Manaus, 21 de novembro de 2024

Crônicas do Cotidiano: Revisitando Foucault e algumas palavras da moda.

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Nos anos 60 e 70 do século passado, onde quer que a voz das ruas pudesse ser ouvida sem interdição, as palavras ganhavam impulso transformador, sem que déssemos conta das consequências que adviriam desses discursos que diziam muito dos nossos comportamentos, desejos e vontades de pegar o mundo com as mãos: uns, para amassá-lo e jogá-lo no lixo; outros, para moldá-lo com a massa da supermodernidade cientificista que ainda não tinha nome ou, simplesmente, varrer as teias de aranha agarradas aos cantos das paredes. Assim, as palavras tinham peso significativo: reverberavam com brilho, com júbilo e, às vezes, também, como castigo. O mundo estava de ponta-cabeça! Não falo disso tomado pela “teoria do passado rosa”. Falo dessas coisas pela similitude do que se nos apresenta o mundo, neste momento. Estamos em outra virada! Daí lembrei de Michel Foucault e fui reler a sua Aula Inaugural no “Collège de France”, pronunciada em 02 de dezembro de 1970 e intitulada “Ordem do Discurso”. A hipótese inicial parte do princípio de que “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. Caímos, assim, pelo nascimento, num mundo que está pronto para nós, que não é nosso mas dele nos apossaremos pela palavra e não podemos desconhecer a força que elas contém. São essas forças que controlam a produção dos discursos que ouviremos e faremos como sujeitos ou coletivos organizados. Por isso, é bom entender: “em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições, que se cruzam e se reforçam…Notaria que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada… são as regiões da sexualidade e da política…Por mais que o discurso seja aparentemente pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder” (p 9-10). Outro procedimento de exclusão se refere à separação e rejeição dos discursos opostos: razão e loucura. Enquanto o discurso da razão nos libera para o poder dizer e ser ouvido, o da loucura autoriza a rejeição completa, e não passa nem pelo crivo da oposição entre falso e verdadeiro nas nossas práticas de vida. No entanto, o discurso verdadeiro, que nasce “da vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos…uma espécie de pressão e como que um poder de coerção” (p.18) Esse discurso, na nossa sociedade, tornou-se o discurso hegemônico da ciência, que se sobrepõe como “verdade” sobre os demais. E o que nos importa tudo isso?

A resposta à pergunta até parece simples: a nossa compreensão do mundo descrito formula um discurso, que está em nós e por nós será proferido em desdobramentos e eles denotarão a nossa compreensão sobre as coisas. A complexidade advém da multiplicidade de discursos que introjetamos, que aceitamos, que recusamos, querendo ou não a eles nos expomos e por eles deixamos nos influenciar sem perceber que eles alcançam nossos desejos e nossa sede de poder e revelam, também, autoengano, subalternidade e desigualdades que o “saber geométrico” das oligarquias nos impõem; incorporamos e reproduzimos até o discurso que nos denuncia como passivos aceitadores da “servidão voluntária” (Étienne de La Boétie). Quando ouço palavras correntes na mídia brasileira como “segurança jurídica”, “desenvolvimento sustentado”, “meritocracia”, “controle de gastos”, imediatamente penso no cinismo da nossa elite econômica, política e intelectual, o que me transporta à outra realidade de nosso cotidiano associado à “fome”, ao “machismo”, ao “feminicídio”, ao “racismo” e ao “abandono”. Estas últimas palavras são parte dos discursos interditados e que só aparecem guiadas pela lógica do discurso “competente” dos especialistas, que sabem “esquivar sua pesada e temível materialidade”, sem tirar nem por!

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