Manaus, 11 de dezembro de 2024

Crônicas do Cotidiano: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”

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Provérbio popular muito difundido e que tem um sentido generoso. Não trata do feio, mas como o feio pode estar associado ao amor, ao afeto ou à consideração, seja ao objeto ou a uma pessoa; conotação diferente, sobretudo, quando acreditamos que “quem vê cara, não vê coração”. Umberto Eco (1932-2016) dedicou ao tema um ensaio intitulado História da Feiura, editado pela Record (2007), tratando linguística e filosoficamente sobre a feiura desde a antiguidade até os nossos dias; trata do feio, do cruel e do demoníaco, não necessariamente associados, como parâmetros para a existência do belo, este tratado em outra obra, História da Beleza (2004, Record). Outra obra importante sobre o feio é de autoria de Victor Hugo (1802-1885), O Corcunda de Notre Dame (1831), clássico da literatura romântica francesa, com versão cinematográfica. O feio é, também, temática importante nas artes plásticas. Na pintura, destacam-se as obras de Hieronymus Bosch, “As tentações de Santo Antão”, de 1500 (exposta no Museu de Arte de São Paulo – MASP) e “As tentações de Santo Antônio” (1946), de Salvador Dalí (1904-1989), ambas baseadas na lenda de Santo Antão (ou Antônio), eremita que enfrentou todos os tipos de tentações e a elas resistiu. Goya e outros pintores tomaram o grotesco exposto como arte, como temática e marca de suas obras.

Saindo do terreno das artes, da erudição e da reflexão filosófica sobre o feio, o que dizer das cenas horripilantes do cotidiano, embebidas de maldade e das tradicionais estórias que nos envolvem desde criança? A “Lenda do bicho-papão” é a mais presente na vida de todas as crianças brasileiras, que fala de um ser monstruoso que sequestra e come criancinhas indefesas, teimosas e desobedientes. Uma maneira didática de inculcar princípios morais mediante o pavor. A estória do bicho-papão, descrito por nossas mães ou contadores de estórias infantis, agrega, em cada caso, os preconceitos de raça, de cor, de religião e de outros, dependendo da pessoa que a conta e pode ficar mais feio. Por isso, reveste-se de coisas sérias e que nos marcam pela vida inteira. Os apelidos, as chacotas, as vinganças pessoais passadas em fuxico e, atualmente, o bullyng se escoram, normalmente, nesse feio que imaginamos e projetamos para o outro, e que implica no feio moralmente execrável: o “Zé Bostinha”, o “Boca Larga”, “o Vira Tripa”, “o Sobe e Desce”, “o BBBode”, “o Queixo de Tamanco”, “o Dobradiça” e tantos outros que evocam escatologias repulsivas, coisas ruins que colam em nós e, hoje, fazem parte do “politicamente incorreto”, tal qual as qualificações racistas dadas às minorias que desprezamos e que, no Brasil, se constituem em crimes de injúria racial. Algumas imortalizadas pelo grotesco pela falta de sororidade, mesmo à revelia do artista, como o difamado monumento dedicado à figura do Bandeirante Borba Gato (1963), do artista Júlio Guerra (o mesmo autor da belíssima escultura da Mãe Preta no Largo do Paissandú, São Paulo), para comemorar o IV Centenário da cidade de Santo Amaro (SP). Este ano que finda foi um ano em que a humanidade expressou os seus mais íntimos e cruéis aspectos desse mundo feio que habita dentro de nós. Sem moralismo barato, uma retrospectiva do feio se encontra nos algoritmos das redes sociais, nos atos horrendos das nossas polícias, nas guerras e genocídios de povos, nos atos políticos contra a democracia em nosso país, na bandidagem de colarinho branco enfrentando o poder público e as coisas feias que fizemos no escurinho de nossas vidas.

Mas, sempre há estórias exemplares como a que ouvi em Parintins (AM), onde trabalhou o que eles dizem ter sido o “Carteiro mais feio do Brasil”. Conta a lenda local que moravam juntas, num dos casarões do centro a cidade, duas irmãs já idosas, remanescentes de uma família tradicional, e solteiras. Quando o Carteiro passava pela rua, as duas disputavam a fresta de uma das janelas para vê-lo passar. Certo dia chegou uma carta para elas e quando o Carteiro aproximou-se da casa, bateu à porta e as duas ficaram assustadas. O Carteiro, como de costume, gritou: Carteiro! Carteiro! Ambas apareceram na janela para receberem a carta e uma delas sussurrou para outra: “é muito feio mesmo!” Tomando como um insulto, o Carteiro respondeu de pronto: “mas eu casei, fiquem sabendo!” E virou as costas e seguiu no seu trabalho.

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