Manaus, 7 de setembro de 2024

Crônicas do cotidiano: O imaginário e as ideologias

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A pirâmide humana, dela brotando um homem com o rosto ensanguentado, e o punho cerrado à altura dos ombros, visto de baixo para cima sob um céu azul onde paira uma bandeira desfraldada, lembram o enquadramento de uma pintura épica de Eugène Delacroix, intitulada “A liberdade guiando o povo”. Todos pensaram nisso vendo a foto que corre o mundo registrando o momento após os tiros, quando Donald Trump levanta-se do chão quase ileso e escapa da morte em meio a um comício de campanha. Sem tirar os méritos do fotógrafo Evan Vucci, da Agência de Notícias Associated Press, que deu a conotação artística à obra, a leitura semiótica a ser feita como decupagem do momento, e dos personagens que reflete, revela a encenação categórica da violência que o mundo político norte-americano costuma produzir, manipulando sentimentos humanos em nome da sede de poder. Basta atentar para o contexto político e perceber os fatos. “Perceber é acolher e assimilar a forma sensível dos objetos…Também é assim que os olhos recebem o vermelho da rosa – a sua cor, mas não a sua matéria, pois os olhos não se tornam vermelhos” (Percepção e imaginação. Silvia Faustino de Assis Saes. SP: WMF Martins Fontes, 2010, p. 14). Assim sendo, percebe-se na foto que o punho cerrado não é de luta pela liberdade, nem tampouco o gesto dos socialistas, mas um gesto impetuoso de vingança esmurrando o vento e ordenando ódio aos adversários, como numa luta de boxe. O Trump que se apresenta na Convenção do Partido Republicano, dois dias depois do atentado, parece mais sóbrio, embora teatral, como costuma ser. A “imagem também mente”, nos diz Giovanni Sartori, em sua obra Homo videns. Diante dessa bela foto de um triste episódio, vale pensar com Santo Agostinho: “se a alma alguma vez se engana, não é por defeito da Verdade consultada, do mesmo modo que não é por defeito desta luz exterior que os olhos corporais por vezes se enganam. É manifesto que para nos certificarmos acerca das coisas visíveis, recorremos a esta luz, para ela no-las mostrar, na medida que somos capazes de as ver” (Santo Agostinho. O Mestre. SP: Landy Editores, 2002, p.99). Será que ainda somos capazes de ver o que verdadeiramente está acontecendo? Não estaremos nós obnubilados por ideologias loucas? Será que o mundo, posto de cabeça para baixo, só se faz enxergar de baixo para cima, distorcido?

A luta entre o imaginário e a ideologia está presente. Para muitos, ideias preconcebidas dos outros são ideologias, as próprias são o real. Levam em conta o empírico e deduzem dele que o seu real é o verdadeiro, sua forma de enxergar o mundo, e o resto é imaginação. O real existe sim, nas suas formas tangíveis, mas a imaginação é o que torna o projeto de mundo, mesmo intangível, o suporte de nossas vivências sobre o real; é um sistema aberto que vai se realizando, acontecendo e transformando tudo em um eterno vir a ser. Como o momento em que vivemos parece de cabeça para baixo, pois vive-se uma crise de poder, de exacerbação do capitalismo como sistema, o político e o ideológico se sobressaem com a vontade absurda de submeterem o mundo aos desígnios do mal, onde prevalece a concepção de ideologia que não mais comporta a dialética e a ação dos sujeitos não é decisiva no processo de construção histórica. Como nos diz Jean Baudrillard, “a insensatez é vitoriosa em todos os sentidos – ela é o próprio princípio do Mal”, e vai mais fundo: “o universo não é dialético – ele está destinado aos extremos e não ao equilíbrio. Destinado ao antagonismo radical e não à reconciliação nem à síntese. Esse é também o princípio do mal, e ele se expressa no gênio maligno do objeto, ele se expressa na forma extática do objeto puro, em sua estratégia vitoriosa sobre a do indivíduo” (As estratégias fatais. RJ: Rocco, 1996, p.7). Portanto, a tentativa de assassinato de Trump é real, aconteceu, não é ideológica, é verdadeira, desumana e reprovável. Mas, o “momento fatal” como espetáculo, o “objeto puro” de que nos fala Baudrillard, registrado na foto e nas mentes, reconfigurou a campanha. Na Convenção do Partido Republicano, em êxtase, ex-adversários, que denunciavam Trump, compareceram e humilharam-se perante o “herói”. É o ideológico alavancando um projeto de poder fundamentado no tudo de perverso que já pensávamos ter superado. O mundo parece estancar no atraso, mais longe de tudo que imaginamos como um “mundo melhor”!

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