Manaus, 26 de julho de 2024

Cardápios de Natal

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Chego hoje ao restaurante que costumo frequentar às sextas feiras e encontro sobre a mesa sugestão de cardápio para o Natal, como propriamente escrito. Nada muito sofisticado, diz-me o atencioso e amigo garçom, naturalmente cumprindo o papel que lhe está reservado, por enquanto. Afastados os estrangeirismos, desprezados os chamativos visuais, eis que há, em verdade, a oferta de chester, ave só lembrada nesta época do ano, de peru, não menos esquecido no correr dos meses subsequentes (quem sabe por que algo possa ter ligado o glu-glu glu de seu canto à época natalina), bacalhau ao forno, também guisado à gomes ou a qualquer outro patrício, acompanhado de cogumelos ou de aspargos, o filé de pirarucu ao molho holandês (mesmo que muitos o prefiram com castanha e molho rosê, à moda do lugar) ou massa à putanesca.

Para luxo maior, qualquer dos pratos pode ser complementado com arroz à grega, ou simplesmente branco, purê com brócolis, legumes assados ou farofa natalina, seja esta a mistura que for à velha e sempre saborosa farinha que a muitos encanta.

Dirão alguns, como pensei no instante primeiro, que muito ainda falta para a ceia natalina, mas entre os que sabem ganhar dinheiro e vender sonhos, despertando desejos, há máxima que aconselha começar cedo porque é grande a disputa de clientela que se iguala.

No cardápio de que falo, aqui à minha frente, oferecidos como “entradas”, estão “buschetas caprese”, “vol-au vent de queijo” e “duxelles de cogumelos”, couvert constituído de “carponata de beringelas, azeitonas pretas, patê de atum e de bacon, torradas assadas, tortilhas, grissini, torradas e manteiga de ervas, tábua de frios (queijo gorgonzola, mussarela, prato e parmesão, salame, mortadela, presunto cozido, presunto de peru, uva roxa e verde e frutas secas) canapés de patês, trouxinha de frango, além de pratos e frutas frescas mistas.

Pois é, isso que copiei e que talvez possa ter provocado desejo em alguns, nada mais é que um cardápio que me instiga a imaginar o que será, por exemplo, e para ficar no mínimo, o do Copacabana Palace, onde certamente algumas dessas guloseimas existirão com nomes mais extravagantes e, naturalmente, preços talvez compatíveis com a estratosfera. Mas outra máxima é também verdadeira: se tanto cobram, tanto ganham, porque tanto há quem pague.

Veja o leitor que nem cheguei a falar, aqui, da oferta de sobremesa, que inclui, além da rabanada tradicional, servida com creme de ameixa, torta holandesa ou natalina, e taça da felicidade. É claro que os singelos doces e frutas oferecidos não se podem comparar a entregas outras, mais ainda porque muitas delas são cobradas em dólar, euro, iene ou yuan.

Pois é, enquanto isto leio, e transcrevo, vejo ali, bem perto de onde me encontro, do outro lado da rua, ou do mundo, quem representa os muitos, muitos mesmos, que nada têm a ver com coisas que tais, seja porque o cimento frio desta noite não estará aquecido em dia qualquer, seja, enfim, porque o abandono que protagonizam como vítimas não lhes permite sonhar. Conhecem bem o Natal do desânimo, da indiferença, e certamente seus filhos, se há, não deixarão na janela, nem sob a rede ou a cama, se existir, sapatos que não possuem, chinelos que já perderam, e não haverá ilusões com ou sem gorro, de barba branca e rena. Mas creio firmemente, por convicção bem mais que religiosa, que o Jesus que se festeja será tão deles quanto daqueles que brindarão com o champagne que se costuma servir em brindes alvos de taças finas. Afinal, o Menino-rei aqui chegou em uma manjedoura, guardado por animais que ali descansavam, simbolizando mesmo a singeleza do Bem.

Estou a refletir e à lembrança me vem reportagem, que infelizmente nem é única, nem rara, que dá notícia de menina de pouco mais de dez anos vitimada por tara de um padrasto que, em conluio ou simplesmente autorizado pela mãe que deveria proteger a menor contra a loucura de taras masculinas, jogou ao lixo da vida a esperança, fazendo guardado sob o jeans do short surrado a marca da violência, cravando no peito que sequer chegou a desenvolver-se em seios maternos a dor da vergonha, o medo, a frustração do não-ser, proibindo devaneios. E doume a pensar que ali, indiferente à condenação imposta, a festa que houver, com mesa farta ou singela, não se fará no coração ferido pelo desespero do corte brusco na caminhada que nem chegou a iniciar-se, em verdade. O que vai à mente de uma criança feita adulta tão precocemente talvez nenhuma ciência seja capaz de estabelecer com precisão, mas exemplos autorizam pensar que aos adultos de um núcleo familiar assim pouco importarão as lágrimas derramadas por quem já não mais é, às vezes necessitada de as sufocar em estranho pacto com o medo. Pior ainda será, penso, se, terminado o congraçamento, tiver de novamente servir.

Só Deus, que para aqui enviou o Filho que festejaremos a 25 próximo, é capaz de acolher e compreender o que irá à mente dessa menina, infelizmente não a única no caminho nem no abismo.

Também não haverá cardápio tão farto, certamente, em algumas das chamadas casas de repouso, destinadas a abrigar idosos, muitos dos quais ali estão porque perderam direito ao convívio com os que trouxeram à vida hoje tão agitada que impõe a separação e obriga à solidão. E pensar que até foram noeis um dia, porque papais e mamães que de muito abdicaram se tinham do que abrir mão. Estarão entre novos amigos, que lhes foram impostos por circunstâncias que nem desejavam, talvez nem compreendam, mas o peru da ceia, ou o chester, com vinho, refrigerante ou água, não lhes devolverá a alegria do abraço. Mesmo ali, como em todo canto, será Natal e o Menino há de cuidar da proteção desejada.

Em presídios, onde a solidão é coletiva, os valores morais não mais costumam ser e o arrependimento chega para alguns, faltará ao cardápio da noite o alimento essencial chamada liberdade. Mas mesmo ali o Menino haverá de estar, abençoando.

Infelizmente, na Ucrânia, como na Rússia, em Gaza, como em Israel, as luzes e os estampidos não serão de fogos de artifício e sim mortais, e muitos dos que sobrevivem, cristãos ou não, sentir-se-ão menos infelizes por, afinal, ter acesso ao mínimo que lhes permita a sobrevida.

Guarde-nos o Deus-menino deste tempo de dor igual nesta parte do continente agora ameaçada por desmedida e imatura ambição! Feliz Natal!

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