*J.R.Guzzo
pesquisa mostraria que 100% dos brasileiros são contra o foro privilegiado. Mas será que há mesmo neste país tanta gente contra a impunidade? A resposta é: não, não há.
“Nenhum político ou magistrado precisa de imunidades para exercer com liberdade e autonomia suas funções. Basta que eles sejam honestos”.
Quantas pessoas são contra o “foro privilegiado” ou a “imunidadeparlamentar”, essas regras que permitem aos políticos brasileiros ser julgados apenas por eles mesmos quando cometem crimes e, portanto, garantem que não vai haver punição nenhuma para ninguém? Ou que dão a certos indivíduos o direito de ser julgados apenas nas instâncias superiores da Justiça? Qualquer pesquisa do Ibope ou do Instituto Santa Izildinha de Opinião Pública vai dar que 100% são contra, podendo, com a margem de erro, chegar a 102%. Mas será que há mesmo neste país tanta gente contra a impunidade? A resposta é: não, não há. Ao contrário, há uma quantidade surpreendente de cidadãos que são a favor esses privilégios – na tentativa de que pelo menos algum crime de peixe graúdo, um só que seja, possa enfim acabar punido. Digamos: se o senador matou a mãe a machadadas, e não conseguiu provar queela estava infernizando o exercício do seu cargo, talvez ele possa ter problemas com a Justiça. Não seria, nesse caso, julgado “por seus pares”, e sim numa vara da Justiça criminal. Mas nem isso está indo adiante. O julgamento começou, parou e não tem data para recomeçar.
O exército que luta pela continuação dos foros privilegiados é vasto e bem armado. Para começar, vai muito além dos deputados federais e senadores – esses aí levam quase toda a culpa pela existência do sistema, pois ficam com a imagem de ser os únicos que tiram vantagem dele. Mas não é assim. Na verdade, é o contrário: há 513 deputados e 81 senadores, num total de 594 beneficiários, e isso é um pingo d’água no total de brasileiros protegidos atualmente pelos diversos tipos de impunidade em vigor para quem tem carteirinha de “autoridade”. Pode ser difícil de acreditar, mas o fato é que o contribuinte paga, no presente momento, os salários, benefícios e futuras aposentadorias de nada menos que 55000 indivíduos que têm o direito de não responder à Justiça pelo que fazem, de uma batida de carro ao estupro qualificado – não da mesma forma que respondem os demais 200 milhões de habitantes deste país. Desfrutam dos privilégios, numa conta geral, todos os juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores – incluindo-se aí os “tribunais de contas”. Só de juiz, nesse bolo, são mais de 17000.
Somam-se a eles os procuradores, subprocuradores, promotores e tudo o mais que faz parte da armada de Ministérios Públicos que há por aí. Estes são um monte, acrescidos de “núcleos” – para o Trabalho, o Meio Ambiente, a Cidadania, a Mulher, o Índio, o Gênero, e por aí vai, até onde alcança a capacidade do serviço público em multiplicar a própria espécie. Entram também os 27 governadores, os prefeitos e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Têm foro especial, ainda, todos os ministros de Estado, e aí a proteção vale realmente para qualquer um – vale, por exemplo, para essa ministra que se acha escrava por ganhar só 33000 reais por mês.Somam-se mais umas turminhas de burocratas aqui e ali, e pronto – eis aí os tais 55 000. Em que país bem-arrumado deste mundo existe alguma coisa parecida? Por que o resto da humanidade estaria errada e brasileiros estariam certos? (Juízes e procuradores, aliás, ficam horrorizados com o foro privilegiado e as imunidades dos políticos, mas acham a coisa mais normal do mundo que o mesmo privilégio seja aplicado a eles próprios.)
É claro que toda essa multidão, mais suas famílias, amigos e amigos dos amigos, é furiosamente a favor da manutenção das “imunidades”. Eles não abrem mão nesta vida, de jeito nenhum, de três coisas: os salários acima do teto legal, os “benefícios” que obrigam o cidadão brasileiro a lhes pagar, fora isso, a comida, a casa, o carro e sabe Deus o que mais, e o “foro especial”. Utilizam, em seu favor, um argumento antigo e que hoje se tornou apenas velho – o de que os privilégios legais servem para defender a sociedade inteira, e não apenas os seus beneficiários diretos. Os políticos, por exemplo, não poderiam exercer com liberdade omandato para o qual foram eleitos se estivessem sujeitos o tempo todo a processos judiciais que certamente seriam abertos contra eles por seus adversários. Os magistrados e procuradores, da mesma maneira. não poderiam julgar nem denunciar os inimigos da sociedade de forma imparcial e independente se vivessem sob o risco de ficar atolados em processos judiciais movidos por governos, réus influentes e outras forças poderosas. Seria, em suma, a defesa da democracia, das liberdades e das instituições. Mas não é nada disso.
Nenhum político ou magistrado precisa de imunidades para exercer com liberdade, consciência e autonomia o seu mandato e as suas funções. Basta que eles sejam honestos; basta que não pratiquem crimes previstos no Código Penal brasileiro. As prerrogativas legais que protegem hoje o seu trabalho continuariam a existir, perfeitamente, se fosse suprimido o foro especial como ele funciona; ninguém sugeriu, nem de longe, que tais garantias fossem diminuídas. Se um cidadão honesto não precisa de nenhuma “imunidade” para viver e trabalhar em paz, por que raios um deputado, juiz ou promotor público haveria de precisar? Isso aqui, afinal, não é nenhuma ditadura em que os donos do governo podem cassar deputados ou demitir juízes de direito que lhes desagradam. O foro especial, na verdade, é inútil para proteger os honestos; serve unicamente para salvar o couro de quem quer roubar, vender sentenças e praticar outros crimes.
Naturalmente, juntam-se aos interessados diretos na defesa das imunidades todos os partidos, lideranças e militantes partidários do Brasil. Estão nessa turma, é claro, todos os escroques das nossas gangues políticas. Mas o escândalo real, nesse assunto, é o apoio que a impunidade recebe do PSDB e do PT e seus satélites – os “partidos éticos”. vejam só, que se dizem diferentes do lixo geral e se apresentam ao público, num caso e no outro, como modelos de integridade ou campeões das causas populares. Alguma vez as imunidades prejudicaram um rico? Alguma vez beneficiaram um pobre? Mas aí é que está. O senador Aécio Neves, vice-rei do PSDB, foi flagrado numa tentativa de extorsão e hoje vive sob a proteção do foro privilegiado; no dia da votação sobre o seu destino, a presidente do PT, em vez de comparecer ao Senado, conseguiu estar na Rússia. Pior: do maior líder popular que este país já teve não se ouviu até agora um pio contra essa safadeza disfarçada de “garantia constitucional”.
O problema é que, quando há uma injustiça desse tamanho na frente de todo mundo, dessas que clamam aos céus, e você fica em silêncio, não há saída: você é cúmplice. Lula e o PT, tanto quanto seus grandes adversários, estão a favor do foro privilegiado na vida real. Sem o seu apoio, jamais se mudará nada disso. Mas por que eles iriam combater o que mais os ajuda?
*Jornalista. Artigo na Revista Veja nº. 2560, de 13/12/2017.
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