Manaus, 18 de maio de 2024

Alcides Werk: Dez anos depois

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Conheci aquele homem assim que passei a morar em Manaus pelos idos de 1986. Já o lia desde o antigo ginásio e admirava suas poesias. Uma vez ganhei – na Velha Serpa – um concurso de redação na Escola Deputado Vital de Mendonça e decidi que tinha jeito para as letras. Vários foram aqueles com os quais procurei ter contato: Elson, Thiago, Aníbal, que ficará para um outro capítulo. Mas Alcides foi o que mais me influenciou (não tenho vergonha de falar a verdade). Aprendi apenas a ouvi-lo. Em nossas conversas, principalmente em sua casa no Alvorada I, só ele falava, afinal não tinha nada a ensinar. O abacaxi cortado em quadrados vinha logo em seguida. Chegou  Amazonas nos anos 50, foi perseguido pelo Regime, viveu com os índios, um exilado  em sua própria terra. Foi enfeitiçado pela beleza da região e daqui nunca mais saiu.

Minha convivência com ele me fez conhecer o quanto a arte para os que governam não tem valor algum. Tudo é mídia. Licitações. Aditivo. Na enfermidade, a indiferença. Na morte, a hipocrisia. Quando o vi no necrotério do HUGV, passei a conhecer mais de perto a ingratidão humana. A notícia de sua morte foi dada por dona Santina, a mulher incansável, aquela que soube entender a alma de um homem e de quanto é difícil conviver com um poeta, normalmente um ser insatisfeito, vulnerável a paixões desmedidas e a encontrar na insignificância das coisas o conteúdo para um belo texto. Que o diga Manoel de Barros e Mário Quintana. O que uma visão mecânica não vê esses seres são capazes de enxergar.

Certa vez, talvez em 1989, em um concurso de poesia na cidade de Itacoatiara, subo ao palco para declamar um de meus mais conhecidos poemas, “Homens que aplaudis o meu discurso”. Ele, na banca julgadora, levanta-se e me abraça. A imprensa, no outro dia, comentou aquele erro imperdoável. Depois, em uma conversa informal, explicou-se, dizendo que era um poeta cumprimentando outro poeta.

Comprei sua urna funerária em frente ao Hospital do Câncer, ali no Dom Pedro. Foi a mais simples que havia. Amarrei-a em cima do meu escort, cruzei o viaduto da Darcy Vargas, ouvia tiros, e chorava, recitava seus poemas, agradecia os ensinamentos. Aluguei uma área da Capela Ecumênica Canaã, quase em frente ao portão central do São João Batista. Liguei para o Jackson Nascimento, então apresentador do “Jornal em cima da notícia”, da Amazonas FM, e deu-lhe a notícia. Foi o meu maior erro. Alcides deveria ter sido velado no anonimato. Sem a presença dos que não lhe deram a devida importância durante a enfermidade. Procurei ajuda de várias pessoas. O Guto. O Lino. A Vanessa. Todos no poder. Esta ligou no dia do enterro. Os demais passei a ignorá-los e a riscá-los da minha relação de amizade. Poderiam ter feito alguma coisa. Talvez uma transferência para o Hospital Armando Mendes. Mas pelo menos não faltou frauda geriátrica. Por quase trinta dias, fui àquela enfermaria. Hoje, dez anos depois de sua morte, aqueles momentos ainda estão muito presentes. O lendário Armando Lucena foi a grande exceção, justiça seja feita, e esteve presente até o último momento. Aos seus quase 90 anos de díade, encontrava-o sempre ali na portaria.

Depois de quase um ano, fui ao cemitério. Sua sepultura, de barro batido, era uma cratera. Na verdade um buraco. Chamei um pedreiro. Comprei tijolo, cimento. E assim dei a ele um túmulo decente (o da foto). Nunca falei isso para ninguém. Uma vez disse para o Thiago de Mello, que me olhou de forma discreta. Sempre que posso, vou à casa do Mestre. Recito seus poemas. O seu texto “Das águas grandes” (pode ser acessado no Google) está transcrito em uma pedra de mármore. “Enquanto o rio esconde as roças podres, mastigando ilusões”. Sua poesia era assim. Não era a Amazônia do fantasioso boi-bumbá. Mas aquela de seres que continuam vivendo à beira da miséria, vítima de programas como o Terceiro Ciclo, Zona Franca Verde e de uma tal Fundação Amazônia Sustentável (FAS), que recebe recursos públicos e privados para investimentos estranhos. O homem do interior do Amazonas vive na miséria. “José espera, na beira dágua, como seus pais”, escreveu em “Amazônida”.

No Fecani de 2003, voltamos juntos de Itacoatiara. Eu, dirigindo, ele, filosofando. Soube depois de uma semana do AVC de que foi vítima no município de Iranduba, de sua internação às pressas naquele hospital hoje em reforma.

Mestre Alcides, tua biblioteca será transferida para o acervo da Academia Itacoatiarense de Letras; as cartas que recebeste de Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Mendonça Telles e de tantos outros serão preservadas. Vou postar alguns textos em tua homenagem. Citarei teus versos em sala de aula. Gritarei para todos ouvirem que nasceu um homem que cantou em versos a difícil vida do caboclo amazônico, que viveu com sabedoria e que morreu com humildade.

Não falarei do abandonou a que te submeteram naquela enfermaria. Isso já não importa. Tua poesia é totalmente desconhecida pela geração atual. Teu livro “Trilha dágua” hoje é obra rara. Porém a força dos teus versos permanecerá eterna e, sempre que se for realizar um trabalho sério sobre esta região, deverá ser citada, pelo menos em nota de rodapé.

Parodiando o poeta mineiro, tua poesia sobreviverá, independentemente de modas e teorias, porque atende aos apelos e necessidades de todo ser humano.

Até breve!

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Uma resposta

  1. Impresionado com esstes relatos, Calheiros. Só fui apresentado a Werk este ano. Nunca terei o mesmo privilégio que tu, de estar pessoalmente com Alcides. Tuas papalvras aqui não são de exaltação ao que fizeste pelo mestre, mas retrato fiel do que foi trilhar passos de humildade ao lado de alguem tambem humilde. Ainda vou a Itacoatiara conhecer o acervo de Alcides, se ja estiver aí…Um abraço a Almino. Alan Robson

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