Manaus, 28 de novembro de 2023

A Capitania de São José do Rio Negro

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*Mario Ypiranga Monteiro

A Dilatação da Fé

Fato constante na cronação histórica da conquista portuguesa é a preocupação da coroa, melhor, da Igreja, quanto à posição do índio em face à ou à da alma. Em todos os episódios que têm por fim a ocupação do solo, nessa árdua jornada da América, o padre aparece como elemento de destaque ao lado do soldado. Assim acontecia em todos os núcleos de povoamento do Brasil. Ao lado do forte, que era a principal preocupação do invasor, o templo de Cristo, como uma afirmação do domínio espiritual. Essas duas forças conjuntas, a espada e o crucifixo, andavam com o reinol para onde quer que ele se deslocasse em aventuras. A fé que se estampava no pano largo das caravelas da conquista, essa mesma fé impelia os barbudos soldados portugueses e os padres, para a dominação dos largos chãos da Terra de Santa Cruz. A lei imposta pelo gume da espada, afastava os recalcitrantes, aqueles que deslizavam pelo meio dos conversos, subtraindo-os à ordem e revertendo-os às digressões primitivas. A religião, interessando o gentio através da palavra melíflua do sacerdote, palavra bem entendida, nunca em português, mas em bom tupi, que atraia o catecúmeno.1 Esses dois argumentos -o da força e o da paz, o da espada e o do crucifixo -contribuíram para a construção de uma nacionalidade forte, capaz de resistir aos desagregamentos políticos. É caso esporádico a fortaleza longe da ermida. Foram elas duas que afastaram o meridiano além da delimitação teórica de Tordesilhas. Seriam elas duas que viriam asselar a garantia das nossas fronteiras.2

Pode ser que não existisse nenhuma coincidência, mas acredito que no caso do Norte houvesse o firme propósito de alijar-se os concorrentes, os “herejes”, calvinistas, luteranos, protestantes, valdenses, a seita espúria e condenada às piras nas ruas das cidades mais famosas da Europa e até da América. O fato é que a jornada conquistadora nesta parte do mundo, revestiu-se de um cunho profundamente cristão, que não foge à visão perquiridora dos historiadores.3 E o primeiro passo dado na direção da conquista espiritual da terra, está referendado nas Capitulaciones que o imperador Carlos V entregara a Orellana. Como adelantado, Orellana se obrigava a proceder a conversão do gentio, iniciando as missões. Mais tarde veremos, como a marcha realizada do nordeste para o setentrião, a conquista das almas primárias constituiu um dos mais fortes alicerces da administração colonial. A conquista espiritual se fez atendendo- se às circunstâncias do espaço e às condições locais, por duas maneiras diferentes, a estável e a que poderíamos denominar itinerante. A conquista estável procedeu-se com a fixação dos elementos nas aldeias, com a construção do forte, que originava os povoados, depois os lugares e mais tarde as vilas. A itinerante é aquela que acompanha as tropas de resgates pelos manadeiros, perdendo-se pelo sertão a dentro. É o trabalho mais difícil, mais árduo, implexo de perigos e que requer homens experimentados, chegados ao espírito de renúncia. Não foram poucos os sacerdotes que deixaram a vida nessas corridas pelo matoal, em busca do escravo.

Toda a questão tumultuosa da conquista espiritual da Amazônia é farta de lances de coragem, espírito de sacrifício e de martírios. Quando não era a flecha mortal que plantava no solo a beneditina coragem do sacerdote, eram outros percalços: naufrágios, doenças, esgotamento físico. Sem dúvida não tivemos um Nóbrega ou um Anchieta, mas há exemplos fortes e facundos em Vieira, Figueira e outros incansáveis elementos que muito dignificaram o apostolado, quer com a prática diuturna da caridade, defendendo o gentio, quer com o estudo da região, deixando-nos obras imperecíveis.

Assistimos ao alvorecer dessa conquista espiritual em pleno século XVII, com a introdução dos Franciscanos da Província de Santo Antônio, os primeiros que tomaram pé em Belém do Pará, fundando o Convento de Santo Antônio, ao tempo em que Caldeira de Castelo Branco erigia o Presépio. A história guardou os nomes dos primeiros missionários, os quais eram os padres freires Cosme de São Damião, Manuel da Piedade,4 Antônio de Merciana,5 Cristóvão de São José, Sebastião do Rosário e Felipe de São Boaventura. Os dois primeiros são nomes mais ligados ao Maranhão e bastante referidos por Berredo e outros cronistas. Os outros chegaram a Belém do Pará no dia 22 de julho de 1617 e fundaram, em agosto, o Hospício de Una, distante meya legua da mesma Cidade.6 Neste mesmo ano de 1617, aportou a Belém mais outro apóstolo, provido da função de primeiro vigário da matriz de Nossa Senhora da Graça de Belém, que estava ainda dentro da Fortaleza, diz Berredo. Era ele o padre Manuel Figueira de Mendonça. A 20 de junho de 1618 assumiram o controle do governo temporal da indiada. Neste ano de 1618 verificou-se o primeiro escândalo social em Belém, com repercussão na vida eclesiástica. É o caso que homiziando-se dois oficiais, capitães Paulo da Rocha e Tadeu dos Passos, no Convento de Santo Antônio, escapando à ira de Francisco Caldeira, ali foram procurados, ficando ferido um dos religiosos.

Desde que iniciaram suas relações com os selvagens Tupinambá, tiveram os sacerdotes que suportar a refrega, ora partida do espírito interesseiro e agressivo do colono para com o índio, ora deste para com aquele, e, por fim, o próprio trabalho de desagregação intentado pelos “herejes”. O contato entre os padres de Santo Antônio e os do Carmo estabeleceu-se com os Tupinambá e Tapuia, então os mais ferozes selvagens daquela região, depois com os Nheengaíba.7 Os padres mantinham vivas as tradições conservadas pelos colonos, sobre a escravização dos índios, dedicando-se mesmo ao processo de resgatar aqueles que estavam à margem dos sacrifícios votivos, os chamados índios de corda. Hiatos existem, e largos, no historicismo dessas violências condenadas uma porção de vezes e outras tantas reiniciadas. Nem sempre, porém, era o padre tão inimigo do índio ao ponto de exigir a sua escravização permanente, fazendo-o, entretanto, com as compensações naturais àquele que presta serviços a outrem.

Diz o autor do Noticiário Maranhense.

porque assim um tem préstimo pera uma cousa e outros pera outras; nos pera lhes levar a fé as suas terras, pulir e doutrinar, e para nos servirem, caçar e pescar, creados nesse exercício de mares e matos com que ajudando-nos nós deles nos esforçamos sustentando o Estado pera éles lograrem o bem, que ignoram de sua salvação, etc.8

No início era assim. Depois, a ambição dos colonos, o progresso do Estado, a coberto das munificências reais e dos próprios imperativos locais, levou os padres ao esquecimento da missão de paz e santidade a que estavam votados e entraram de escravizar por sua conta e risco. Mas estamos fugindo ao espírito do nosso assunto. Há quem murmure que a posição assumida pelas demais ordens religiosas perante o estado social do selvagem, proveio da atitude da Companhia de Jesus. Talvez que haja verdade nisso, sabendo nós que logo de início foi negado consentimento, pela Câmara de Belém à Companhia, para estabelecer se ali, alegando- se, por conveniência aliás dos colonos, que já existiam dois conventos na cidade.9 Parece, entretanto, que de todas essas missões a principal foi, sem nenhuma dúvida, a dos Jesuítas. Teve larga projeção no cenário da conquista espiritual e temporal.

A todos missionários era estatuída a obrigação da assistência espiritual, fosse escravo ou forro, e como complemento da conversão a modificação de seus hábitos de nomadismo, ensino da língua portuguesa, preparo técnico, nos ofícios mecânicos, agrupamentos das tribos em núcleos de sentido urbano, modificação do regime de trabalho dispersivo num trabalho disciplinado, de fundo agrícola, vida social formada pelo respeito aos vínculos da família e seriedade doméstica.10 Podemos dizer que esse programa de atividades sociais, na base do espiritualismo sadio, foi cumprido com réditos fabulosos para a colónia: réditos não somente de fundo espiritual, conquista de almas para a Igreja, mas réditos também de cunho econômico, de forma e aspectos intimamente sociais.

Do fato de se localizarem nos redutos fortificados, resultava para os missionários catequistas a fortuna de aumentarem o número de povoadores e, portanto, de súditos fiéis, escravos ou não de sua majestade. O índio transferido da vida original para o núcleo socializado perdia as agudas arestas do barbarismo, adaptando-se. É verdade que alguns fugiam, regressando ao primitivismo, mas são exceções tão insignificantes que absoluta- mente não despertam interesse. O grande numerário humano estava ali nas aldeias derramadas pelo Tapajós, Xingu, Tocantins, Amazonas, Solimões, Madeira, Negro, Branco, etc., aonde quer que o sacerdote conduzisse a conquista. Pode observar-se da leitura dos volumes referentes à Amazônia, que quase todas as obras missioneiras de ontem são hoje as realidades magníficas das cidades da bacia. É o esforço do padre em conjunção com o do soldado.

Em 1624, quando do decreto real de 15 de maio, que demovia o peso da escravidão do índio, houve séria comoção na colônia, e em Belém com especialidade. Voltamos a falar em frei Cristóvão de Lisboa, aquele que trouxera ao Maranhão o diploma régio de sus- pensão da autoridade do colono sobre o índio, como protetor in extenso do selvagem. Este, até então, vivia no regime da escravidão absoluta. Mas, como deixamos explicado em capítulo anterior, a população de Belém não podia ver com bons olhos a situação, pelo que a Câmara mexeu-se, obrigando o sacerdote a suspender a execução do decreto e retirar-se cauteloso para depois fulminar a excomunhão. Muito interessante, a luta travada entre os missionários e o poder civil pela manutenção do estado permanente da escravidão amarela, a que Berredo se refere fartamente nos Anais Históricos. Não é singular a missão dos Nheengaíba?

A catequese dos Aruãn? A missão do Tocantins?11 O trabalho dos Franciscanos é muito importante, neste particular, e não se pode negar que a eles se deve a catequese dos Aruan de Marajó, em 1666. À jornada de Marajó ajuntemos as missões de Jari, em 1662; Marajó em 1666, foi obra de frei Manoel do Espírito Santo. Seguem-se os núcleos missioneiros de Menino Jesus, Amaratuba, Bocas, Caviana, Urubuquara, Acapari e Paru, entre as bocas do Amazonas e o Nhamundá.12

Mas o aparecimento das várias ordens religiosas trazia o inconveniente da discórdia, principalmente das menos favorecidas -se as havia de fato, contra a mais rica, como é notório que fosse a dos Inacianos portugueses, os quais mantinham privilégios de ordem econômica tanto na ilha de Marajó como nos dilatados sertões da Amazônia.13 Pode ser que João Lúcio de Azevedo se tenha apaixonado demais com a atuação da Companhia, ao ponto extremo de dedicar-lhe vários estudos, ou Melo Morais uma famosa história de suas missões na América do Sul; fato é, porém, que dessa atuação ficaram frutos inegáveis que nos foram benéficos. Descobre-se, aqui e ali, pontos fracos no sistema, sobressaindo por exemplo o critério egoísta do açambarcamento em favor das ucharias da Ordem, sonegando-se impostos ao rei.

Esses incidentes, entretanto, dependiam mais do caráter dos homens, ou de cada homem, que propriamente do espírito religioso, da Ordem a que pertenciam. Vieira, ele mesmo, foi obrigado a aceitar como definitivo o fato da escravidão, e nós sabemos como foi prolongada a luta que sustentou contra a colônia pela reabilitação do índio. Já não podendo obliterar os efeitos causados pelos prejuízos sociais coetâneos, apelou para o recurso do escravo negro, com o fim de salvar o amarelo. Vieira, com essa permuta, de qualquer modo grosseira, criara a mística da subserviência moral do negro. Recomendava-o talvez psicologicamente incapaz de emparelhar com o índio. Enquanto isso, este, dizia ele, era fisicamente incapaz de suportar os trabalhos do campo, das moendas. Muito bom para remeiro e caçador, falhava na agricultura. Erra- do, certamente andou, sustentando essa afirmação categórica compreensivelmente falha. O excelente catequista apenas procurava desviar do natural o ódio do colono. Do colono só? Talvez dos outros sacerdotes, também, daqueles máos sacerdotes que seriam expugnados do meio, remetidos presos para o reino.

Entretanto, voltando à situação dos Franciscanos, progrediam eles no seu trabalho de infiltração entre a gentilidade, fixando-se por determinação expressa do governo metropolitano, em 1707, em Marajó, São José, Bom Jesus, Paru e Urubuquara, para revogar-se a mesma ordem a 1.º de maio de 1715, restringindo-se o campo de operações dos missionários de Santo António, em favor dos da Ordem da Conceição. Salientam-se, entre os componentes daquela Província, além dos padres já mencionados mais frei João de Santo Atanázio, frei Boa Vista de Santo António, frei Joaquim da Conceição e frei Mateus de Jesus Maria. Referimo-nos alhures ao trabalho de certos sacerdotes no campo intelectual, e seguindo o historiador Arthur Reis, observaremos que frei Cristóvão de Lisboa escreveu uma História dos animais e árvores do Maranhão; frei Boa Vista de Santo Antônio interessou-se pela língua dos Aruãn e Sacaca, compondo arte e vocabulário destas línguas, o mesmo acontecendo aos freires Joaquim da Conceição e Mateus de Jesus Maria, que organizaram catecismos, sumulas, gramáticas e vocabulários dos Aruãn, Aracajú Maraumi.14 Os dois últimos ainda empregaram seus lazeres com o estudo da língua geral. É um fato importante a assinalar, na história do Brasil, este do interesse manifesto do sacerdote pela língua e costumes do natural. Por solicitação do próprio ofício tiveram eles que dedicar-se ao estudo acurado do idioma, indo nisso também muito das inclinações particulares dos doutos missionários. Foi o interesse do padre que salvou o tupi, ou a língua geral, do esquecimento, como já havia ele salvo o latim, na idade média. Desde o início da colonização vemos sacerdotes dando informações preciosíssimas das nossas coisas: história, etnografia, lingüística. Seria enfadonho enumerar tais benefícios. culturais, nem cabe no limite deste estreito balanço histórico. Mas para assinalarmos um destes exemplos, basta que nos lembremos de Figueira, morto tragicamente em viagem para o Maranhão. A língua do índio foi usada no norte até o governo de Mendonça Furtado, quando se tratou de eliminá-la. Golpe político dos mais suspicazes. Político e nunca de origem sentimental. A língua do índio tinha a propriedade de tornar o colono mais brasileiro que português, aproximando-o mais do selvagem, capacitando-o para a integração do meio. A princípio, como se viu na indicação de Arthur Reis, aconselhava-se ao padre a aprendizagem da língua para o progresso da conversão do gentio e as prédicas eram feitas em excelente tupi. Mais tarde, essa aprendizagem seria proibida severamente, aconselhando-se o uso da língua portuguesa.15

1 A praxe era mandar-se para os sertões excelentes “línguas”, isto é, sacerdotes que conhecessem o idioma da terra. Entretanto, nem sempre assim acontecia, mas a verdade é que o padre, assentando arraial em qualquer parte da colônia, cuidava logo de aprender a língua geral, sem a qual nada podia fazer em proveito da religião…

2 Mário Ypiranga Monteiro, Fundação de Manaus, 14.

3 Foi por essa razão que Manuel de Sousa d’Eça pedia missionários, a fim de impedir que os “herejes” ensinassem doutrinas exóticas aos naturais.

4 Berredo, idem, idem. – Vd. nota 6.

5 Era o comissário. Vieram em companhia de Manuel de Sousa d’Eça, provedor da Fazenda Real, segundo Berredo, Anais Históricos, 1. 175. Melo Morais, op. cit., 1, 110.

6 Ambos foram os primeiros, que acompanharam a Jerônimo de Albuquerque a Pernambuco. Pertenciam à mesma Ordem. Os demais, por solicitação dos conquistadores do Maranhão, vieram por decreto real.

7 Assim chamados porque possuíam a língua ruim. De nhen, ou nhehe fala, e iba ou fua, ruim, diversa.

8 João de Souza Ferreira, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 313.

9 O requerimento parece datar de 1.º de abril, mas o ano é efetivamente 1626. Melo Morais, História dos Jesuítas, 134, diz que eram três: Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora das Mercês e Santo Antônio.

10 Arthur Reis, A Conquista Espiritual da Amazônia, 8, São Paulo, sem data.

11 No Tocantins apostolou frei Cristóvão de Lisboa, partindo da aldeia de Una a 8 de agosto de 1625. acompanhado dos sacerdotes frei Sebastião de Coimbra, frei Cristóvão de São Joséph, e dos seculares João da Silva e Manoel de Pina, “excelentes línguas para a introdução do sagrado Evangelho na bar- baridade daquele gentilismo”, diz Berredo.

12 Arthur Reis, op. cit., retro, 15.

13 João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará, citado.

14 Arthur Reis, A Conquista Espiritual, 16.

15 Anais da Biblioteca e Archivo Público do Pará, 11. 148. Vide Mário Ypiranga Monteiro, Aspectos Evolutivos da Língua Nacional, 23.

Continua na próxima edição…

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos.

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