Manaus, 30 de junho de 2025

AM-1: A pioneira

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O título acima reportando à rodovia que liga Itacoatiara a Manaus remete aos capítulos XVI e XVII do livro “Itacoatiara. Roteiro de uma cidade”, o primeiro de minha autoria, prefaciado e mandado editar pelo ex-governador, historiador e amazonólogo Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993). Eu contava então menos de 19 anos, e o livro foi lançado na velha Serpa no dia 5 de Setembro de 1965, há exatos cinquenta anos, no momento em que se inaugurava a referida estrada estadual. E foi relançado em Manaus, junto com cinco títulos de outros autores, na reinauguração da Biblioteca Pública do Amazonas, ocorrida a 7 de Setembro daquele ano (cf. recorte de jornal abaixo).


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Este artigo – que alguns desavisados poderão taxá-lo de ególatra – tem o condão de refrescar a lembrança dos mais idosos e ilustrar a memória dos mais jovens; é referência a quem se interessa pela história mais recente do Amazonas (e particularmente de Itacoatiara). Posto isso, julgo não estar contrariando Afrânio Peixoto (1876-1947), segundo o qual, “todos nós, românticos na juventude, sensíveis, imaginosos, egotistas, acabamos, na idade madura, razoáveis, reservados”. Ego sum qui sum (Êxodo 3:14-15).

A história desse meu primeiro trabalho eu a conto na introdução à sua segunda edição (Manaus, 1997).

Quanto à estrada, ela foi iniciada no primeiro governo (1955-1959) de Plínio Ramos Coelho (1920-2001), passou pelo primeiro governo (1959-1963) de Gilberto Mestrinho (1928-2009) e prosseguiu até a cassação, pela ditadura militar, do segundo mandato (1963-1964) do governador Plínio Coelho. As obras foram retomadas, em ritmo célere, em meados de 1964, pelo governador Arthur Cézar Ferreira Reis que finalmente efetivou a ligação entre as duas cidades. Originariamente, sua extensão media 286 quilômetros. Para ser asfaltada, no governo (1975-1979) do professor Henoch da Silva Reis (1907-1998), sofreu modificações e, após a retirada de muitas de suas curvas, ficou reduzida a 266 quilômetros.

Projetada como Estrada AM-1, depois passou a AM-010 e, quando inaugurada, foi batizada de Rodovia “Torquato Tapajós”, em alusão ao engenheiro amazonense Torquato Tapajós (1853-1897) que a idealizou.

Em respeito à História, transcrevemos abaixo o ato do Poder Executivo que efetivou a homenagem:

Decreto n.º 274, de 05 de setembro de 1965. Dá o nome de “Torquato Tapajós” à Rodovia Manaus-Itacoatiara. O GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS, no uso das suas atribuições legais, CONSIDERANDO o propósito do governo em retomar a consciência das gerações novas sobre o significado da vida dos homens ilustres do nosso passado distante, que contribuíram para a construção da grandeza do Amazonas; CONSIDERANDO que incumbe ao Poder Público não o culto à personalidade dos vivos, mas a exaltação dos que dignificaram o passado como exemplo para o futuro; CONSIDERANDO que dentre os ilustres vultos desse nosso passado distante figura o engenheiro Torquato Xavier Monteiro Tapajós, nascido em Manaus, a 3 de dezembro de 1847; CONSIDERANDO que Torquato Tapajós viveu uma vida intensa dedicada ao trabalho construtivo no campo na engenharia sanitária, da inteligência e da cultura, projetando-se como verdadeiro artista de verve e cientista de vigorosa celebração, deixando o seu nome inscrito na história científica do Brasil e, CONSIDERANDO, finalmente, que coube ao engenheiro Torquato Xavier Monteiro Tapajós, na última década do século XIX a primeira ideia da ligação terrestre entre Manaus a Itacoatiara, quando procedeu a estudos que visavam à construção de uma estrada de ferro entre a capital amazonense, na margem do Rio Negro, e a Velha Serpa, na margem do Médio Amazonas, DECRETA: Art.1º — Fica denominada “Torquato Tapajós” a Rodovia AM-1, na extensão de 286 Km, ligando Manaus a cidade de Itacoatiara. Art. 2º — Revogadas as disposições em contrário, o presente Decreto entra em vigor nesta data de 5 de setembro de 1965, em que o Amazonas comemora o 115º aniversário da sua elevação à categoria de província e abre ao tráfego público a Rodovia “Torquato Tapajós”. PALÁCIO DO GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS Manaus, 5 de setembro de 1965. Arthur Cézar Ferreira Reis Governador do Estado

Entretanto, desde a década de 1980, graças a um projeto apresentado pelo deputado estadual Paulo Sampaio (MDB-Itacoatiara), leva o nome de Rodovia “Antônio Vital de Mendonça”, em regozijo ao ex-deputado itacoatiarense morto em desastre de avião (1955) quando sobrevoava a área donde partiria a estrada, do lado de Itacoatiara. Antônio Vital de Mendonça (1925-1955) era apelidado de “Quitó” e sua morte prematura deu-se aos 30 anos de idade. Devido à trágica ocorrência ficou conhecido como “o mártir da AM-1”.

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Itacoatiara. Roteiro de uma cidade no original.
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Governador Arthur Cézar Ferreira Reis em foto de 1965.

Assim, ainda nos albores juvenis (1965), escrevi:

 O transporte da Amazônia existe em função do rio. Assim foi no período da colonização alienígena. Ainda é assim nos dias atuais. O caboclo amazônico conduz suas coisas de um lugar para outro, às vezes gastando dias na empreitada, na sua ‘montaria’ flutuante. Se no Nordeste o burro de carga é comumente usado como meio de condução, na Amazônia é a canoa, o motor de popa, o barco a vapor que, singrando as águas mansas dos rios, dos lagos, dos igarapés e dos furos menores, promovem uma verdadeira movimentação diária. O movimento de veículos motorizados só é visto nas cidades principais. Até o ano de 1955 não existia, no Estado do Amazonas, uma única rodovia que ligasse uma comunidade a outra. Somente agora é que acelera com dinamismo a construção, iniciada naquele ano, da Estrada AM-1, ligando Itacoatiara à capital, e que promoverá a verdadeira integração do interior amazonense, permitindo, ainda, com a criação de colônias agrícolas no seu percurso, melhor abastecimento para as duas maiores cidades do Estado, no tocante aos gêneros alimentícios, tão escassos e necessários. É uma obra arrojada, de 280 quilômetros de extensão, verdadeira vitória do homem sobre a floresta virgem, imensa (Capitulo XVI: Meios de transporte e comunicação, página 125 de Itacoatiara. Roteiro de uma cidade).

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Governador Plínio Ramos Coelho em foto da década de 1960.
Antônio Vital de Mendonça
Deputado Antônio Vital de Mendonça em foto de 1955.

 

No Capítulo seguinte, do mesmo livro (págs. 131/134), prossegui:

Disse, em capítulo anterior, que o transporte amazônico existe em função das vias navegáveis. Na verdade, assim foi no período primitivo da conquista, e ainda é assim nos dias que correm. O processo da ocupação e do desenvolvimento regional está, portanto, ligado preferentemente ao sistema dos caminhos fluviais. Todavia, esse meio de circulação, que possibilitou ao homem a tomada de contato com faixas de terras mais distantes, permitindo-lhe desbravar imensas áreas e descobrir riquezas, já deu a contribuição que dele poderia ser solicitada no que tange ao devassamento da imensidão territorial. Começa-se agora a tentar vencer a pressão das vias navegáveis, com a abertura de caminhos terrestres por onde venham transitar veículos motorizados, possibilitando maiores relações entre núcleos distantes. Tal sistema de transporte, que virá contribuir para a posse definitiva da Amazônia, já foi iniciada e com êxito, pode-se dizer, porque a função civilizadora das centenas de quilômetros de rodovias construídas nestes últimos anos, demonstra-se extraordinária. Exemplo admirável de progresso e desenvolvimento regionais é-nos demonstrado pela Belém-Brasília, que por suas características de fazer ligar a Amazônia à região central deste país, é tida como verdadeira estrada da integração nacional, e as que demandam o interior como a Manaus-Itacoatiara, a Humaitá-Lábrea e a Manaus-Manacapuru, estas totalmente no Estado do Amazonas.

A AM-1, que constitui tema único deste breve relato, é a primeira rodovia do Amazonas. Liga a cidade de Itacoatiara à de Manaus, num percurso de 280 quilômetros selva a dentro, na primeira tentativa de penetração no interior, para servir a uma região riquíssima em madeira e, provavelmente, minérios, e prometedora em produtos agrícolas.

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Seu leito de pista é de dez metros, ladeados por quinze metros de cada margem. Seguindo a topografia do terreno, cheio de altos e baixos, ela quase nunca consegue grandes retas, embora obedeça, o quanto possível, à moderna técnica de construção. Os 50 quilômetros já desmatados estão a 130 quilômetros de Manaus e a 100 de Itacoatiara.

No quilômetro 40 do lado da capital, numa clareira enorme, situa-se uma colônia de imigrantes japoneses que cultivam ali guaraná, seringa, pimenta-do-reino e hortigranjeiros. Pois, se a esses produtos adicionarmos madeira, juta e pecuária, aí teremos o elenco da produção principal da região, a qual, se bem incrementada e desenvolvida, dará um grande impulso ao desenvolvimento econômico do Amazonas.

No lado de Itacoatiara são localizadas plantações também de seringueiras e de pimenta-do-reino, além de juta, arroz, milho, cana-de-açúcar, etc. O impulso que Itacoatiara sofreu nas suas estruturas social e econômica, deve-se totalmente à construção da AM-1. Antes, muito antes de dar-se a implantação dessa rodovia, Itacoatiara não possuía características de cidade em desenvolvimento. Vivia num verdadeiro estagnamento. Entretanto, depois, o que se viu: cresceu em densidade demográfica, prosperou em abastecimento alimentar e aumentou em configuração urbana.

Lembro-me, ainda era bem menino, quando chegaram as primeiras máquinas para dar início ao serviço de terraplenagem da rodovia, no lado de Itacoatiara. Foi um assombro. O povo, que de veículo motorizado só vira até então um velho caminhão adquirido na gestão do prefeito Teodorico Nunes, ficou possuído de uma curiosidade chocante e acompanhou de perto o movimento dos tratores, na tarefa árdua de varar a floresta.

Tais máquinas foram utilizadas também na abertura de novas ruas e no alargamento e expansão das já existentes. Decorre daí, pois, o aumento da área urbana de Itacoatiara. O Iraci, antes um sítio pitoresco, hoje é bairro florescente. A Colônia não ia além das dezoito casas construídas por Mauá; hoje tenta ultrapassar a Fazenda Rattes. O Jauari cresceu consideravelmente. Em suma, a cidade tomou ares de CIDADE.

O trabalho de desmatamento da Estrada Manaus-Itacoatiara foi efetuado dentro dos mais rudes e primitivos métodos, limitando-se às árvores mais altas a utilização de foices, terçados e machados, ficando para trator a missão de derrubar as capoeiras de mato rasteiro e árvores de até cinco metros de comprimento. Ademais, as dificuldades de construção rodoviária na Amazônia são as piores possíveis. Além do problema da selva, que traz o desmatamento, há a frequência das chuvas que, com cheias e inundações, simplesmente impedem o trabalho. São causas do retardamento da conclusão da rodovia, portanto.

Centenas de homens trabalharam no desmatamento da AM-1. Ao esforço dessas criaturas, todos rudes, todos humildes, devemos uma rodovia de proporções magníficas.

A função da AM-1 é vária: função turística e econômica, sócio-econômica, além de que representará no futuro a causa principal do aproveitamento das riquezas do solo e sub-solo, e do aumento demográfico do Médio Amazonas.

 

Essa é a visão que temos da rodovia AM-1. A PIONEIRA.

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O falecido jornalista Aristophano Antony (1903-1968), em artigo n’O Jornal, de 04/09/1965, sob o título “Estrada Manaus-Itacoatiara”, afirma: no começo as obras da estrada “foram atacadas simultaneamente por dois setores, sendo abertos [no governo Plínio Coelho] em plena selva dezenas de quilômetros. Apenas diminuía o ritmo de trabalho no período invernoso”. No governo seguinte, “do senhor Gilberto Mestrinho, pouco ou quase nada se fez (…) e durante a segunda fase governamental do senhor Plínio Coelho foram lentos os trabalhos da estrada, cuja inauguração estava prevista para o fim de 1966. O movimento de 31 de março [governo militar], trazendo para o governo do Estado o professor Arthur Cézar Ferreira Reis, serviu para antecipar a conclusão da principal rodovia amazonense. Compreendendo a sua importância e desejando vê-la pronta, com o projeto de construir duas cidades às suas margens, Arthur C. F. Reis foi o primeiro a percorrê-la, exultante com o feito notável. Se não lhe coube a ideia de iniciá-la, cabe-lhe por direito a honra de havê-la concluído”.

O ex-deputado federal e escritor Cosme Ferreira Filho (1893-1976), foi outro que se destacou na luta pró-construção da estrada. Em várias oportunidades, através da imprensa, profligou contra o atraso econômico decorrente da queda da borracha, argumentando que a estrada seria uma das saídas para melhorar o status quo vigorante à época no médio Amazonas. Quanto à epopeia da construção da ex-AM-1, vale destacar o documentário “Estrada Manaus-Itacoatiara, aspectos históricos” (Manaus, 1965), escrito pelo saudoso professor José dos Santos Lins, então um jovem auxiliar do governador Arthur Cézar Ferreira Reis. Ao retratar o itinerário da rodovia, desde quando idealizada, lá atrás, e ainda era vista como um sonho quase impossível, perpassando pelo planejar da obra, o trabalho das equipes no campo, a derrubada da floresta, a ultrapassagem de inúmeros rios e igarapés, até a solenidade de inauguração naquela manhã cinzenta, festiva e linda de 5/09/1965, – o professor Lins legou-nos um roteiro histórico-literário de grande valia, um importante instrumento de pesquisas capaz de saciar a curiosidade dos estudiosos a respeito desse tema.

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3 respostas

  1. Boa Tarde Professor.

    Gostaria de agradecer pelo artigo, realmente um achado sem igual os relatos da construção dessa tão importante AM. Advogo na SUHAB, estava elaborando um Parecer sobre Invasão das Faixas de Domínio dessa AM-010 e inicie a busca de informações acerca dos inicios das obras, achei vosso site e com a vasta informação abri um tópico em minha peça opinativa sobre os aspectos históricos.
    Fico grato por ter compartilhado seu conhecimento, pois enriqueceu e muito meu trabalho.

    Abraço fraterno.

    Marcio Azêdo

    1. Prezado Márcio:
      Fico feliz ante sua informação. Gostaria que permanecesse como um fiel consultor deste blog que, como vc mesmo testemunha, tem a missão de retratar a nossa Amazônia. Já o conheço de nome, e o admiro pela postura de profissional dedicado e correto. Conte comigo, sempre que precisar. Fraternal abraço do Francisco Gomes.

  2. Agradeço e parabenizo pelo blog, pois estou fazendo um projeto de pesquisa acadêmica sobre as dificuldades e a importância da AM-010 o amazonas, na minha pesquisa encontrei seu blog é de suma importância para minha pesquisa, são poucos que falam sobre a rodovia AM-010.
    Sou Itacoatiarense nato nascido no interior da mesma hoje sou discente em tecnologia em logística em Manaus.
    Abraço.
    JOSIAN SANTANA DE ARAUJO

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