I
Entre cuias, panelas e bacias,
olhai nossa cabocla na cozinha:
a Selva provedora a presenteia
com relíquias das roças e dos rios.
São cachos do verão, feijões do inverno,
tomates pra enfeitar sardinhas jovens;
uma caça de casco, outra de plumas.
Palmeiras que têm voz constelam a mesa
com os gorjeios redondos dos seus frutos:
pupunhas virginais gosto de aurora,
bacabas, buritis, vinhos seletos
para o sol que diverte a nossa sede.
Olhai as mãos cerceando de verdura
o rosto amazonense da fartura.
II
Na culinária mais feliz dos trópicos,
casam-se os tucumãs com as tapiocas;
moquetas há que ressuscitam os peixes
e os elevam em chicória ao céu da boca.
Sabei: o vinagrete alegra tudo;
nada fraterno há mais que a farinha;
na falta do maná de tartaruga,
pode o pirarucu levar ao êxtase.
Depois ganha-se o beijo da castanha,
cálices vivem os sonhos do cupu.
Cuidemos pois dos frutos da floresta:
mais do que pães de amor multiplicados,
são milagres do tempo em que as Iaras
cozinhavam pra Deus nas festas raras.
III
Gastronomia é o rito do alimento,
tríplice unção que louva, ama e recria
os dons da Providência para a vida.
O toque do sagrado há nesse esmero
com que artesãos de carnes e legumes
consagram, sob o incenso dos temperos,
a arte e a comunhão da mesa posta.
Na Selva, mãe do verde, as oferendas
são multidões de safras ribeirinhas,
prodígios de cardumes peregrinos.
E o cozinheiro? É quase um sacerdote
do fogo de que falam os tachos índios,
o moquém sob o céu das horas fartas.
E comunguemos essas iguarias
com a gratidão geral das liturgias.
Obs.: Poema inserido às páginas 97/99 da Revista do IGHA nº 2/2014.
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