Ao retomar a discussão sobre a Amazônia, não posso esquecer deste vaticínio perverso: “A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante. Desde os primeiros tempos da colônia, as mais importantes expedições e solenes visitas pastorais rumavam de preferência às suas plagas desconhecidas…Os mais veneráveis bispos, os mais garbosos capitães-generais, os mais lúcidos cientistas…Esforços vãos..Prosseguiam a outros pontos, ou voltavam – e as malocas, num momento transfiguradas, decaíam de chofre, volvendo à bruteza original…Vai-se de um a outro século na inaturável mesmice de renitentes tentativas abortadas…Daí, em grande parte, a paralisia completa das gentes que ali vagam, há três séculos, numa agitação tumultuária e estéril” (Euclides da Cunha. À margem da História, 1909. SP: Iba Mendes, 2019, p.12-16).
Essa é, infelizmente, a matriz do pensamento republicano para os que lidam com a Amazônia. Tudo indica que os dignitários da República acataram a visão desse senhor e o relato virou a “praga” que ainda nos persegue. Seguindo essa lógica, é de se pensar: o que adianta o Governo Estadual criar uma Universidade Pública, a maior universidade multicampi do país, funcionando nos 62 municípios do Estado do Amazonas? O que adianta investir na Universidade Federal e na memória de sua antecessora, que cumprem a missão de formar gente há mais de 100 anos? O que adianta o Governo Federal, depois de 20 anos de inércia, ativar um Centro de Biotecnologia para pesquisar os biomas amazônicos, somando-se às universidades e institutos de pesquisa locais, que inseriram a Amazônia no circuito da produção de ciência no mundo? O que adiantou o Governo da Ditadura Militar enfeitar um navio da antiga SNAPP e navegar por três dias entre Belém e Manaus, com a fina-flor das representações imperialistas para decidirem sobre um novo modelo econômico para a Amazônia? O que adiantou o Papa Francisco criar no centro da Amazônia um Cardinalato, com o fito de ampliar a voz cristã dos nativos? O que adianta discutir a Amazônia nos fóruns mundiais e buscar a visibilidade para a questão ambiental sob a ameaça dessa descontinuidade de compromissos, que ainda hoje povoa a mente dos arrogantes e “supremacistas” incrustados no planejamento das políticas de estado para a Região?
Muita coisa deu errada por aqui. Getúlio Vargas mentiu não fazendo o que prometeu em 1940, no Discurso do Rio Amazonas: no fim da Era Vargas a economia do Estado do Amazonas continuava em decadência. O passeio de Roberto Campos, Ministro do Planejamento, no navio da SNAPP, pariu a Zona Franca de Manaus (ZFM), em 28/02/1967, do jeito que ela é. E nunca foi aceita pelo pessoal da FIESP, que a tem como adversária; outros, ainda, acham que a “maloca euclidiana” não pode produzir produtos industriais de alta qualidade, com robôs, sem classe operária e sem greves, situação ideal para todo capitalista; e o modelo pode até sumir, no bojo da Reforma Tributária, em discussão no Congresso Nacional. O modelo é frágil e discutível: a Bela Gil defende o fim dos incentivos ficais para os sucos dos refrigerantes na ZFM; continua pendurado nas Disposições Transitórias da Constituição, para alegria de advogados que arguem no STF as inconstitucionalidades. Mas, é o que temos! Dele saem os empregos diretos e indiretos que nos livram do extrativismo predatório, embora não nos liberte da pobreza e da indigência política; responde pela quase totalidade do PIB Estadual; mantém a Universidade, a Ópera e a Pesquisa Avançada; e ainda devolve recursos próprios da SUFRAMA para o Tesouro abater a dívida pública nacional e que deveriam ser reinvestidos em programas de desenvolvimento.
Quase todo o Brasil molha-se com a chuva levada por nossos Rios Voadores, que rega plantações e espalha bonança, mas não lava a ignorância e a brutalidade dos que torcem para que a Amazônia seja o repasto dos “ingovernáveis”: aldeia das milícias que matam indígenas, que matam a esperança de ribeirinhos, quilombolas e citadinos. Tudo parece feito para que se volte à “bruteza original”. Mesmo que para isso tenham que cuspir na água doce em que se banham!
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