Manaus, 16 de setembro de 2024

Cansado de vagar

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O que entregarei ao leitor nestas linhas fala de muitos anônimos que habitam as ruas das cidades, grandes ou pequenas, perdidos na vida ou para a vida, e foram escritas, de fato, enquanto eu tinha próximo de mim, em uma calçada, um personagem de verdade, que já encontrei outras vezes e cujo semblante guardo na retina como exemplo de sofrimento e de desencanto. Ele me lembra outro morador de rua, como milhares e milhares de brasileiros, com quem conversei certa vez e que talvez me tenha contado coisas que são comuns aos que, por razões várias, passam a ter as nuvens como teto, porque perdido o espaço físico da casa que tiveram um dia, quem sabe até levando consigo, travestida de desgosto, antiga e dolorosa solidão que repartiam com os que lhes deviam ser próximos.

Cansado de vagar, por tempo que pode ter sido o dia, sentou na calçada da esquina pra esperar a noite que se avizinhava. Caminhara, como sempre fazia, no rumo do nada, e onde quer que parasse, porque o dia chegara ao fim ou porque suas pernas não mais lhe obedeciam, ali faria morada provisória. No caminho, como costumava acontecer, nada encontrara além dos olhares indiferentes, desviados ou desconfiantes, tudo o que, em verdade, constituía sua vida desde quando nem mais se recordava. Ficaria ali, vencido pelo cansaço muito menos que pela vida, e sabia que ao dormir encerraria mais uma jornada a caminho da busca, em plano outro a que o espírito haveria de ser levado, do perdão das faltas, dos erros, dos pecados, dos enganos que nem se lembrava de haver cometido, assim como das dores que pudesse ter provocado. Mas não dava pra ir além, porque a escuridão da noite já chegava e ela sempre se misturava à que lhe tomava inteira a alma, tudo o que, em verdade, ainda lhe restava de crença.

Dormiria ali? Que importa, se desde muito tempo deixou para trás os sonhos que podem embelezar o sono? Afinal, pesadelos são mal recebidos sempre, em qualquer lugar, e nem mesmo o brilho do luar, que começava, bastaria para consolar-lhe o interior despedaçado pelo não-ser.

Chorar pra que? Havia tempo que lágrimas não paravam de escorrer em seu espírito, verdadeiramente o único resquício de sobrevida que lhe sobrara. Seu lugar no mundo era onde sentava a cada final de dia, após caminhar a esmo em busca de nem sabia o quê. E depois, quando o calor do sol lhe aquecesse o corpo, esquentando o cimento frio e indiferente da calçada, seria como se voltasse ao mundo, para permanecer no nada.

Com a higiene possível na água da fonte que nem se dera conta de que à noite era luminosa, buscaria um alimento para o corpo alquebrado e frágil, talvez em algum lixo. Afinal, há muito não lhe deixavam entrar em qualquer dessas casas que vendem o que comer, e ainda que o permitissem não haveria como pagar. O nascer do dia não lhe revigoraria a força física, em falência progressiva provocada pela fome e pela ausência de si mesmo, nem lhe conduziria à alma crença nova. Apenas mais um conjunto de segundos, minutos e horas que veria transcorrer, passando à sua frente indiferente à sua presença.

Em cada bolso da memória, como de calça rota e rasgada pelo tempo, guardava quase nada do que fora mas que quando lhe ia à mente era como se lhe acendesse a luz das lembranças que não queria deixar escorrer na sarjeta que o olhava sem piedade. Iguais? Não, por ela escorriam águas que não lhe pertenciam, vindas nem sabia de onde; nele, as lágrimas, embora sem a mesma força, brotavam de dentro do que fora um dia, um tempo, uma vida em que construíra sonhos e os vira perder-se em pororocas que caminharam para o mar do fim.

Em lembranças vagas qual ondas que se quebram na praia sem emoção qualquer e sem esperança de voltar a ser, olhava o sereno que lhe molhava o rosto e sabia que enquanto não partisse de forma definitiva seria assim, sem importar a calçada, porque irreversível o abandono. Logo ele, que festejara tanto as chegadas ao mundo e se sentira pai todas as vezes que abençoara. Onde estão, para onde foram os que dele vieram? Também, que importa agora se já não são e ele também não é mais?

Quando descer o pano do teatro em que talvez nem tenha sabido encenar a peça da vida como deveria, tomara encontre a plateia que lhe faltou em forma de reconhecimento e de agradecimento e, quem sabe, os espinhos da caminhada nova serão menos rijos e não chegarão ao coração.

Começa a esfriar, o vento parece querer levar para longe as poucas lembranças e a calçada passa a fazer-se lar e, a um tempo, portal de descanso para as dores, como o varal serve à roupa que a água lavou. Há cura para as dores da alma, ou será sempre como as roupas que precisam ir ao banho para lavar-se do uso? Depois de submersas, nem todas secam em tempo igual e muitas são as que vão guardar as manchas, as nódoas, as impurezas que não se submeteram à força da frágil água.

Parei de escrever, ele ficou em seu canto do mundo e certamente ali permanecerá até o dia seguinte, se é que haverá amanhã.

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