Manaus, 9 de novembro de 2024

Cancioneiro da Lili

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Continuação…

CHUVAS DE JANEIRO

Tem chovido mais do que se esperava.
– Lili, neste ano o rio há de vazar,
lembra-me das chuvas da minha infância
três dias e três noites sem parar.

Coró-coró cantava no riacho
a rumorar por trás de nossa casa,
bem diverso do grande rio Negro
que em profundo silêncio flui e passa.

Estamos em janeiro bem ao meio
das chuvas de novembro até abril,
dos seis meses do seu domínio em tudo:

da vida feita de águas e floresta,
dos pássaros e peixes e outros seres,
nossa origem primária desse mundo.

(15/01/2019)

OS FANTASMAS

À meia-noite vinham os fantasmas
e assustavam nas ruas as crianças,
desenhavam no escuro das esquinas
as suas silhuetas de luz fina.

Eram fantasmas rudes e sem nome,
sem certidão de idade e sem família,
não usavam as roupas de ancestrais
calças de brim e blusas femininas.

Adoravam andar nos corredores
em passos chiados nos assoalhos,
metiam medo n’alma dos meninos
que fugiam tremendo de assustados.

Não me lembro de haver algum fantasma
que com doçura arriscasse abraçar-me
na escuridão do fundo dos quintais,
ou coxias das casas de espetáculo.

Mas nas ruas plantavam-se nas praças,
nos hospitais vestiam-se de bata,
como se nada houvesse de bizarro
na sua solidão de alma penada.

Lili, todo fantasma aparece
com cara de caveira, voz rouquenha e
ar de ronha…

(16/01/2019)

CELEBRAÇÃO DAS ÁGUAS

Lili, as águas fluem pelo rio
mas não retornam nos mesmos canais,
elas voltam nas entranhas das nuvens
após se libertar do sal do mar.

Elas vêm no barulho dos trovões,
são faíscas elétricas do céu,
nos fósforos que iluminam as noites
tais como pirilampos siderais.

Nas andanças da vida vale o rio,
valem as águas largas a rolar,
valem os peixes, as pedras e os homens
que as consomem no beber e no olhar.

As águas fluem, Lili, não nos deixam
morrer de sede, tédio ou solidão,
porque o rio é preciso como o sol,
preciso como o nosso coração.

(16/01/2019)

CARMEN MIRANDA

Lili, ela cantava a canção
entre as montanhas e o mar,
flor da terra que não vai murchar
nas asas das libélulas no ar

“o tico-tico tá
tá outra vez aqui
o tico-tico tá comendo o meu fubá”

os quadris sóbrios distribuem
o ritmo do samba inaugurado
graça que é pouco para celebrar
a luz da sua presença no palco

seus olhos capturam
o milagre do delírio
os pés presos à terra
fluídos como o vinho

por onde caminhava?
para a pátria do impossível?
para o mundo da alegria?

“o que é que a baiana tem
o que é que a baiana tem
o que é que a baiana tem”

um dia o seu coração disse
que era preciso parar
entre os braços dos teus amigos
no peito das pessoas que uniste

os tamborins ainda choram
porque partiste.

(1/10/2019)

SONETO IRREGULAR, MAS, SOBRE
MÚSICA PARA LILI

O violoncelo mestre masculino
parece dominar as mãos do músico,
arcadas acordam as cordas graves
no som grosso composto em claro-escuro.

Mãos de mulher nas fibras da harmonia
tocam o violoncelo com ternura,
as fermatas se entregam às carícias
no delírio dos dedos com a música.

Os delicados braços vibram arcos,
o bojo do instrumento cria rimas
e a clave da mulher faz-se em pedaços.

Nada muda melhor o violoncelo
sem alterar os sons nas partituras
do que os arpejos de mãos femininas.

(11/10/2019)

Continua na próxima edição….

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