quilombola ao longo dos anos, registra a preocupação dos quilombolas em sucessivas reuniões para fins de produção de pesquisa científica com os agentes sociais dessa comunidade tradicional da cidade de Manaus, o pleito é a imediata interdição da obra no prédio cedido aos escoteiros e a reincorporação do imóvel ao território tradicional do Quilombo do Barranco de São Benedito.
Cabe, portanto, situar um breviário da história social da comunidade e pontuar sobre como o imóvel em questão foi usurpado pelo poder público e concedido ao grupo de escoteiros, ação essa se deu no período da ditadura militar no Brasil. Portanto, à margem de quaisquer possibilidades de reclamar o direito coletivo, o direito identitário quilombola, o direito à memória e aos demais direitos humanos consolidados em ordenamento jurídico internacional e expressos na chamada Constituição Cidadã de 1988.
Sabe-se que a formação deste quilombo se dá nas últimas décadas do século XIX e que ainda na primeira metade dos anos de 1890 se tem os primeiros documentos cartoriais de regularização daquelas terras em nome das famílias que constituíram o quilombo. Trabalho, liberdade, terra e territorialidade, racismo, preconceitos, resistência cultural são conceitos com os quais podemos analisar a trajetória social das gerações passadas e atuais de uma área tão representativa na formação social, econômica e cultural de Manaus e do Amazonas, que é o Quilombo do Barranco de São Benedito da Praça 14.
Mas, como a ditadura militar imposta à sociedade brasileira em 1964 teve alcance nefasto em todos os setores e seguimentos sociais, o Quilombo também foi alcançado por ações do autoritarismo mesmo que disfarçado de “abertura democrática” no final dos anos de 1970 e os primeiros anos de 1980. E foi nesse contexto que o governo do Estado do Amazonas fez uso de suas formas de poder para coagir e ludibriar a comunidade quilombola a ceder a parte de seu território etnicamente configurado para um grupo de escoteiro cujo discurso era levar ações sociais para a comunidade, coisa que nunca se materializou. No entanto, o imóvel em questão (citamos o terreno situado na avenida Japurá, número 1505, esquina com a rua Visconde de Porto Alegre, bairro Praça 14 de Janeiro) é um espaço de memória social daquela comunidade, expressa uma das mais belas páginas de resistência cultural e de organização identitária, comunitária e coletiva em prol da educação.
No referido lugar singular, foi onde o povo preto – à margem das políticas de inclusão social e, portanto, distanciados das ações políticas de educação pública por meio dos governos federal, estadual e municipal – edificou, fez gestão com métodos didáticos e pedagógicos próprios desenvolvidos por educadoras quilombolas, com recursos próprios de colaboradores da própria comunidade, criou a Escola Teonila Pessoa que funcionou por décadas atuando na alfabetização e oferta da formação educacional de seus membros.
E, neste sentido, a comunidade está reivindicando atualmente, sendo que no período da ditadura militar o quilombo vivenciou processos de perseguição política sofrida por um dos seus, o negro Nestor Nascimento, conhecido publicamente como ativista dos direitos humanos e atuante na luta por igualdade racial.
O medo perpassava a comunidade, Nestor Nascimento orientava às crianças que a melhor forma de resistir e existir deveria ser estudando. A própria escola de samba da comunidade, a Escola de Samba Mista da Praça 14, deixou de existir com o início da ditadura, o Boi Caprichoso perdeu vigor, a liberdade era novamente cerceada. Com a promulgação da Constituição de 1988 a efetivação dos direitos não fez em concomitância, pelo contrário, regulamentações e estabelecimentos de políticas e programas foram paulatinamente implantados à custa de muitas lutas sociais. Por isso, o reconhecimento deste quilombo pelo Estado Brasileiro é recente, exatamente no ano de 2014, bem como a implantação de políticas de reparação e inclusão social, o que faz com que as pessoas tenham desconfianças implícitas, perpassadas por pensamento difuso de que seus direitos são frágeis e que o racismo estrutural perdura e que os outros setores da sociedade sempre têm força maior e que lutar contra tudo isso não é uma tarefa fácil.
Na questão específica analisada do espaço da Escola Teonila Pessoa, que na ditadura militar foi usurpada pelo Estado e repassada a um grupo de escoteiro sob anuência do exército brasileiro, após a o reconhecimento do Quilombo, a administração dos escoteiros estabeleceu relacionamento amistoso com a comunidade, permitindo que alguns eventos fossem realizados nas áreas internas daquele imóvel, como a defesa do Trabalho de Conclusão de Curso da quilombola Rafaela Fonseca da Silva, reunião das mulheres negras etc. Mas com a chegada de nova diretoria, mais uma vez as portas estão fechadas para a comunidade, que mais uma vez é impedida de ter acesso a um bem que historicamente lhe pertence, lugar onde gerações e gerações de quilombolas foram alfabetizadas.
Em contexto mais recente, especificamente os últimos cinco anos, as forças reacionárias ocuparam espaços institucionais e houve demonstração de autoritarismo inclusive em falas insultuosas de membros do grupo de escoteiros sobre os agentes sociais do bairro Praça 14, diretamente aos quilombolas. É mais um momento em que o medo perpassa, a liberdade é novamente ameaçada. Nos parece que o momento de luta, no sentido de reivindicar territorialidade, se fez favorável novamente para esta comunidade no final do ano de 2022.
Os escoteiros “ganharam” o terreno do governo, logo após o golpe militar de 64. E se instalaram no início da década de 80, após delimitarem o espaço e derrubar escola de madeira Teonila Pessoa, eles ergueram um espaço de alvenaria. E começaram a implantar o escotismo, recrutando algumas poucas crianças da comunidade e do bairro Praça 14 de Janeiro.
Nas décadas de 80 e 90 foram atuantes. Depois desses períodos, o espaço ficou somente para esporádicas reuniões, até chegar o Sr. Cleudson, em 2017, e fazer a parceria com a associação das Crioulas do Quilombo do Barranco de São benedito. Após os 3 ou 4 anos que ficou como presidente, a parceria foi desfeita pela Associação das Crioulas do Quilombo de São Benedito, que não se sentiram confortáveis com as exigências e desconfianças do novo presidente dessa região dos escoteiros.
Sabe-se que os escoteiros estão desfazendo a estrutura predial que ergueram na ditadura militar e com a pretensão de construir estacionamento rotativo e posto de lavagem de automóveis, o que desvirtua a própria concessão arbitrária da ditadura militar quando concede aquele pedaço de chão pertencente à territorialidade quilombola desde as últimas décadas do século XIX. Pois, quando o Estado autoritário usurpou da comunidade quilombola e o concedeu ao grupo de escoteiros, argumentaram que ali ações em prol da comunidade seriam realizadas, o que não ocorreu de forma permanente, contínua e sistêmica, salvo exceções efêmeras e pontuais, tais como: no início da década de 1980, admitiram algumas crianças quilombolas no grupo seleto de escoteiros, e há 5 anos, quando a gestão do grupo de escoteiros permitiu à comunidade o acesso às dependências daquela estrutura para realização de reuniões, incluindo defesas de trabalhos acadêmicos de Pós-graduação de quilombolas e reunião anual do movimento de mulheres afroameríndias e caribenhas.
Cabe salientar que os membros do referido grupo de escoteiros não pertencem à comunidade quilombola e nem mesmo são do bairro, em sua imensa maioria são oriundos de outras regiões da cidade e naturais de outros cidades brasileiras. Além de ser recorrente, nesses momentos efêmeros ao longo de décadas, falas preconceituosas em diversas manifestações por parte das pessoas que integram o grupo de escoteiros ou de pais e responsáveis de/por crianças e adolescentes que ali paravam seus carros para deixar seus filhos para as atividades de escoteirismo. Parecia-lhes absurdo e perigoso ter gente preta ao redor do espaço onde os seus iriam desenvolver princípios militares no escoteirismo, conforme relata a senhora Keilah Fonseca, presidente da Associação Crioulas do Quilombo do Barranco.
Portanto, a representação emitida formalmente junto ao Ministério Público Federal do Estado do Amazonas, clama por uma ação que impeça a edificação de estacionamento e lava-jato, além da imediata reintegração da antiga escola Teonila Pessoa e antiga sede do Clube Social Romerindo, por se tratar de espaços da memória quilombola. Sendo um dos poucos ainda existentes na cidade de Manaus, o que pode retornar a ser um lugar de ações realizadas sobre a cultura, história e identidade do povo negro presente secularmente na Amazônia brasileira.
É preciso falar a respeito do conflito estabelecido entre os Escoteiros do Brasil – Amazonas e a comunidade quilombola local, por se tratar de uma entidade vinculada à Igreja Adventista do Sétimo Dia, cuja denominação religiosa possui inúmeros templos, hospitais, escolas e livrarias. Uma entidade notável, detentora no segmento evangélico de poder econômico que por ora busca estigmatizar o quilombo urbano assentando nesta área, e não disponível a qualquer possibilidade de diálogo com os membros da comunidade.
A devolutiva do Ministério Público do Estado do Amazonas, realizada em fevereiro de 2024, a respeito da Notícia de Fato N° 01.2023.00005529-3, cientificação n° 0018/2024/63 PJ, assinada pelo Promotor de Justiça Sr. Paulo Stélio Sabbá Guimarães, o qual cientifica o antropólogo Sr. Alvatir Carolino da Silva, a tomar conhecimento do despacho de indeferimento referente à inexistência de intervenção supostamente irregular do imóvel que pertence ao Quilombo do Barranco de São Benedito. Pois, trata-se da demolição do prédio existente para a construção de um estacionamento rotativo, e consiste na conduta atribuída ao Grupo de Escoteiros do Brasil – Amazonas.
A cientificação salienta que o indeferimento se deu conforme a Resolução n°006/2015 – CSMP, Art. 23, caput, em razão de os fatos narrados não apontarem nenhuma ameaça ou lesão aos interesses tutelados pelo Ministério Público do Estado. E, informou ainda, que sendo do interesse do antropólogo Sr. Alvatir Carolino da Silva, poderia ser apresentado um recurso administrativo no prazo de 10 dias a contar do recebimento do referido documento, através de e-mail para o Ministério Público do Amazonas.
Apresentar-se-á na sequência as denominadas Audiências Públicas as quais estão disponíveis nos meios de comunicação social publicadas oficialmente pelo Poder Legislativo do Municipal em Itacoatiara. A primeira delas ocorreu em 21 de dezembro de 2021, sendo uma propositura do Vereador Dr. Richardson Aranha (PTB)48, para tratar dos conflitos relacionados à implantação territorial do quilombo do Serpa, bem como das perspectivas futuras de expansão territorial do município de Itacoatiara.
A Audiência Pública objetivou debater os conflitos existentes na região do Lago do Serpa. Na ocasião desta audiência, houve a participação do Superintendente do INCRA no Amazonas, Sr. João Jornada, o qual questionou os procedimentos de trabalho utilizados pelos técnicos do INCRA, alegando também que o Ministério Público Federal toma partido em favor da comunidade quilombola, ao passo que prejudica as demais famílias não quilombolas moradoras da área em disputa.
O Superintendente parabenizou a Câmara Municipal pela realização da Audiência, na pessoa do Vereador Dr. Richardson Aranha, colocando-se como parceiro da Prefeitura de Itacoatiara para as questões em prol do desenvolvimento rural da cidade. Ao término da explanação, o Sr. João Jornada, após ser questionado a respeito da demarcação territorial das terras do quilombo, afirmou que há apenas estudos prévios do assunto sob a responsabilidade do INCRA. Os pronunciamentos dos secretários49 responsáveis por diferentes áreas junto à Prefeitura Municipal de Itacoatiara são de negação do reconhecimento da unidade quilombola oficialmente constituída. Para os agentes públicos contrários à efetivação dos direitos constitucionais, há apenas uma autodefinição realizada pelos membros do grupo.
Não é que o tempo passado engendre nestes textos discussões tomadas ao “realismo mágico”, revestidas da divinização da resolução de conflitos sociais; é que o presente, na acomodação da burocracia oficial que não titula as terras das comunidades quilombolas e se, porventura o faz, procede a conta-gotas, sem dirimir os antagonismos, traz a incerteza da reprodução física e cultural. Constata-se que, passados 23 anos, foram titulados menos de 5 % do total de hectares até o momento reivindicados pelas comunidades quilombolas. Mantido este ritmo tem-se que em um século após a promulgação da Constituição Federal e dois séculos após o ato que declara a Abolição, se terá titulado um total inferior a 20% das áreas reivindicadas. Não é porque as titulações não acontecem, que as comunidades deixam formalmente de existir. O que não acontece existe magicamente como fato social (Almeida, 2011, p.13).
Em face desta lentidão do Estado para titular o território, os reiterados conflitos sociais vão ganhando força no surgimento das ameaças contra as lideranças do quilombo. As quais solicitaram formalmente a inclusão no Programa de Proteção de testemunhas do Governo Federal, após disparos serem realizados por arma de fogo na placa de identificação do quilombo rural, localizada na entrada do ramal da Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa.
Cabe destacar a veemência do pronunciamento oficial do Presidente da Câmara Municipal de Vereadores de Itacoatiara, Vereador Benedito Cabral Rezende Júnior, realizado em 09 de fevereiro de 2023, na 124ª Sessão Legislativa da 19ª Legislatura, referindo-se às questões territoriais dos quilombolas no município, na qual transcrevo em ipsis litteris:
Eu vou falar mais uma vez na presidência desta casa a todos os envolvidos, seja cartório, polícia, Poder Executivo, não tem área quilombola em Itacoatiara territorial, tem uma associação de quilombola, fora disso é conversa pra boi dormir. Não tem estudos, têm pessoas analisando, tem Ministério Público analisando, está no seu direito, mas não existe nada de registro de área territorial quilombola. Não existe, vai existir? Não sei, não sei, mas não existe, então o resto é conversa fiada.
A declaração do parlamentar reforça amiúde o pensamento do núcleo político democraticamente constituído de autoridade a fim de tomar decisões no âmbito da esfera pública em Itacoatiara-AM. No entanto, o negacionismo representado evidencia o posicionamento de uma frente antiquilombola, propositalmente articulada junto aos espaços de poder para oficialmente impedir o reconhecimento dos direitos étnicos ao coletivo quilombola.
E neste sentido, perfilado ao mesmo horizonte de ideias, citamos textualmente o discurso de autoria do Vereador Dr. Richardson Aranha:
Voltando ao assunto dos quilombolas senhor presidente, que é incômodo pra todos nós, existe uma pressão muito grande, a falta de informação traz esse tipo de pressão, o Procurador da República Doutor Fernando, que faz advocacia administrativa para as pessoas que se intitulam quilombolas, notifica o INCRA, faz nota de repúdio, manda documentação pra Presidente da comunidade, manda documentação pra outros órgãos públicos tentando intimidar, o problema é que em Itacoatiara nós não temos o nariz atravessado, aqui temos pessoas com conhecimento, pessoas que estudaram, o Procurador não sei por que faz esse papel, porque o papel dele é fiscalizar, é fiscalizar o cumprimento das leis e não tentar intimidar quem quer que seja, e por isso nós iremos pedir a suspensão dele que preside o processo de demarcação, porque ele não pode presidir algo que ele já está tendencioso. Se mandam pessoas especializadas para fazer estudos na área do Serpa, chega lá não tem ninguém que tenha cultura quilombola, as pessoas se autointitulam quilombola, mas não exercem a cultura quilombola, ninguém joga capoeira, ninguém faz um artesanato quilombola. Inclusive fiquei sabendo que financiado por partido político têm pessoas sendo mandado pra Bahia pra estudar a arte quilombola e a tradição quilombola pra trazer pra Itacoatiara, ó o absurdo, é uma briga por terras e o que mais me preocupa, Senhor Presidente e senhores Vereadores, é que aquilo ali vai pegar fogo, as pessoas estão brincando com coisa séria, ali quando começar a ter guerra, e ter pessoas quando os ânimos estiverem exaltados, que lá não tem Polícia que você possa dizer, vem aqui, a Polícia chega em dois minutos, até a Polícia chegar lá já teve derramamento de sangue levantados pelo partido político e por um Procurador irresponsável que incita as pessoas a invadirem terras dos outros indevidamente”.
As vozes autorizadas a falar em nome do Legislativo de Itacoatiara são categóricas, elas traduzem a dimensão da disputa enfrentada no âmbito jurídico no tocante ao pedido demandado pelos quilombolas perante o Estado brasileiro para a titulação fundiária das áreas afins pleiteada pelo grupo. Os conflitos requerem, pela hostilidade caracterizada, a intervenção do Ministério Público Federal, a partir dos estudos técnicos realizados sob a responsabilidade do INCRA, com o apoio das forças policiais devido ao acirramento dos ânimos no caso específico dos quilombolas do Lago do Serpa.
Está assim estabelecida em Itacoatiara a eminência de uma tragédia anunciada, sendo a batalha renhida com os nervos à flor da pele, em razão dos interesses essencialmente opostos, envolvendo a comunidade quilombola que luta pela regulamentação do território e a ideologia econômica defendida como progresso pelas autoridades políticas.
Em Itacoatiara – AM, realizou-se em 06 de julho de 2023 outra Audiência Pública nas dependências da Câmara Municipal50, com o tema: “Conflitos relacionados a uma suposta ou não implantação territorial do quilombo do município de Itacoatiara”. A propositura do Vereador Dr. Richardson Aranha contou com a presença do Sr. Prefeito do Município, Mário Jorge Bouez Abrahim, Sr. Afonso Neto, Subprocurador do Município, Sra. Vanessa Raquel Silvestre Miglioranza, Secretária de Educação, Sr. Odair Glória, Subsecretário de Saúde, Johmara de Sá Rodrigue51, Presidente da Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, empresários e moradores da Comunidade do Lago do Serpa.
Na aludida Audiência, as autoridades se pronunciaram sobre o assunto em pauta, o chefe do Executivo, Sr. Mário Abrahim, os Vereadores Richardson Aranha, Arnoud Lucas, Dibi Barbosa, o Sr. Afonso Neto, Subprocurador do Município, a Sra. Vanessa Raquel Silvestre Miglioranza, Secretária de Educação, o Sr. Odair Glória, Subsecretário de Saúde, a Sra. Johmara de Sá Rodrigues, Presidente da Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, além de moradores da Comunidade do Lago do Serpa, e foram unânimes em considerar que a titulação do território quilombola irá impedir o desenvolvimento e a expansão do município.
Os discursos proferidos questionavam a autoidentificação dos quilombolas do Lago do Serpa, acusavam o Ministério Público Federal de agir com parcialidade em favor dos quilombolas, reforçavam o estigma classificando os quilombolas como “preguiçosos”. Os pronunciamentos expressavam enfaticamente a mobilização das forças políticas e empresariais pela disputa da região do Lago do Serpa, objeto de cobiça do poder econômico regional.
A despeito dos dados levantados, a antropóloga e pesquisadora das comunidades quilombolas situadas na região do rio Andirá, em Barreirinha, no Amazonas, ao mencionar situações conflitivas reais pontua que:
Diante de tais situações, foi possível identificar os fatores que potencializam o conflito e, por isso mesmo, incidem sobre as “situações de antagonismo e violências extremas” enfrentadas pelas comunidades remanescentes de quilombos. Como desdobramento desse processo, este estudo analisa e interpreta a forma como os agentes sociais têm construído suas relações de autonomia que se voltam entre outras lutas, para a delimitação, demarcação e titulação daquele espaço territorial (Ranciaro, 2021, p. 33-34).
Por este viés, compete relatar sobre o caso específico do quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, em que o Prefeito do Município, os Vereadores da atual Legislatura, pecuaristas, empresários e uma parcela dos comunitários posicionam-se publicamente contra a titulação das terras quilombolas, hostilizando o trabalho dos servidores do INCRA. Responsáveis, no momento, pela elaboração do Relatório Territorial de Identificação e Delimitação – RTID, do quilombo do Serpa. Os quais só conseguem executar os trabalhos técnicos do órgão de Estado acompanhados com escoltas policiais, da Polícia Militar do Amazonas ou da Polícia Federal.
As narrativas dos distintos antagonistas negam a identidade quilombola. Os argumentos utilizados asseguram ser uma invenção a ideia do grupo social quilombola, cujo idealizador, segundo eles, é o Professor Claudemilson Nonato de Oliveira, pois teria intencionalmente convencido o coletivo quilombola a reivindicar a identidade étnica. Sendo assim, diante da suposta titulação territorial da área do quilombo, os não quilombolas deverão se retirar do território. Posto que o referido grupo contrário à demarcação das terras do quilombo rural questiona quanto ao tamanho da área requerida, porque havendo a titulação definitiva, supostamente uma grande extensão de terra ficaria improdutiva, com a saída dos pecuaristas e fazendeiros da localidade.
Conquanto, as narrativas dos distintos agentes sociais, quais sejam: representantes políticos, empresários, servidores públicos, moradores da área do quilombo, buscam construir a ideia da não oposição à autoidentificação do grupo étnico, a despeito apenas de serem contrários à saída das famílias de não quilombolas da área etnicamente delimitada. Além da discordância relacionada ao perímetro do território reivindicado pelos quilombolas para ser titulado. Todavia, é possível perceber na análise dos discursos elaborados a violência simbólica contida, as adjetivações utilizadas, o preconceito explícito, associado ao desconhecimento dos dispositivos legais referentes à titulação das terras do quilombo.
Cabe mencionar que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, no processo nº 540000.076366/2021 – 11, SR (15) AM – F/SR(15) AM/INCRA, elaborou um Relatório de Observação Situacional sobre a CRQ Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, em Itacoatiara/AM. O documento descreve a memória da reunião realizada pelo Ministério Público Federal/AM, com os moradores e representantes da Associação Comunitária Quilombola do Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa (ACO – Serpa). A Procuradoria Especializada do INCRA no Amazonas (PFE – INCRA/AM), o Gabinete da Superintendência Regional do INCRA no Amazonas – SR (15) AM e o procurador titular do 5º Ofício da Procuradoria da República no Estado do Amazonas (PR/AM), quem estabeleceu encaminhamentos ao INCRA/AM para enviar representante à CRQ da reunião junto à Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania do Amazonas – SEJUSC/AM, entre os dias 16 e 17/08/2021 e, consequentemente, observar a dimensão da tensão instaurada na comunidade quilombola do Lago do Serpa. Na qual os moradores relatavam em detalhes os problemas e pediam providências aos representantes das instituições presentes na citada reunião.
Em pronto atendimento ao pedido oficial demandado pelo 5º Ofício da Procuradoria da República no Estado do Amazonas (PR/AM), O INCRA – AM, por sua vez, designou o servidor João Siqueira, antropólogo e membro da equipe técnica instituída para fins de trabalhar nas etapas da Regularização Fundiária do Território Quilombola do Lago do Serpa, que, junto aos representantes da SEJUSC/AM, participaram da reunião de coleta de informações e observações relacionadas aos casos de recorrentes conflitos estabelecidos dentro da área quilombola no município de Itacoatiara.
Na ocasião da reunião realizada junto aos moradores em frente à sede comunitária, a atual presidente da comunidade social, Sra. Johmara Marta de Sá Rodrigues, se apresentou acompanhada de mais duas pessoas e deixou evidente a sua contrariedade ao diálogo na forma como se pretendia estabelecer. Ela questionou a legitimidade do ofício expedido pelo MPF/AM, argumentando que o documento não tinha assinatura, ao que foi esclarecido pela representante da SEJUSC, pelo servidor do INCRA, Sr João Siqueira, que o documento fora assinado eletronicamente, o que poderia ser constatado olhando a margem lateral do ofício. Contudo, a Sra. Johmara Rodrigues se mostrou irredutível em relação a conversar de maneira ordeira com as pessoas presentes na reunião proposta.
A presidente da comunidade social incumbiu a pessoa que a acompanhava na oportunidade de filmar e gravar todas as conversas, mesmo sem a autorização dos presentes, pois pretendia guardar como prova o que ela considera ser uma acusação pessoal. Com tal entendimento, ela trocou o cadeado da sede social da comunidade deixando os comunitários sem acesso à sede, como também estaria impedindo a participação dos quilombolas do Lago do Serpa a quaisquer atividades futuras pretendidas de serem realizadas dentro da sede comunitária.
Ao ser informada pelo antropólogo João Siqueira, a respeito de uma denúncia formulada no âmbito do MPF/AM, dando conta de que desde quando a Sra. Johmara Rodrigues assumiu a direção da Comunidade social, ela invoca uma pretensa autoridade do cargo para cometer arbitrariedades, impedindo o uso da sede social que é um espaço de uso coletivo construído com a participação e os esforços dos moradores da comunidade do Lago do Serpa. Ocorre que a Sra Johmara Rodrigues, reiteradas vezes, demonstra publicamente o comportamento de intolerância com relação aos membros da comunidade quilombola local, sustentando a postura conflituosa para neutralizar o protagonismo da Associação Comunitária Quilombola do Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa na organização da comunidade.
A respeito da reunião realizada na Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, em Itacoatiara-AM, eis a conclusão do INCRA/AM:
Em atenção à demanda realizada em reunião do dia 10/08/2021/ no âmbito do IC nº 1.13.000.001361/2015-54, e pelo que já foi exposto, reputo que a situação de tensão observada na CRC Lago de Serpa apresenta gravidade com risco potencial para deflagração de conflitos com possível emprego da violência. Considerando o tratamento ultrajante relegado aos membros da ACQ – Serpa e demais moradores da comunidade pela presidente da Comunidade Social, considerando os relatos de abuso de exercício em nome desta entidade e indícios de fraude em seu processo eleitoral, sobretudo, no último pleito, e considerando ainda a natureza da personalidade da sra. Johmara Marta Rodrigues, notadamente recalcitrante e hostil, sugerimos que sejam tomadas as providências cabíveis no mais breve tempo possível. (Relatório de Observação Situacional sobre a CRQ – Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, em Itacoatiara/AM. INCRA/AM, 2021, p. 5)
Diante do exposto, semelhantemente como já consideramos ao longo da construção científica implícita na tese elaborada, o INCRA/AM, mediante o pedido do 5º Ofício da Procuradoria da República no Estado do Amazonas (PR/AM), observou in loco a situação preocupante da tensão materializada no território quilombola do Lago do Serpa, devido à gravidade e potencial risco da deflagração de conflito, além do possível emprego da violência. Isto requer providências cabíveis em caráter de urgência de competência dos órgãos de Estado, tendo em vista salvaguardar as vidas, para o bem estar coletivo da comunidade étnica quilombola situada na região do Lago do Serpa.
Cumpre assim, a fim de dimensionar o nível da animosidade das relações estabelecidas no quilombo rural em Itacoatiara – AM, narrar o registro do boletim de ocorrência Nº 22. E.4830.0001122, sendo este fato ocorrido no Acesso AM 010, KM 8, no bairro Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, quando o Sr. Ernando Soares Macedo (Presidente da Associação Quilombola) comunicou em 22/03/2022 que a Sra. Johmara Marta de Sá Rodrigues impediu que os comunitários adentrassem nos locais de propriedade da Associação Quilombola, contrariando a recomendação do Ministério Público (Nº PR- AM – 00039674/2021). Tendo a Sra. Johmara Rodrigues quebrado tal recomendação. Além disso, de acordo com o Sr. Ernando Soares, ele foi até a sua residência pegar alguns pertences e a Sra. Johmara começou a difamá-lo fazendo gestos, insinuando que ele tivesse problemas psicológicos como sinônimo de (loucura).
Neste sentido, ainda para fins de sublinhar as dimensões das relações conflituosas publicamente estabelecidas entre os quilombolas da comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, perante os seus conhecidos antagonistas, o mandado de intimação N° 566852/2024, determinado pelo Delegado da Polícia Federal Fabio Sandro Pessoa Pegado, pelas atribuições a ele conferidas, a Sra. Johmara Marta de Sá Rodrigues, a qual fora intimada para comparecer à Unidade de Polícia Federal, em 23/02/2024, na sede da Delegacia de Direitos Humanos e Defesa Institucional DELINST/DRPJ/SR/PF/AM, localizada na cidade de Manaus. O fato citado apenas ratifica a complexidade no que tange à conflituosidade, além dos ânimos exaltados envolvendo os agentes sociais quilombolas e os distintos antagonistas, isto leva as lideranças quilombolas a buscarem dirimir os seus problemas recorrendo aos órgãos de Estado, tais como: o Ministério Público Federal, INCRA, CONAQ, Polícia Federal, dentre outras instituições.
A manifestação em caráter sigiloso foi registrada sob o Nº PR – AM – 00043739/2018, de comunicação de ameaças e tráfico droga. O fato sucedeu em Itacoatiara em março de 2018. Diante disso, compareceram perante o Ministério Público Federal – AM, na sala de atendimento ao cidadão as pessoas para testemunhar que um indivíduo chamado Lázaro Correa, que adentrou a comunidade sem a autorização da diretoria do quilombo e construiu uma casa de alvenaria nas proximidades do campo de futebol. Ele organiza festas regada a bebidas alcoólicas e drogas ilícitas, o Sr. Lázaro Correa se comporta de forma desrespeitosa com a Diretoria do Quilombo, desqualificando a história do quilombo, além de proferir ameaças verbais ao Sr. Ernando Soares de Macedo, Presidente da Associação Quilombola, e ainda ameaçou de espancamento e morte a pessoa do Presidente do quilombo.
Assim sendo, consoante aos casos citados dos perigos subjacentes aos conflitos estabelecidos em Itacoatiara – AM, na realidade específica do quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, tememos que vidas humanas acabem sendo ceifadas em razão dos distintos antagonistas não quilombolas, quais sejam, autoridades políticas, empresários, fazendeiros, radialistas, blog de notícias, a partir das reiteradas situações concretas que ainda requerem a tomada de providências cabíveis em caráter de urgência.
É possível observar, concomitantemente, que a religiosidade se apresenta como um elemento envolto no cenário de constantes disputas políticas. Nos espaços demarcados de poder, os aspectos político-econômicos refletem na cotidianidade do quilombo rural de Itacoatiara, causando impactos no convívio social dos quilombolas que lutam permanentemente para ter seus direitos constitucionais assegurados.
Isto posto, a religiosidade vivida pelos quilombolas fortalece a comunidade no enfrentamento dos inúmeros problemas. A exemplo das querelas estabelecidas em âmbito jurídico, dos faccionalismos internos do grupo, do antagonismo da classe dominante faz-se necessário cultivar a esperança, coragem e, sobretudo, a fé como estratégia na organização dos agentes sociais religiosos. Os quais se deparam com circunstâncias alheias a sua vontade, extremamente desafiadoras, sendo contrárias ao coletivo quilombola.
As tradições religiosas expressam amiúde espiritualidades de origens diversas, nas procissões em devoção a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira dos quilombolas do Lago do Serpa, na reverência ao Sagrado Coração de Jesus, Padroeiro da Comunidade Social, no pagamento de promessas pelas bençãos conquistadas, na presença das denominações evangélicas pentecostais e neopentecostais no território quilombola rural, mas também nas narrativas do xamanismo indígena, nos relatos das visagens e dos recebimentos dos espíritos da floresta e dos rios, como pela aparição dos “bichos visagentos”, chamada tapiraiauara, uma onça, guardiã das águas.
Ainda que o fenômeno religioso seja elemento importante para a compreensão da cultura dos quilombolas, sabemos também que as práticas religiosas dos grupos étnicos influenciam na forma como os indivíduos interpretam a vida, em seu modus vivendi, segundo o ethos religioso. No entanto, os agentes religiosos na busca de reconhecimento por direitos territoriais assegurados, estabelecem através das lutas envidadas as pautas de reivindicações perante os órgãos competentes do Estado brasileiro.
Neste sentido, a pertença religiosa aliada a outros aspectos da vida social dos quilombolas constrói a identidade dos membros do grupo que resistem secularmente em seu território tradicionalmente ocupado. Não obstante as pressões político-econômicas por eles enfrentadas pelos interesses exploratórios do empresariado regional do Estado do Amazonas.
Está-se, assim, implementada em decorrência dos conflitos sociopolíticos estabelecidos na unidade social quilombola situada no entorno do Lago do Serpa, a constante preocupação das famílias em razão da cobiça financeira, aliada ao desejo da exploração por parte do capital econômico pela posse do lugar ocupado, contemporaneamente autodesignado como quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, no município de Itacoatiara – AM.
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45 Esta notícia está disponível em:<http://www.acrítica.uol.com.br/Manaus, publicada na página eletrônica do Jornal Acrítica em Manaus, em 30 de junho de 2013, acesso em 07 de maio de 2018.
46 Esta citação está disponível em: <http://www.mpf.mp.br/am/projetos-especiais/memorial/conte-sua-historia/jamily-souza-da-silva>, acesso em 15/04/2018. Trata-se de uma entrevista concedida pela quilombola Sra.Jamily Souza da Silva, ao MPF-AM, para o projeto “Um passeio pela história do MPF no Amazonas/Conte sua história”.
47 As informações referidas estão disponíveis no Pensar BH/Política Social (2009, p. 19). A comunidade quilombola de Luízes está territorializada na Vila Maria Luiza, no atual bairro Grajaú, na região oeste de Belo Horizonte (MG). A comunidade quilombola Mangueiras está localizada na zona norte de Belo Horizonte (MG), na região do Ribeirão da Izidora.
48 O Vereador Dr. Richardson Aranha, é um dos antagonistas do quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, propositor das Audiências Públicas realizadas para a discussão do assunto, o Parlamentar faz pronunciamentos na Tribuna da Câmara e deixa notória a sua posição contrária a demarcação do território quilombola no município de Itacoatiara, o político esteve pessoalmente em Brasília na Fundação Cultural Palmares para obter informações sobre a Titulação Definitiva da área quilombola localizada em Itacoatiara.
49 Na Audiência Pública realizada em 21 de dezembro de 2021, pode-se destacar o pronunciamento do Secretário do Interior, Sr. Aloísio Isper Netto, que na oportunidade representava o Prefeito do município, que relatou a perda de um investimento da ordem de quase R$ 5.000.000,00 (Cinco Milhões de Reais), em razão do empresário interessado na compra ter desistido do negócio por se tratar de uma área quilombola. Neste sentido, o Sr. Aloísio Isper Netto atribui aos quilombolas os conflitos vigentes na comunidade, assim como a responsabilidade pela não geração de empregos na localidade devido às empresas não poderem se instalar na área do quilombo para fomentar o turismo e a exploração econômica do Lago do Serpa.
50 A referida Audiência Pública está disponível em formato de vídeo, sendo possível acessar na Página oficial do Facebook, da Câmara Municipal de Itacoatiara – AM, com o tempo de duração de 1hora e 26 minutos.
51 A Sra. Johmara de Sá Rodrigues, Presidente da Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, participa de todas as Audiências Públicas, faz pronunciamentos contrários à titulação das terras do quilombo, e busca articular apoio junto ao poder político local para impedir a titulação definitiva do território quilombola.
Continua na próxima edição…
*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).
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