Manaus, 16 de setembro de 2024

Crônicas do cotidiano: Arqueologia da Escravidão, Lavoura Arcaica e Novo Cangaço

Compartilhe nas redes:

O título e o que pretendemos tratar não é uma relação de enredos de Escolas de Samba (embora pudesse ser), porém um comentário sobre coisas que nos parecem assustadoras, porque ainda estão dentro de nós como origem, como vivência ou convivência, como causa ou consequência, como memória ou mesmo espanto. Embora pareçam diferentes entre si, não o são. Guardam intrínsecas correlações e daí o seu impacto na vida social e nas acontecências da vida cotidiana: “escravos”, “boias-frias” e “justiceiros” são categorias bem conhecidas da história social brasileira. Da mesma forma como o “arcabouço fiscal”, tão comentado agora pela mídia, e “arcabouço social”, partes do Brasil que temos; um refletindo a supremacia do poder econômico, que extrai sua mais valia dos trabalhadores e o outro, que reflete a desigualdade consentida, explorando a dignidade humana através de uma hierarquia social injusta. Representam coisas que gostaríamos de ter varrido da memória, mas continuam, como chiclete, grudados em nós, tal como vigem e operam.

O trabalho análogo à escravidão é um eufemismo que o direito criou para não dizer que o Estado revogou a Lei Áurea e seus antecedentes: é trabalho escravo e, se é possível dizer, da pior qualidade. O escravo não era considerado “sujeito de direito”, mas era um “bem”, um patrimônio de seu dono, com valor de mercado; seu valor econômico revela-se ao ser apresentado ao mercado para venda ou troca, mesmo sendo a escravidão um vilipêndio. Os trabalhadores famélicos, que estão sendo libertados por um punhado de servidores públicos que sobraram do Estado Mínimo, são aqueles que tiveram a sua condição de escravizados escondida do mercado porque não têm valor legal de troca e, para evitar comprometimento dos que os exploram, sob a ameaça das armas, fartamente consentidas na última quadra governista, sobrevivem na clandestinidade da “luz do dia”, pois bebemos o vinho e chupamos a cana e nem sempre imaginamos que ali está contido o trabalho de oprimidos.

“Lavoura Arcaica” (1975) é título do romance de Raduan Nassar, que depois virou filme (2001) adaptado e dirigido por Luiz Fernando Carvalho e trata da rudeza da vida no arcaico mundo rural brasileiro, com seus rígidos padrões morais, ceifando sentimentos de liberdade. O romance e o filme têm um título poético e honram a literatura e a filmografia brasileiras, contudo vem sendo erradamente tomado como rótulo, pela mídia, buscando retratar o trabalho análogo ao trabalho escravo nos nossos tempos de agronegócio, onde as relações capitalistas de produção no campo são outras, nas quais, teórica e tecnicamente, coisas assim não deveriam existir, visto que são próprias do início do capitalismo rural, após a derrota clamorosa das revoltas no campo promovidas pelas Ligas Camponesas e outros movimentos sociais reivindicando a Reforma Agrária, abortados pelo Golpe Militar de 1964 e tendo como consequências: aumento das migrações do campo para a cidade e o fim do campesinato; o surgimento do trabalhador volante chamado de “boia-fria”, arregimentado pelo “gato” (um “contratador de mão de obra de desvalidos, principalmente nordestinos), para trabalharem no corte de cana no sudeste e em outras monoculturas que foram se estendendo pelo sul e pelo centro-oeste. Esse regime de trabalho abjeto é condenado socialmente, juridicamente criminalizado, economicamente inconcebível nos modelos de mercado concorrencial e afronta, pois, os direitos humanos.

Quanto ao “Novo Cangaço”, denominação atribuída às facções criminosas que “tocam o terror” em Natal (RN) e em várias cidades brasileiras, é mais um “equívoco proposital” para não ir ao que verdadeiramente é: arrogância das elites patrocinando a desigualdade de todos os modos; pouco conhecimento da história social e preconceito em relação às lutas sociais do Norte e Nordeste contra a opressão das elites; e a proteção descabida a criminosos de colarinho branco, que dominam o tráfico de drogas, de armas e de poder, já que conseguiram infiltrar-se até em postos do Estado.

Views: 26

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques