Manaus, 21 de novembro de 2024

Apresentação de Estações da Várzea (Continuação)

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*L. Ruas

(Na solenidade de lançamento do livro na tarde do dia 9 de agosto de 1963, em dependências do SESC/SENAC, em Manaus).

Estações da Várzea é um desses livros de poesia de onde partimos para o encontro com um mundo redescoberto. Vivemos, graças a Deus, numa região onde a natureza, como já foi dito, ainda conserva visíveis sinais das primeiras horas da criação. Ela rebenta aqui em toda a sua pujança e exuberância e o mundo que nos cerca se confina estreitamente com os mundos imaginários das lendas e das fábulas. Paradoxalmente ambientados entre a cidade e a selva, sofrendo uma existência cheia de todos os atropelos das urbes, crivados de todos os problemas que encontramos sobre o asfalto de nossas ruas, nos escritórios, nas salas de aula, nas oficinas e nas fábricas, lutando herculeamente pela sobrevivência numa cidade, capital de um estado que se situa entre os mais necessitados de todos os que constituem a unidade de um País ainda subdesenvolvido, esquecemos as riquezas que a natureza nos oferece como um refrigério e um caminho aberto para a salvação a poucos passos das nossas fronteiras citadinas. Vitimados como todos os habitantes das cidades pelas nossas preocupações de conforto sugerido por uma civilização técnica e artificial inconscientemente vamos esquecendo tudo aquilo que ainda permanece como uma riqueza que outros já não mais possuem.

Elson Farias nos leva pela mão como um duende bom e nos conduz por esses caminhos da natureza amazônica. Leva-nos para a beira do rio e nos ensina, de novo, a contemplar, com olhos purificados

A macia serenidade do rio após a chuva.

Conduz-nos com bondade à mesa simples e boa do nosso caboclo:

Nossa comida era branca,
peixe frugal
favas fritas,
maxixes na água e sal.

Mostra-nos os nossos pássaros, livres e selvagens, de canto rústico e belo:

A piaçoca
core e pia.
Pia como corre
fina.

E nos oferece todos os sabores que a floresta esconde para os que não a amam e que oferta, com largueza para as mãos do poeta:

O suco das cascas
molhava a manhã,
os vinhos travosos
mordiam sua boca.

Era a festa fria
das favas rachadas,
palmitos pisados
e sumos de milho.

É através de uma purificação da palavra que Elson Farias consegue realizar o milagre de ressuscitar uma paisagem que havia morrido para nós. Antônio D’Elia, tecendo uma crítica em torno do primeiro livro do poeta escrevia que há nele uma poesia de valorização da palavra.

Sem pretender qualquer significação exegética e crítica eu diria que se houve em Barro Verde uma valorização da palavra, em Estações da Várzea, Elson Farias conseguiu uma purificação da palavra.

Como é de todos sabido a poesia é, essencialmente e eminentemente, a arte da palavra. Digo eminentemente porque me parece que a poesia realiza, por excelência, entre os demais gêneros literários a perfeição da arte literária. É sobre a palavra que a poesia trabalha como é sobre as cores que o pintor exerce seu ofício. A palavra foi sempre a eterna angústia do poeta. No esforço de exprimir aquela experiência inefável de que fala Raissa Maritain em seu ensaio Sentido e Não-Sentido em Poesia o poeta já chegou mesmo às mais dolorosas experiências de pretender atribuir à palavra certos poderes mágicos e cabalísticos que jamais lhe poderão ser atribuídos. A procura de poderes mágicos terá sido uma perpétua tentação para os poetas. Sedução falaciosa que levou todos aqueles que ela havia arrastado pelo seu caminho sem saída a perderem, de início, o desinteresse essencial a toda atividade do espírito e em seguida o gosto mesmo da criação poética. Desta tentação, um Gerard de Nerval se tornou tão consciente que conseguiu triunfar dela por um esforço de vontade admirável; tentação à qual Rimbaud escapou finalmente, mas, a que preço – renunciando à poesia mesma: sem dúvida porque era mal, (…) esta ambição de conquistar poderes excepcionais, mas, também, podemos crer, por causa da luz desesperadora na qual ele viu muito rapidamente que a poesia não dá tais poderes.

Se a poesia no Brasil, não chegou aos excessos a que chegou o surrealismo, no entanto, a partir de 1922 para cá, numa ascensão contínua, numa pesquisa ininterrupta, a palavra tem conquistado a atenção de todos os nossos poetas e, em particular, dos poetas que se colocam em nossa história literária depois da geração de quarenta e cinco.

Pertencendo às novas gerações de poetas é, precisamente, no cuidado com a palavra que se caracteriza a técnica poética de Elson Farias, como bem salientou Nelson Werneck Sodré quando se referia à sua capacidade de utilizar a palavra.

É esta utilização técnica da palavra que cria em Estações da Várzea aquela atmosfera que eu chamava de purificação da palavra. Neste seu livro, os poemas conquistaram uma transparência, uma clareza, uma limpidez e creio que isto se deve ao emprego intencional de certas palavras que diria palavras-chaves e que me parece são as seguintes: verde; água; chuva; rio. É em torno destas quatro palavras que se constrói todo o edifício poético de Estações da Várzea. À guisa de ilustração vejamos, rapidamente, como há uma constância no seu emprego através de exemplos colhidos ao longo da obra. Em O silêncio das folhas: A formiga morde/ a tala travosa/ suas garras secas/ no verde se sucçam; Superficial/ como a face do rio/ castiça; Como um rio mitigado. Em Figuras o poeta escreve um poema de um único verso: a macia serenidade do rio após a chuva. E no poema seguinte: O jardim era encharcado no fim do inverno/ o verão era verde; os nossos dentes trincavam/ frutos verdes resinosos; Dois pontos no rio liso correm; Após a chuva a lua doura as folhas; O céu vive pesado de chuva; Na época das chuvas a terra cria cravos.

Não creio que precisemos nos alongar em maiores citações para verificarmos uma verdade tão evidente. Apenas para rematarmos as citações de versos onde as palavras chaves figuram gostaríamos de observar que o último verso citado na época das chuvas a terra cria cravos é o primeiro do décimo oitavo poema do livro, isto é, ainda um dos primeiros e que os outros que vêm logo depois receberam o título genérico de Figuras da Chuva.

Ainda em referência ao emprego ou à utilização da palavra, dizíamos que estas palavras-chaves servem de base para a construção do edifício poético de Elson Farias neste livro que vem de ser editado. Vejamos de maneira sucinta como isto se realiza. Tomemos o primeiro poema do livro:

A formiga morde
a tala travosa
suas garras secas
no verde se sucçam.

Inseto amargo
de resinas e ácidos,
rude mel de raízes
travos da terra.

De início podemos notar a riqueza plástica existente neste poema que é uma contemplação e uma análise de uma formiga cortando uma folha, que é ao mesmo tempo seu alimento, isto é, a própria constituição orgânica do inseto: inseto amargo de resinas e ácidos, rude mel das raízes travos da terra. Parece-me que o poeta conseguiu tal plasticidade utilizando a palavra verde como substrato e construindo o poema sobre ela ou extraindo-o dela. Notemos antes de mais nada que a sílaba tônica da palavra verde é a primeira e ela a consoante R tem uma predominância sonora criando, deste modo, uma simbiose do som com a cor, do R com o verde. Feita esta observação verifiquemos agora como são utilizadas palavras que ordenadas no poema chegam a dar uma certa coloração verde e não só, mas chegam mesmo a produzir uma sensação gustativa de amargor: formiga morde travosa garras verde amargo resinas rude raízes travos da terra.  Digamos que este é um processo, é uma técnica frequente em todo o livro. Apenas para ilustração citaremos uma estrofe de um outro poema onde está bem claro o mesmo emprego de palavras onde o som da consoante R tem predominância capaz de criar esta união do som com a cor: os nossos dentes trincavam/ frutos verdes resinosos.

Quando o poeta deseja outra atmosfera ele usa outros recursos, isto é, ele joga com outras palavras de tal modo que consegue criar a sugestão desejada capaz de transmitir ao leitor uma plasticidade estonteante. Recordemos, por exemplo, o poema a macia serenidade do rio após a chuva. Parece-me que aqui, além do emprego de palavras onde há uma abundância de vogais e principalmente da vogal a, que alarga, abre, ilumina, a própria disposição gráfica do poema é de uma força sugestiva extraordinária e nos dá a impressão de estarmos contemplando o rio que flui mansamente, tranquilamente e longamente a se perder de vista.

É sempre assim que Elson Farias consegue arquitetar os seus poemas. E o seu livro, do primeiro ao último poema, é todo edificado sobre estas quatro palavras, verde, água, chuva, rio, de tal maneira que ele conseguiu uma poesia que eu chamaria de poesia purificada, de poesia limpa, de poesia transparente, de poesia lavada. Lavada pelas águas das chuvas abundantes da região amazônica que enchem os nossos rios, regurgitam em nossas cachoeiras, alimentam os nossos lagos, águas que são como que o elemento mais importante da nossa constituição biológica, da constituição biológica do homem pobre (aqui o inverno é bom, mas o homem é pobre) do nosso hinterland, do homem amazônico que nasce, como aquela criança das poucas que se salvaram da fome, vive dentro de suas canoas tecendo seus paneiros e suas tarrafas como o tio Luiz e que ficam sepultados à sombra dos cacauais embalados pelas vozes dos rios.  A poesia de Elson Farias é uma poesia limpa e singela, forte e pura como a comida do nosso caboclo: Nossa comida era branca,/ peixe frugal/ favas fritas,/ maxixes na água e sal.

É este o banquete rústico da festa rústica da natureza que nos é oferecida bondosamente pelo poeta de Estações da Várzea. Sentemo-nos à sua mesa, purifiquemo-nos de todas as nossas loucuras nesta comunhão tranquila com as coisas da natureza, alimentemo-nos com esta comida frugal, mas autêntica e que nos dará forças suficientes para nos salvarmos de todas as intoxicações que a vida moderna, que a civilização, que a cidade, com seus vícios, com seus crimes, com seus atropelos podem produzir em nós.

Não acreditamos no homem natural de Rousseau, mas acreditamos que a natureza é capaz de retemperar nossos músculos e nossos nervos, é capaz de nos dizer algo muito mais profundo do que aquilo que encontramos na técnica que constrói os foguetes interplanetários e as bombas atômicas e de hidrogênio e é capaz, também, quando transfigurada pela arte de um poeta da estatura de Elson Farias, nos libertar e nos chamar do fundo da nossa miséria para os nossos grandes destinos de seres que tem uma vocação de transcendência. 

*Luiz Augusto de Lima Ruas (1931-2000). Sacerdote católico, jornalista e escritor amazonense.

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