Em época de quarentena liguei para minha querida tia Idalina.Estava preocupado em saber se estava se comportando. Ela medisse estar um pouco entediada. Mas o tédio havia sido quebradoontem. Eis o seu relato:
-Imagine que ontem, na boquinha da noite, como se diziaantigamente, um casal que mora no apartamento vizinho, começoua brigar. Um horror. O rapaz dizia não aguentar mais as exigênciase as manias da esposa. As crianças em casa choravam e gritavam.O marido ameaçava sair de casa. A esposa, as beiras da histeria,dizia que ia pular da janela. Tive que me meter. Afinal eles sãomuito simpáticos comigo.
Fiquei muito preocupado com o que poderia ter acontecido.Ademais, tia Idalina é do grupo de risco. Diz que só tem 70. Umapessoa que foi ao funeral de Carmem Miranda, em agosto de 1955,não tem menos do que 80 anos.
Ela mesmo me contou que Carmem Miranda faleceu em LosAngeles. Mas o corpo embalsamado foi trasladado para o Rio deJaneiro. Milhares de pessoas acompanharam o enterro. E elaestava lá. O ano era 1955, repita-se.
Mas voltando a confusão de ontem. Ela apertou a campainhado vizinho, pegou as duas crianças e levou para o apartamentodela. Um risco. Segundo o Ministério da Saúde, os velhinhos têmque ficar longe das crianças.
Mas Idalina desobedeceu às normas de quarentena. Acalmouas crianças. Os gritos continuaram por alguns instantes. Depoistudo silenciou. Um silêncio sepulcral. A essa altura as criançasestavam calmas, assistiam televisão e tomavam sorvete.
Idalina preparou uma canja para as duas garotinhas. Deubanho. Vestiu-as com umas roupinhas que alguém esquecera porlá. Não achou conveniente voltar ao apartamento dos pais. No queestava certa. Se uma coisa que Idalina não tem é leseira.
Lá pelas dez da noite, as garotinhas já dormiam no sofáquando os pais vieram buscá-las. Ela que conta:
-Os dois com cara de paisagem, relaxados, pediramdesculpas, pegaram as crianças e foram para casa.
No final dessa quarentena, daqui a nove meses, vai nascermuito menino por aí. É o ciclo da vida. Uns vão morrer outros vãonascer.