Passados cento e trinta e quatro anos e as cenas deste acontecimento ainda permanecem gravadas na memória da maioria dos práticos das embarcações, que trafegam pela Amazônia, alguns descrevendo, com detalhes, a perda de um dos navios e de numerosas vidas, muitas nas mandíbulas dos gigantescos jacarés açus de papo amarelo, que então habitavam, aos milhares, as margens do Amazonas, abaixo do Encontro das Águas, e dentro dos lagos do Rei, Aleixo e Puraquequara, todos extremamente piscosos, nos quais estes animais procriavam, tão fartos, que os pescadores diziam poder andar em cima deles sem serem atacados. Mas o fato aconteceu em julho, com o rio cheio, poucos peixes e jacarés famintos. O acidente deu-se em um local situado em frente da boca do lago do Puraquequara, na costa do lago do Rei, a 20 milhas abaixo de Manaus, onde o litoral faz uma espécie de cotovelo ou ponta. Na época esta era uma região praticamente desabitada, sem a possibilidade de maiores socorros e onde o rio tem forte correnteza, que também foi a causa de muitas mortes.
Vejamos como o cônego Francisco Bernardino de Souza descreveu este primeiro grande acidente fluvial da Bacia Amazônica, no seu memorável livro Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas, editado, em 1873, no Pará, pela Typographia do Futuro, e reeditado pelo Fundo Editorial da Associação Comercial do Amazonas, Coleção Hiléia Amazônica, em 1988.
“Do porto de Manaus, com destino ao Madeira, saiu. às 11 horas da noite, de 7 de julho de 1870, o vapor Purus.
Eram 2 horas da manhã do dia 8.
O vapor Arary, que havia saído de Belém com destino a Manaus, navegava ao longo da costa do lago do Rei, em frente ao Puraquequara e na distância de 8 a 10 braças da terra.
Neste lugar forma o rio uma espécie de cotovelo ou ponta. Ambos os vapores navegavam com marcha regular e dirigiam-se um para o outro, mas a grande curva ali formada pelo rio, impedia-os de se poderem descobrir.
A noite estava escura e descuidados dormiam os passageiros do Purus sem pensarem na morte, que rápida para eles se aproximava.
Pouco depois das duas horas da manhã, o oficial de quarto do Arary distinguindo as luzes de um vapor, que caminhava águas abaixo, mandou despertar o comandante, que imediatamente dirigiu-se ao passadiço da caixa de rodas, ordenando ao maquinista de quarto, em voz alta, que diminuísse a meia força daquela com que seguia.
Navegava o Purus águas abaixo, na distancia de pouco mais ou menos de cinco milhas, demorando quarta e meia de rumo por estibordo da proa do Arary.
O comandante Leal, à bordo do Arary, fez tudo quanto dele podia depender para evitar o sinistro. As duas massas iam cada vez mais se aproximando, impelidas, uma pela força da corrente e do vapor, e a outra pela do vapor somente.
As 2 horas e 15 minutos teve lugar o abalroamento.
Foi horrível o choque e mais horrível ainda a cena de confusão que teve então lugar. O Arary galgou por sobre o Purus, entrando-lhe por um dos lados e fazendo-o afundar-se, dobrando-o e quase unindo a popa com a proa.
Lançados violentamente fora das redes e dos beliches, corriam atordoados os passageiros do Arary, aumentando a confusão e a desordem. O grito e o soluçar das mulheres e das crianças, as imprecações dos homens, a voz vibrante do comandante mandando à manobra e dando providências para salvar os náufragos do Purus e impedir que também por ele fosse arrastado o Arary, na voragem das águas; o ranger das tábuas que se desconjuntavam, que se partiam, a escuridão sinistra da noite, o ruído das águas, tudo dava à essa cena um caráter horrível e como um arremedo do inferno.
As cenas que se davam a bordo do Purus eram ainda mais lamentáveis. Os gritos de terror dos que se achavam no Arary, confundiam-se com o gemer dos moribundos, com o estertor dos que se debatiam esmagados, com os gritos pungentes de socorro que soltavam os do Purus.
E o vapor se ia pouco e pouco afundando.
De repente ouviu-se um estampido horrível, e as águas fervendo e espadanando espuma, ergueram-se furiosas, ameaçadoras, como uma imensa montanha, e depois caíram com medonho fragor, abrindo enorme voragem, em que se submergiu o navio.
A caldeira do Purus havia arrebentado. O comandante Leal deu ordens prontas e tomou as medidas necessárias não só para salvar os náufragos do Purus, como para restabelecer a ordem e a calma à bordo do Arary. Os escaleres foram lançados ao rio e a tripulação e os passageiros começaram a recolher das águas os míseros que ali se debatiam. Levaram o resto da noite nessa piedosa ocupação, porém dos mais de 200 passageiros, que levava o Purus, apenas conseguiram ser salvos 73 !
As 12 horas e meia do dia 8, chegou o Arary a Manaus, levando a notícia da horrível catástrofe”.
O Arary fora construído, em 1868, pelo estaleiro Camell Laird., para a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, pertencente ao Barão de Mauá, com o casco de ferro, um dos primeiros deste tipo, e pás. O Purus I chegara à Amazonia, a 2 de dezembro de 1869, tendo 300 toneladas e 180 cavalos e pertencendo a Companhia Fluvial do Alto Amazonas, de Alexandre Amorim. Ambos, na ocasião do acidente, eram navios novos.
Um segundo desastre teve maiores repercussões econômicas para a praça de Manaus, o do navio Amazonas, pertencente à Amazon Steam, que afundou, no Madeira, com todo o carregamento destinado aos seringais daquele rio, causando sérios transtornos para os aviadores daquela bacia hidrográfica sediados em Manaus.
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