
*Mario Ypiranga Monteiro
Posse Real
O prefácio do continuísmo do Estado amazónico pode ser lido na experiência adquirida pelos conquistadores lusitanos e mais tarde luso-espanhóis, na costa que vai de Olinda ao Cabo do Norte, entre 1580 e 1616, que é o tempo distraído na expugnação dos intrusos, holandeses, franceses e ingleses. Depois começa a posse real, com o assentamento dos fortes em toda a bacia garantindo a fixação dos pequenos núcleos colonizadores. Eu diria corretamente que a obra de fixação política destas regiões nasceu com o Tratado de Utrech, – corretivo à primitiva linha demarcatória entre Espanha e Portugal. De qual- quer modo, é necessário buscar na fixação dos lusos no litoral norte, os antecedentes e conseqüentes do historicismo da continuidade do Estado, ou República, como diriam os sisudos cronistas. Da munificência de Dom João III nasceria a Nova Lusitânia, inaugurada por Duarte Coelho em terras do atual Pernambuco. Essa Nova Lusitânia renasceria ao depois, sob o patrocínio de Francisco Caldeira de Castelo Branco, com a Feliz Lusitânia.1 A experiência dos entreveros verificados ao longo da identação costeira cujos frutos eram a posse e domínio dos redutos franceses e holandeses,
obrigava, de agora por diante, a um mais amplo e profundo conhecimento da região que se dilatava, na direção da linha equinocial, para oeste, e sobre o meridiano de Tordesilhas para o norte das Guianas representadas pelos Estados da Venezuela e terras propinquas ao Rio de Vicente Pinzón ou Oyapoc.2 Nenhuma das expedições castelhanas, de que há memória, seja no largo cone de dejeção, seja para o interior, ao longo dos meandros da artéria mater, deixou vestígios de ocupação. Orellana, subindo e descendo o Amazonas, Lopo de Aguirre, Pedro de Ursua, apenas conheceram os dilatados horizontes da bacia, de que existem interessantes descrições nas páginas dos livros de Gaspar de Carvajal,3 Cristóvão de Acuña,4 Alonso de Rojas e posteriormente de Samuel Fritz5 Somente em 1626 é que as regiões do alto Amazonas viriam a ser exploradas, depois que à entrada do rio estabeleceram-se os portugueses, nas capitanias menores em que fora retalhado o Estado do Maranhão. Antes disso, porém, se fizeram no estuário severas pesquisas no intuito de erradicar os “herejes” dos seus quistos, onde já tentavam a expansão, adotando o sistema da ereção de fortes em que se concentravam forças regulares e em derredor dos quais se agrupavam famílias de colonos. Disso temos sabedoria pelo off- cio de 4 de setembro de 1616, enviado pelo rei ao governador do Estado do Brasil, Dom Luís de Sousa:
E que estando o nanio que enuiou perapartir, soubera por via dos Gen- tios como pello Rio asima cento e vinte legoas da nossa fortzª estaua bua Colonia de Inglezes, co molheres, e filhos; E dabanda do nortebua casa forte e pouoação em que Residião olandezes, que tinbãao Jafeito Engenhos de asucar, E que pella necessidade em que estaua de monições, e man- timentos me auisava, E porque a materia esta pedindo que se acudaçõ toda abrenidade possivel co Socorro a francisco Caldeira pera se fortificar, e ir continuando cõ o descobrinto das cousas daquelle Rio, e Conquista, e se conseruar o ganhado, Vos mando que Recebendo esta logo contaadeligencia enuieis ao dito francisco Caldeira algum Socorro, de mantes e monições e gente, porquanto deste porto de Lixª mando, que também se enuie logo hu Nauio, co o mesmo, para que francisco Caldeira não deixe por faltadelle de consigir o effeito pera que aby foi enuiado; etc.2
Abria-se à conquista portuguesa a nova região farta de tudo, como se infere do documento supra, de que tiravam já farto rédito os estrangeiros arraiados. As referências aos recursos aproveitáveis enchem o papelório burocrático, desafiando a tendência dos economistas: indiada mansa ou revel para escravaria ou adjutório, terra ubérrima e sadia para os tabacos e algodões, açúcares e drogas, e há mesmo quem fale em terra roxa. No mesmo ofício supracitado, discorre-se elegantemente coisas nossas:
E a terra fertíliçima de todos, os mantintos que costuma hauer no Brasil infenito gentio muy domestico, ediferente de todo o daquelle estado, e mui acomodado para effeito de seplantarem canas ese fazerem Emgenhos; E ainda para se poderem semear todos os demais frutos da eropa, E quedepresente bá quantidade de Algodões, Pita, tabaco E bua tinta vermelha decertas frutas, que os estrangeiros vão buscar7 E que tambem há Perolas,8 emtos sinais de minas de prata, e de outras Riquezas, E que be sadia de muitos böns Ares; etc.
Conclui-se que uma terra que oferecia abertamente todas essas riquezas ao primeiro que a abordasse, não podia ficar por muito tempo abandonada, inviolável. Daí a procurarem-na os flamengos, e irlandeses, franceses e ingleses, todos os hereges que encontraram aqui os portugueses, foi obra de somenos. Não eram, todavia, só de estrangeiros as assomadas. Partiam igualmente dos habitantes da terra, os quais
Iutavam desesperadamente para expulsar os novos senhores. As posições montadas pelos portugueses em Cuma e Caité, posições que significavam a soberania nacional no litoral entre São Luís e Presépio, por fim, tinham sido atacadas violentamente9
É certo. O índio desconhecia a política do melhor pelo melhor. Talvez até que fosse insuflado pelos desmoralizados aventureiros europeus, afastados violentamente, pelo insucesso das armas, do litoral, em luta sempre desigual para os portugueses, e por isso mesmo heróica. Não documentamos, mas é lógico pensar assim, diante da afoiteza com que massacravam os colonos, no início da jornada, chefiados pelo terrível principal Cabelo de Velha. Com mais forte razão, recomendamos esses episódios marcantes da conquista, alegando-se o fato de haverem os franceses instalado feitorias na costa, onde carregavam madeiras sem que fosse usado o processo da escravização.10 Mas acredito que a chatinagem não se verificava sem o interesse lógico do escravo. O francês era um aliado perigoso do índio, já o dissera Stadem,11 e João Lúcio de Azevedo12 concluiria que os franceses fizeram pazes à custa do comércio pacífico, fundando entrepostos na costa. É um francês que vem como piloto, guiando os portugueses pelo labirinto de canais e ilhas do grande rio, formando valhacoutos propícios onde se enquistavam, lançando as bases de futuras cidades. Não significa isso que os portugueses não houvessem conhecimento do lito amazônico. Vimos já como a afirmação do Orellana, 1539, encerra um precioso na história da conquista portuguesa na América.13 Essa conquista se dilata pelos anos de 1502 em diante. Joaquim Nabuco, citado por Arthur Reis, diz que
plusieurs Portugais visitèrent certaines parties de ces côtes, les uns chargés officialement de les explorer, d’autres dans um but commercial. Les détails manguent sur ces voyages et on peut à peine citer quelques noms d’explorateurs: João Coelho, en 1502 ou 1503; João de Lisboa; Diogo Ribeiro, tué par les indiens; Fernan Froes qui s’etait fait accompagner des pilotes Francisco Corso et Pero Corso.14
A situação de abandono desta região era um fato tão positivo à época, que até o rei da Prússia pretendeu implantar seu domínio aqui fazendo concorrência aos demais estrangeiros,15 Honório Rodrigues, na Civilização Holandesa no Brasil, diz que o motivo de não terem os saxões insistido na conquista do vale ou do Brasil, foi o interesse despertado pela procura da passagem do nordeste. Desconfio que outra fosse a causa: o clima tropical e principalmente a persistência com que os portugueses lutaram pela posse das posições chaves do estuário. Os holandeses foram mais além na sua expansão, pretendendo mesmo subir o Amazonas.16 Seguiram-nos de perto os ingleses, com as mesmas pretensões, não vingadas,17 em 1606. Novamente os holandeses investem, ganhando o Tapajós, em 1616. Outros interessados na conquista, ingleses e flamengos, fizeram custosos empreendimentos, de que nos dão conta os documentos coevos. Essas conquistas, todavia, eram efêmeras, porque vacilava o apoio que as sustentava, de ordem militar e econômica, principalmente esta, local; e os colonos, poucos eram recolhidos, de torna-viagem, dissolvendo-se os quistos anglo-saxões. Não é demais, contudo, frisar que representavam de fato para a administração colonial sério perigo, chegando mesmo a incomodar a política de Felipe II, como o caso da Companhia North, estabelecida por carta patente de 5 de setembro de 1619 nos rios Xingu e Tapajós. A tanto monta o agravo, que o rei foi obriga- do a protestar por via diplomática, contra a concessão a Rogério North18 dos domínios da coroa. Provas do abuso são as cartas do embaixador Conde de Gondomar ao rei, expedidas a 25 de outubro de 1620, e do rei para o governador, de 28 de dezembro do mesmo ano. Ei-las:
25. 8bro 620.
Copia de la carta do Conde de Gondomar pr’ Smde de Lon- dres de 24 de octr”, de 620.
La companhia que aqui estaua e hia para El Rio de las amazonas se desi cã q El Rey mando al Conde de Vvarruja quehera presidente dessa companhia q lho trouxesse lapatente enquele auia dado autori- dad para formarlla jaunque vinces as las dificuldades se la entregaron j la canzeloj anuloj por laclamacion j edicto publico declaro por traidor al capitan nort per auerse bido, imandoque ninguno le pulsesse dar assistencia niso corro. Despochado que Eluarr nort, su hermano – atrazido sabedor de tu buida le bise poner Em la carcere publicaj tomar todos sus papeles j a seguir aond el queria le auia extradido ni astradira.
Com beneplacito mioj aary esto aqui por a ora parece q está o cuida do, e sim memoria delles Pq el capitan nort… aqui le cortarian la cabeça assy melo hade… EIR… Nos e sabe adonde haj do aparar pela aun que un vediarse dixo que le auian preso turcos l lleuado a Argel, no veio q se haje confirmado, ni que consertesasesepa aqui nada Em que ha parado aunque todos se tiene por perdidoquero jo nofin no que auera id oalrio de las amazonas adesa parte a D… sus pa- rentes… queesta em algu portito donde se puede conseruar… qee…. la Em mejor forma que pudesse… a mucho j que se puese que hapuesto que em alguna parte.
Mande Vmdede facelbe pues agora sera tão facilj tan justo.
28. dezebro 620.
Dom Luís de Souza Gor amigo EU ElRey nos enuio muito saudar Da copia de hua carta do Conde de Gomdomar men Embaixador en Inglaterra que cõ que se nos envia entendereis o que ele escreue acerca do modo cõ que se desfez a companbia que naquele R.no se ordenaua para hir ao Rio das Amazonas, E dosintentos cõ q se ausentara o capitão mor, E porque importa, preuenillos, me pareceo enniaruos este avizo para que tanto que o receberdes façaes que em todas as partes desse estado se esteja cõ o cuidado devido, particularmente naquelle pretendia ocupar de que trata o dito Cond de Gomdomar para q demandando algum porto e como elle entende que o pretendera se ache preuenido e seja lançado delle para cõ isso se escudar a assistência que se teme que lhe farão em Inglaterra, E do como ouuerdes recebido esta carta E do que em execussão della fizerdes me dareis conta para o ter entendido escrita em Lxa 28 de Dezbro de 1620.
Ao Marqz daleng
Duq defrancavillar
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1 Alexandre de Moura expedira o Regimento porque se devia orientar Castelo Branco. Esse Regimento contém parágrafos incisivos sobre o reconhecimento da costa; a paz com o gentio dela ou a sua redução e aliança para obtenção de recursos alimentícios; a expugnação de “framengos, e ingreses, que surgem na boca do Rio entre as Ilhas”; faturas de peças, “duas Rouqueiras, e hum falquão de bronze”, duas “pessas de bronze piquininas”; e ainda o cuidado de fazer observações sobre os ventos e sondagens para de futuro evitar-se naufrágios nos baixios. Diz um historiador que a topografia local foi a condição precipua para a separação dos governos do Maranhão e do Brasil.
2 Não subsiste nenhuma razão para confundir-se a lingua do indio com a portuguesa, alterando-se o valor de certas letras, como o y, valor duplo, por i simples para justificar os parágrafos anárquicos da ortografia simplificada.
3 Relações que escreveu Frei Gaspar de Carvajal, in Descobrimentos do Rio das Amazonas, Brasiliana, 1941. – Vd. Francisco Lopes de Gómara, História General de las Indios, 1, capts. LXXXVI-LXXXVII, Madrid, 1922.
4 Nuevo Descubrimento del Gran Rio de las Amazonas, Madrid, 1891.
5 Diário, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 81, 353 usque 397, 1918.
6 Taunay, Livro Segundo do Governo do Brasil, in Anais do Museu Paulista, III, São Paulo, 1927, p. 10, 11.
7 Arthur Reis, Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira. 1. A fronteira colonial com a Guiana France- sa, 30, comentários. Taunay, op. cit. A tinta vermelha a que se refere o documento é o urucu, que serve também de corante aos pratos regionais. As pérolas, aqui referidas, devem ser as lempas, comuns aos mares do Brasil, mas também encontradas no Rio Tapajós, Negro, etc.
8 Op. cit.
9 Arthur Reis, cf. supra.
10 E não é isso, porventura, o que dizia Manoel de Sousa d’Eça, em 1619? “Esta gente ficam-nos visinhos e hé boa visinhança, e são causa do gentio daquelle districto não querer vir Comercear com nosco a nossa fortaleza, porq, alem dos males, q lhes dizem de nós (e pode ser q com razão) thes dão o que hão mister em mais abundancia, e os tratão melhor, e com mais verdade que he o que elles querem, posto que elles nuqua a tratão nem sabem de que cor hê”. – Anais da Biblioteca Nacional XXVI, 345-346.
11 Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil, cap. XXXV, 2. edição, 1926.
12 Estudos de História Paraense, Pará, 1893.
13 Joaquim Nabuco, O Direito do Brasil, 18, diz: “porque Vuestra Majestad está cierto que si no son los pilotos portugueses, no hay otro ninguno que sepa tan bien aquella navegacion por la continuación que allí tienen.”
14 Arthur Reis, Limites e Demarcações, etc., 1, 32. Não acredito que os mapas holandeses tivessem sido calcados nos portugueses. É uma insinuação que requer prova, e essa prova é dificil trazê-la à barra do tribunal da História. Se os holandeses freqüentavam as regiões, antes dos portugueses, crível é que a cartografia da época fosse exclusivamente sua e não originalmente portuguesa. Sobre a carta de Jodocus Hondius (1598), lê-se na Histoire de la Zone Contesté selon le Contre Mémoire Anglais – Troisième Mémoire, de Joaquim Nabuco: “Cette carte profita si peu aux premiers trafiquants hollandais, la carte est de 1598, que, en 1714, la Compaignie ordonnait à son Directeur, etc”. – 8. A prova disso é que na cartografia portuguesa dessa época a foz do Amazonas ou Rio Marañon era confundida com o atual Estado do Maranhão. É a lição de Santa Rosa, História do Rio Amazonas, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, V. 191, 1927. O mesmo diz que a “relação escrita em Amsterdam no ano de 1628, segundo os depoimentos de várias testemunhas, manifes- ta que os holandeses conheciam toda a costa até ao Amazonas, mas com preferência a bahia do Maranhão”. Idem, 28.
15 Correspondência dos Governadores in Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, 25, II, Belém, 1902. Illmº e Exmº Senhor. – Pello Official Francês que aqui veyo entregar os Escravos pertencentes a estes moradores e buscar os que pertencião a Praça de Cayena me constou que nella era notorio que El Rey da Prussia intentava fazer um estabelecimento na America, e que tambem se desia que devera ser no Orinoco. Não sey a verdade deste negocio porem se eu tivera mais forças devera mandar engroçar a guarnição de Macapá, e não so fortificar muito bem aquella nova Praça, mas trazer alguas embarcações de guarda costa porque não succeda escorregarem para o sul, e virem nos fazer algua violencia nas nossas terras; porem este Estado se acha nos termos em que tive a honra de informar a V. Ex. pela Frota, e não me fica outro meyo mais do que dar esta notícia a V. Ex. para por na presença de S. Magestade e determinar o que for servido. Deus Guarde a V. Ex. muitos annos. Pará 1 de Novembro de 1752. Senhor Diogo de Mendonça Corte Real”.
16 Fundaram, entre 1599 e 1600, no Rio Xingu, duas colônias que denominaram Orange e Nassau. Vd. Joaquim Caetano da Silva, L’Oyapoc et l’Amazone. Question Brésilienne et Française. 1, 11.
17 Arthur Reis, Limites e Demarcações, etc., 1, 34.
18 Integravam a Companhia: Robert Rich, Conde de Warwick, Condes de Arundel, Ruttand e Dorset, lordes Paget e Peter, além de outras personalidades de influência. De regresso à Inglaterra, o capitão Roger North foi detido e dissolvida a comandita.
Continua na próxima edição…