Manaus, 22 de novembro de 2024

Boêmios de uma paixão

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Onde há paixão, também há palco para discussão e debates…  A divergência é uma prática comum na construção da vida moderna, processo que aperfeiçoa as instituições por vias democráticas, materializando as ações, especialmente se o embate for na área cultural. Após aparadas as arestas das discordâncias internas dos grupos, ao final, todos se unem para seguir o foco numa direção com a energia necessária para se conseguir aquilo que se quer ou pretendia. A força motriz do sonho é a unidade de ação nos objetivos, que faz ressignificar a utopia na contrapartida mobilizadora da concretização dos ideais. Reforçando o que foi escrito no final do artigo Cidade Verde, a pressão da sociedade organizada é que faz os governos agirem…

Cansados de esperar pela iniciativa do poder público na realização das atividades sociais, crendo que a mesmice já faria parte do passado, uma parcela da coletividade rompe com os ditames do governo da Idade da Pedra Lascada, apostando, conscientemente, com organizado e disciplina, no caderno de encargos, seguindo o passo a passo da cartilha de como mobilizar sentimentos e poder de criação, combustíveis necessários para a materialização dos desejos das lideranças ali reunidas e comprometidas.

Fruto de inúmeras reuniões, na década de 1980 é criada uma agremiação para fazer essa diferença e, embora sem ajuda oficial, assume uma postura para fazer o contraponto da festa popular mais importante do país, antes composta apenas pelo descompromisso do investimento  municipal.  Foi uma carga intensa de energia emocional abastecendo a vontade popular, de reunir e integrar os desagregados para formar uma academia onde se pudesse extravasar a alegria de viver e de brincar, esquecendo os problemas cotidianos.

Se na área do folclore já era uma disputa acirrada, com cabeças e costelas espalhadas no campo por onde se encontrassem os bois da Zona Oeste  e da Zona Leste, imaginem no futebol as cenas de ‘ceras’ e do  total combate  nas partidas disputadas entre os clubes da Colônia e do Jauary.   Este último, reduto dos tradicionais Mura, quando defendiam o território na guerra contra os invasores.

Quando a escola do outro lado passava na avenida, o ‘Açúcar mascavo’ – diga-se de passagem -, se derretia todinho, delirando com parte da ‘zelite’ branca que saía naquela agremiação, toda fantasiada nas cores vermelha e branca. Produto esse muito explorado no Império, ou seja, desde a época da Colônia. Quem não valoriza a História, acaba perdendo todas as tradições, como prevê o escritor Francisco Gomes da Silva.

Por outro lado, Marcelo Farias, uma cria do Clube do Remo de Belém, que se transferiu para jogar no Nacional  de Manaus e, após, defender  o Penarol, não acreditando mais no fator previdenciário do governo, tratou logo junto a outras lideranças do processo de construção dessa saga, com o  azul e branco fazendo parte da emoção, para  contrastar com a tradição da rivalidade defendida pela organização colonialista do carnaval na Cidade da Canção.

Quando o Leão da Vila jogava contra o escovado Leão da Velha Serpa, no Florão, o Zeca Resk  ainda exercia a presidência do Penarol. No entanto estava próximo o estágio do acadêmico em Odontologia pelo Projeto Rondon e a Valdira, uma torcedora fanática da TOP – Torcida Organizada do Penarol – pegava no pé todas as vezes em que o atacante ameaçava converter a jogada em gol, chamando-o de ‘Comedor de Jacaré’, e ele, pegando corda dentro de campo, apelidava-a de ‘Jaraqui’. Consequência: Marcelo foi ficando e ela acabou incorporando o nome de família, no seu.

As reuniões ocorriam embaixo das três mangueiras que existiam em frente à residência do microempresário Ísper Abrahim Neto, na Rua Nossa Senhora do Rosário, um sobrado do qual assistia de camarote o ‘esquenta’ que sempre terminava em samba. O som atraia professores e alunos que saíam de uma escola próxima, trocavam de uniforme para entrar na outra, e, ainda, iam assistir o último tempo de aula, somada a um grande fluxo de populares que simpatizavam com as cores dos bambambãs.

Em um dos ensaios técnicos a moçada avistou ao longe Chico da Silva, todo engalanado em seu uniforme de sambista –  engomado  com massa de batata priprioca que dá o melhor brilho e vinco -,  vindo do Ponto Chic, o restaurante dos bacanas da cidade,  sempre levado pelo braço de um violão que, neste caso, era o do seu amigo Zeca Nélson que o trazia de um périplo iniciado ao meio dia na Toca da Onça, na rampa da rua fronteira ao rio.  A informação coincide com a versão de que eles teriam vindos da Colônia.  Mas afinal, o que eles faziam lá? Será que o outro lado já teria ‘comprado’ o passe desses boêmios?

Artista simples não precisa de palco para aparecer…  E aí ele fez um gol de placa para os batuqueiros e passistas iniciando logo os trabalhos, no compasso da malandragem carioca, com a seleção nacional do samba, aquela na qual descreve  a posição de cada instrumento jogando futebol, seguida de “Pandeiro é meu nome” e etc. e tal.  E a ala de compositores da GRESBI – Grêmio Recreativo Escola de Samba Boêmios de Itacoatiara, todos atentos à interpretação do mestre.

Mas o primeiro carnaval da escola foi um desastre, as fantasias foram confeccionadas com papel de seda por falta de recursos.  Choveu e muita gente chorou…  O prefeito montou uma plataforma lunar e todo final de semana se mandava pra lá, não queria ser incomodado por pândegos, deixando o vice, Flávio Guimaraes, com as chaves do município. Todavia, em 1988 a escola estava tão bonita como toca no tamborim Benito di Paula, em Retalhos de Cetim, pois era tudo o que o povo queria ver…

O presidente enviou um telegrama para a Ruth Macedo, Relações Públicas do casal global Tarcísio Meira-Glória Menezes, em uma de suas fazendas no interior do Pará e, imediatamente, ela chegou para ser a Rainha da Bateria. A logística para trazê-la a tempo foi cheia de percalços, literalmente uma grande suadeira. Antônio Carlos Fonseca, além de professor era o grande artista na função de estilista, aderecista e design. O gênio do desenho livre fez o papel de “Hans Donner”: estava em suas mãos o trabalho de transformar o corpo da Rainha da Bateria para assumir seu posto…  Mas próximo do desfile sofreu uma crise, em virtude da extensa exposição da pintura corporal, indo parar no Hospital José Mendes. Todos num sufoco em oração pela estrela, na torcida para dar tempo da sambista levada a se recuperar.

Dona Nega do “seo” Bezinho era a líder da Ala das Baianas que com as meninas da Sete davam um show, rodando aquelas fantasias enormes cheia de aros por dentro, mas que davam um efeito especial ao espetáculo, com a evolução da Conceição do Miguelzinho. O ator, diretor, radialista e palhaço Bosco Borges Ferreira, que ao tempo ainda era menino, lembra que a avó Odeth, saiu nesta ala, e sua mãe na dos Marajás, em 1988. Manoel Pedro era o puxador oficial que trazia no gogó, junto com a ala de compositores as esperanças do título, no samba de enredo repercutido pelo equalizador do carro de som. Graça Fonseca é, sem dúvida, a grande dama do samba que auxiliou a existência do carnaval itacoatiarense. O Hermes e o Miraci, dos oliveirazadas, como cita Floriano Ferreira, no Dicionário de Gíria de Itacoatiara, só faziam ‘serenar’ no orvalho daquela noite inesquecível – contam orgulhosos.

A escola tinha uma avenida inteira pela frente e era a Sete de Setembro…  Os Boêmios de Itacoatiara desfilavam, trazendo a verdadeira tradição do samba no pé desde o Conjunto SHAM com evoluções marcantes cronometradas no percurso, divididos em várias alas, com carros alegóricos, destaques e o ‘Abre Alas’, em que a diretoria saudava o grande público. As fantasias adquiriam um efeito multicor em contraste com a iluminação da via. Passaram em frente à sede do Náutico, clube de glórias mil do esporte bretão, culminando na apoteose com reverência aVirgem, na Praça de Nazaré, de quem pediam as bênçãos da virada no campeonato da vida.

Na Ala da Comunidade desfilavam os ferreiros, soldadores, mágicos dos efeitos e outros artistas e profissionais do ramo que trabalhavam manipulando os mecanismos, isto é, atrás das câmeras… E o povo, que passou o ano inteiro esperando, comemorava unido, cantando o bis: “É campeã…”.

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